Pontos-de-Vista

Rodrigo Brandão

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Genuíno gigante gentil.

Mamão com mel — give the drummer some!

“É, eu vou pro ar
No azul mais lindo
Eu vou morar
Eu quero um lugar
Que não tenha dono
(…)
Eu quero virar
Pássaro de prata
E só voar
(…)
E quando eu cansar
Na linha do horizonte
Eu vou pousar”

(Azymuth – “Linha do Horizonte”, 1975)


Na gíria oriunda das ruas do Brasil, o termo “mamão” vai além da fruta papaya, e é usado como sinônimo de suave, easygoing, sem problema. Parafraseando o jargão quase recente do MC Bin Laden, se é mamão, “tá tranquilo, tá favorável”.

(rufos de bumbo, tom-tom, surdo e pratos)

A mesma verdade vale quando se fala do mamão com M maiúsculo.

(entra a levada: the beat goes on)

O artista nascido Ivan Miguel Conti Maranhão é famoso por seu modo leve de levar a vida e lidar com as pessoas. Sempre sangue bom, acolhedor, simpático, atencioso… um genuíno gigante gentil. Unanimidade é coisa rara, especialmente no meio artístico, povoado por egos x-large, mas o Mestre Mamão alcançou esse posto raro: nunca ouvi ninguém manifestar a mínima reserva com relação à sua pessoa. É só elogio, é só alegria.

Porém, se a delicadeza pautava seu proceder, na hora de tocar a polaridade se invertia instantaneamente. De baqueta em punho, era um paquiderme. Tinha tanta personalidade que se fazia perceptível. Perdi a conta de quantas vezes me vi reunido com outros devotos do som, ouvindo vinil, e no meio da audição, alguém dizer: “aposto que essa batera é o Mamão”, e quando vai ver nos créditos, a afirmação se confirmava, invariavelmente. 

Meu amigo DJ PG costuma dizer que o jeito de tocar do Condutor Conti é “bem rap”, e eu concordo. Além do peso pesado na pegada, a caixa estralava tipo um tapa, toda vez que ele acessava seu kit. Felizmente, a frequência com que isso acontecia era constante! Chega a ser um trabalho hercúleo o de catalogar cada sessão em que nosso Ivan invocou os deuses do ritmo. Foram tantas, que até ele mesmo, às vezes, se confundia…



No entanto, é fato que seu nome consta nos créditos de discos de quase tudo quanté medalhão da música popular brasileira (Jorge Ben, Paulinho da Viola, Gal Costa, Maria Bethânia, Raul Seixas, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Tim Maia, Roberto Carlos, Candeia, Rita Lee, Milton Nascimento, Dom Salvador, Eumir Deodato, Elis Regina, Clara Nunes, Fafá De Belém, Jair Rodrigues, Leci Brandão, e MUITO mais), além de um monte de milagres monetariamente menores, mas maravilhosos (Geovana, Hélio Matheus, Tony Tornado, Tony & Frankie, DeSavoya, Tony Bizarro, Orlandivo, Ed Lincoln, Ed Maciel, Burnier & Cartier, e Hyldon são apenas alguns).

Sem falar nas trocentas trilhas sonoras de novela, nos Youngsters do início de carreira, antes de ser apadrinhado pelo mítico maestro Erlon Chaves, ou em casos curiosos como o do suspeito álbum Som Ambiente. Atrás de uma capa genérica, sem qualquer coisa que se pareça com liner notes, se escondem pérolas aos poucos: trata-se de um trabalho praticamente instrumental, com versões veraneias de peças populares do período, que vão do hino nacional “Águas De Março” ao tema do filme O Poderoso Chefão, executadas com muito estilo por Marcos Valle e o grupo Azymuth em 1972, antes mesmo do surfista bossa nova dar nome ao trio. 

Isso aconteceria no ano seguinte, por ocasião de outro encontro dos mesmos músicos, na trilha sonora do documentário O Fabuloso Fittipaldi, dedicado ao piloto de Fórmula 1. Inspirado pela temática automobilística mesmo antes, Marcos mostrou uma faixa que consta em seu disco Mustang Cor De Sangue, de 1969, composta em parceria com o baixista Novelli, chamada “Azimuth”. A palavra designa o ponto de equilíbrio do freio do carro, no jangão dos autódromos. Regravada com o trio pra trilha, trouxe a alcunha que ecoaria mundo afora.

(a batida pára… e na sequência continua)



O que dizer do Azymuth, esse verdadeiro tesouro da música, terreno de talento atemporal, montado pelo memorável Mamão junto ao já saudoso José Roberto Bertrami (teclados), depois substituído na responsa por Kiko Continentino, e o remanescente Alex Malheiros (baixo)? A princípio grafado com “i”, como a música do Marcos Valle, o trio trocou por “y” pra evitar ser confundido com uma banda britânica epônima. Decisão sábia, uma vez que seu auto definido “samba doido” estava destinado a viajar longe por conta própria.

Mistura turbinada de fusion e funk psicodélico com feel de samba executada com excelência, a música deles muitas vezes foi mais valorizada fora de sua terra natal. Independente disso, gerou generoso catálogo, contagiou gente de todo canto, e assim seguirá, daqui até o infinito. Atualmente, estavam no meio de uma bem sucedida digressão mundial, celebrando os cinquenta anos de sua fundação.

(solo de bateria)

Provavelmente por pertencer à geração hip hop, fui apresentado ao poder e à pessoa do Mamão por volta dos anos 2000, graças à sua performance no combo de documentário/show Brasilintime, desenvolvido por B+, Eric Coleman e sua Mochilla, no qual bateristas de breaks lendários interagiram com DJs que samplearam e manipularam suas batidas. 

Prato cheio pra alguém mente aberta como o Mestre, o fluxo do filme foi frutífero de forma geral, com presenças preciosas tipo Wilson Das Neves, Tony Allen, Paul Humphrey, Derf Reklaw e DJ Premier, todos aliás já ancestrais a essa altura. Mas o encontro entre Ivan e Madlib teve demais desdobramentos. O álbum Sujinho, conjurado com o codinome Jackson Conti, cravou de vez o nome do estimado instrumentista no panteão do hip hop. Mais recentemente, a participação do Azyma, apelido carinhoso cunhado pelos próprios, na série Jazz Is Dead, arregimentada por Adrian Younge & Ali Shaheed Muhammad, reforça esse status.



(retoma o ritmo)

Semeada naquela interação inicial, nossa amizade floresceria em Tempo próprio, de acordo com o desejo dos Orixás. De 2016 em diante, o processo se acelerou. Tivemos o prazer de nos encontrarmos em alguns camarins da vida, junto a Odair José inclusive, e gerar tanto o concerto conjunto no Centro Cultural São Paulo durante a Virada Cultural de 2019, quanto a canção “Nosso Ninho”, do compacto Ivan Conti Mamão Encontra Síntese & Brandão. E tem mais coisa por vir aí…

Assim sendo, é inevitável a melancolia pela passagem de um herói que se tornou também um ente querido e um parceiro, porém me sinto simultaneamente muito abençoado e grato por todo instante que tive junto a tal entidade. Tendo em vista tudo isso, e muito mais, posso definir sua partida como um abalo sísmico nas estruturas rítmicas do país e do planeta.



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