Foi só em Setembro que apresentou o seu primeiro projecto oficial, mas há muitos anos que Mano Jio tem um historial no movimento da batida. Irmão mais velho do DJ Nigga Fox, a quem ensinou as bases do Fruity Loops e que se tornaria num dos nomes mais importantes do género, lançou há um par de meses o EP 2006, através da Moonshine.
Foi precisamente nesse ano que agora homenageia que deu os primeiros passos, na altura inspirado pelo kuduro que ouvia — tendo raízes angolanas — mas também pelos primórdios da batida de Lisboa, cujas sementes começavam a ser lançadas. Enquanto DJ Jio P, lançou faixas e projectos informais como Chateado, Bomba ou O Komandante.
Perdidos nos confins da Internet, ou em discos externos que ficaram pelo caminho, o seu espólio não sobreviveu até à era do streaming e das redes sociais. Mas nunca é tarde para recomeçar e isso é o que Mano Jio tem vindo a provar. Há pouco mais de um ano que voltou a tocar como DJ, passando pelas Noite Príncipe ou pelo Partimento, e lançou agora o primeiro de vários discos que está a preparar — e que planeia lançar tanto em colaboração com a Moonshine como com a Príncipe Discos.
Em entrevista ao Rimas e Batidas, conta a sua história, explica o que o levou a voltar ao activo e reflecte sobre a batida de Lisboa — um movimento que cresceu exponencialmente ao longo dos últimos 20 anos e que, de acordo com o artista, tem “potencial” para se tornar num “fenómeno mundial”.
Tu começaste a fazer música há muitos anos mas só agora te lançaste com um projecto mais sério e pensado. Como é que, neste momento, se deram as circunstâncias para teres lançado este disco?
O título do disco é 2006, que é, basicamente, o ano em que comecei a mexer em produção e mistura de música e tudo aquilo que tem a ver com batida e kuduro. Em 2012, deixei de tocar e de produzir oficialmente, mas lay-low ia fazendo uma produção aqui e acolá, duas ou três produções por ano… E durante este tempo estive mais dedicado à informática, a minha profissão, e estava um bocado desligado do mundo da música. Mas em 2023, estava a trabalhar na Nokia, não me sentia bem, não era aquilo de que gostava de fazer. O que eu gostava mesmo era produzir e ser DJ, tocar, mixar… Foi sempre essa a paixão, só que nunca a consegui levar de forma mais a sério, profissionalmente. Então sempre achei que, se calhar, não era algo para mim. O meu irmão tinha começado a produzir mais ou menos um ou dois anos depois de eu ter começado. Dei-lhe mais ou menos as bases do Fruity Loops, foi onde começámos a produzir, e a partir daí ele fez o seu caminho. Ao contrário de mim, ele não parou e hoje está onde está.
E ele também foi inspirador para ti, por ser um exemplo de onde era possível chegar? Também te impulsionou nesse sentido?
Exactamente. E quando voltei a produzir em 2023, não entrei com o pensamento de querer fazer disto vida. Pensei: “Se meter toda a minha energia e foco nisto, acredito que vai resultar.” E foi o que fiz. Tentei produzir uma faixa por dia e elas foram melhorando. Criei uma pasta com as primeiras 16 faixas, o meu irmão ouviu, gostou e foi ele que me disse: “Se calhar podias enviar isso a algumas pessoas, por exemplo às pessoas da Príncipe e ao pessoal da Moonshine.” Enviei, sem qualquer tipo de expectativa. O pessoal da Príncipe… Eles também querem trabalhar comigo num EP, e já seleccionaram algumas faixas de que gostaram e querem fazer um projecto. Ainda não está nada fechado, está em andamento. Entretanto, o Hervé, da Moonshine, achava que eu tinha algum tipo de contrato ou acordo com a Príncipe. Como eu lhe tinha enviado aquelas 16 faixas e ele não me tinha dito mais nada, achei que se calhar ele não queria trabalhar comigo. Mas, um dia, ele encontrou-se com o meu irmão na casa dele, e o meu irmão disse-me para ir lá ter. Levei a pen com os meus sons e falei-lhe do meu projecto. “Não te disse mais nada porque achei que tinhas fechado com a Príncipe”, disse-me ele. Eu expliquei-lhe que a Príncipe tinha ficado com alguns sons mas que ainda tinha muitos outros para trabalhar. A partir daí, disse-me que tinham interesse e decidimos fazer este EP. Achei que lhe deveríamos dar o título 2006, para simbolizar o ano em que tudo começou, e este EP é mais uma forma de mostrar como está a ser feito o meu percurso. Comecei com as batidas old school, de 140 BPM, e hoje estou a fazer batidas de 130 BPM, numa vibe diferente, e tenho outras… Estou a tentar entrar em coisas diferentes, mais afro-tech. E o próximo EP há-de ter como título outro ano, 2009 ou assim.
Portanto, estás a preparar mais lançamentos com a Moonshine e o tal EP com a Príncipe.
Exactamente. Como acreditei que, se me focasse, as coisas iriam acontecer… Tentei produzir o máximo de faixas que consegui. Num ano e meio, produzi cerca de 100. Dessas 100, 11 estão neste primeiro EP. Tenho cinco para serem lançadas com a Príncipe e mais uma carrada de faixas que poderão ir para outros EPs. Quero que o nome Mano Jio cresça e estou focado nisso. Sei que é um processo que pode demorar, mas sou muito paciente. Se não desistir e continuar a trabalhar, acredito que vai funcionar da forma que quero.
Estavas a falar das diferentes sonoridades que exploras hoje em dia. Obviamente, desde 2006 que muita coisa mudou. Tanto nas tendências musicais como na forma de produção. Quando voltaste a produzir mais intensivamente, sentiste que era um mundo novo, que havia coisas novas a explorar?
O bom de ter ficado um bocado afastado este tempo todo é que ficas fora da caixa e consegues perceber o que se passa… No tempo em que deixei de produzir a sério, ouvia muitas músicas, muitos sons, para também me poder inspirar. Quando voltei a produzir, já estava familiarizado com o Fruity Loops, mas fui produzir na Maschine, que conheci através do meu irmão. Basicamente foi um processo de ter de aprender tudo de novo, para depois poder implementar lá as minhas ideias. E tenho feito 11, 12 ou 13 faixas de seguida e é como se fosse um EP. Depois recomeço. E tenho sentido sempre uma evolução. Sempre que mexo na Maschine, sempre que faço um novo som, é muito mais evoluído do que um som anterior.
Sentes que estas sonoridades que estás agora a explorar têm muito a ver com o que foste ouvindo ao longo dos anos e com a evolução do género?
Sim, durante o tempo que estive parado ouvi muitas batidas de outros DJs, beats do meu irmão, então os meus sons inspiram-se sempre nalgum lado. Vou sempre buscar um bocadinho a sons de que gosto. Se gosto de techno, posso tentar implementar algo do techno numa batida e tentar fazer uma coisa mais engraçada.
Voltando atrás no tempo: como e porque é que em 2006 começaste a produzir? Já havia pessoas à tua volta que faziam batidas?
Não, à minha volta não havia sequer ninguém que mexesse em computadores. Sempre fui uma pessoa muito curiosa com computadores, então quando comecei a mexer e tive Internet, ia a salas de chat, mIRC, etc. E sempre gostei de música, é algo que está dentro de mim, e ouvia kuduros e as batidas do angolano DJ Znobia. Gostava muito de ouvir, mas nunca quis aprender, nunca pensei nisso. Lá para 2005, ouvia muitos mixes do DJ N.K. e gostava bué. Eu usava o mIRC, em que o pessoal ia para várias salas de chat, e por acaso numa delas encontrei um username com o nome DJ N.K.. Falei com ele, disse-lhe que gostava dos mixes, ele passou-me o seu Messenger e a partir daí começámos a falar. E chegou a uma altura em que ele começou a produzir, a fazer os próprios beats dele. E quando ouvi um beat que ele fez… Fiquei mesmo encantado, foi espectacular. E fiquei curioso, comecei a perguntar-lhe como é que se fazia beats, ele falou-me do Fruity Loops. A partir daí foi começar a fazer barulho. Depois, houve uma altura em que consegui o contacto de um DJ angolano, o Cafuquena, e ele mostrou-me a base de um beat de kuduro — a partir daí foi usar a imaginação. Fui aprendendo sozinho, porque também sempre fui muito autodidacta, e fui-me desenrascando.
E começaste a partilhar as tuas faixas online?
Sim, quando comecei a ter sons completos. Na altura, era em fóruns, também enviava às pessoas no Messenger e a coisa ia-se espalhando. E ia sempre fazendo álbuns. Juntava 15 músicas, zippava, metia em .rar e enviava às pessoas.
E tocavas como DJ?
Sim, cheguei a tocar no Art, uma discoteca na [Avenida] 24 de Julho [em Lisboa]. Foi onde fiz os últimos trabalhos antes de parar.
Também tocavas os teus sons?
Não… Quando era DJ, não tocava os meus sons, tocava os sons que eles pediam, porque era o DJ de um produtor de eventos e eles queriam os sons para aqueles eventos. Basicamente era afrohouse e os sons que estavam a bater naquela altura. Agora é que só toco mesmo os meus sons, quis mesmo ser um produtor-DJ.
Tendo em conta que tens esta experiência toda, de teres começado há quase 20 anos, numa fase em que o movimento em torno desta música era muito diferente — não havia estes palcos nem editoras nem tanta gente a tocar, era algo muito mais caseiro e restrito às comunidades afrodescendentes em Portugal — como é que olhas hoje para este panorama e para a sua evolução?
No meu tempo, não havia nada disto. Não havia plataformas nem redes sociais. Hoje em dia é muito mais fácil os sons propagarem-se. Gosto da evolução que teve, e mesmo com as tecnologias é agora mais fácil produzir um som. Como sou old school, sei como era e sei como está hoje — e hoje está muito melhor. Quero pegar no knowledge do passado e adaptá-lo às coisas de agora para fazer algo diferente, para não ser tudo igual.
Estavas à espera que este movimento crescesse tanto? Tornou-se uma coisa muito maior.
Antigamente, dava para contar com os dedos das mãos os DJs de Lisboa e arredores que produziam… Hoje em dia há muitos, porque também se tornou mais fácil. Antes, para fazeres uma produção tinhas de ter um bom computador e bom material. Hoje, com pouco consegues montar um mini estúdio em casa e tu próprio podes lançar, nem sequer são precisas editoras. Com a quantidade de janelas que há hoje em dia… E também há a aceitação da sociedade. Antigamente não se ouvia, por exemplo, uma kizomba no Continente. Ou dentro de um centro comercial. Não era normal. E hoje em dia estás a ouvir batidas, por exemplo, dos Buraka Som Sistema. E isso torna muito mais fácil para os artistas espalharem-se mais, porque há mais ouvidos e oportunidades, mais festas. Antigamente, a batida era como o kuduro em Angola. Era visto como uma coisa de marginalidade e era muito difícil um cantor de kuduro viver daquilo lá. Hoje, se for um bom cantor, consegue viver na boa, porque os espectáculos estão cheios. É a mesma coisa que se tem de fazer com a batida. O que digo a alguns DJs que conheço é que os beats são bons, são dançáveis, as pessoas gostam, mas temos de fazer com que chegue a mais pessoas.
Achas que ainda há muito potencial a explorar?
Claro. O techno ou a house também começaram como algo pequeno, urbano, que ficava ali fechado. E de repente são fenómenos mundiais. E é assim que eu vejo a batida. E quem está nisto há muito tempo, quem foi pioneiro, tem de saber e temos de trabalhar todos em prol disto, para que a batida também possa ser um fenómeno mundial.