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Fotografia: Pedro Ivan
Publicado a: 15/11/2023

O teste da auto-suficiência passado com distinção.

Malva sobre vens ou ficas: “Fazer isto sozinha tornou-se no meu maior prémio”

Fotografia: Pedro Ivan
Publicado a: 15/11/2023

Nunca se exige a perfeição num primeiro disco. O mais importante será sempre a bagagem com que se fica após o processo estar concluído e, de preferência, sentir que se conseguiu fazer algo minimamente digno dos recursos que se tem à disposição. Apenas com a sua voz, uma guitarra emprestada e um quarto, Malva conseguiu, praticamente sozinha, tudo isso e produziu aquele que, no mínimo, será o melhor disco de baixo orçamento alcançado este ano em Portugal.

Depois de esvair as dores da alma enquanto porta-voz na dupla redoma, Carolina Viana abre agora uma enorme fenda no peito para mostrar ao mundo como bate o seu coração. Envolta numa melancolia musical assente na canção portuguesa, mas com raízes tão profundas que se estendem até à bossa nova, é como Malva que se apresenta a solo num álbum de 9 pistas que, em 30 minutos, é capaz de levar às lágrimas qualquer comum mortal com a mínima sensibilidade emocional.

Em conversa com o Rimas e Batidas via Zoom, a artista revela como chegou a esta fase da sua ainda curta carreira e explica alguns dos detalhes que compõem o seu vens ou ficas, trabalho que merecerá uma apresentação ao vivo já amanhã, 16 de Novembro, no Maus Hábitos (Porto), seguindo depois para a Casa da Cultura (Setúbal, 2 de Dezembro) e Galeria Zé dos Bois (Lisboa, 6 de Janeiro do próximo ano).



Tocaste violoncelo, foste MC em redoma e tenho ideia de também te ter visto associada a teatro, estou certo?

Estás certo.

Agora assumes um papel diferente num disco a solo. Como surge o teu projeto enquanto Malva?

Acho que surge precisamente para encontrar uma linguagem individual. Simplesmente isso. Andei a escrever e a compor para teatro, mas servia uma causa que não a minha — depois acabou por se tornar minha, também. Malva já parte muito aqui de dentro, sem ter de me justificar a ninguém, porque acho que posso fazer tudo sozinha. É uma liberdade que eu decidi tentar encontrar.

Aqui és mais cantautora do que rapper e artista de spoken word, como nos habituámos a ver-te em redoma. Este é um registo que veio para ficar ou imaginas-te a ir trocando entre estas várias peles que consegues adoptar?

Eu tenho-me vindo a aperceber que, de facto… Isto também vem um bocadinho por influência do meu pai. O meu pai tem muito a mania de falar do tom, porque o tom é algo importante e é uma coisa que faz toda a diferença na forma como são entendidas as palavras que nós usamos. Cada vez mais me tem feito sentido essa ideia. Por vezes eu necessito do tom de redoma, que é um lugar que tem muito mais texto — é, sem dúvida, mais fluida a parte da escrita; há muita vontade de dizer e de falar. Em Malva tenho outro tom completamente diferente, porque há pouca palavra. Há, ainda assim, bastante letra, bastante palavra, mas não há tanta. Aqui há também uma tentativa de explorar mais o espaço entre as palavras. Nesse sentido, acho que vou continuar com as duas facetas, porque me parece que vão continuar a ser ambas necessárias [risos].

A guitarra desempenha um papel muito importante neste teu disco de apresentação. Eu imaginava escutar aqui, por exemplo, um pouco de violoncelo. Parece que há um pouco aquela coisa do romper com o passado. De que forma é que a guitarra surge nesta equação?

Tem-me sido difícil compor para violoncelo. Não sei bem porquê. Talvez esteja associado ao ensino do mesmo, porque, de facto, é uma coisa muito mais ligada à reinterpretação de obras do que à exploração da parte criativa ou da improvisação. Talvez esteja ligado a isso. Por outro lado, acho que a guitarra é um instrumento que está sempre ali à mão, de alguma forma [risos]. Acho que isto é tão verdade para mim como para uma série de outros músicos. Pegar na guitarra é muito imediato. Acho que foi isso. Eu tentei simplificar o meu trabalho, nesse sentido. Queria ter uma base harmónica, essencialmente, e não queria depender de ninguém. Portanto, lá está, a guitarra estava ali à mão [risos]. E eu encontrei nesta guitarra em específico… Ela tem cordas de aço e, de facto, faz diferença. Ela foi-me emprestada por um amigo, o Rui Lima. Quando ele ma emprestou, toda a sonoridade e o ambiente tomaram outro espaço. Isso fez-me descobrir os tais ambientes sonoros, com os quais eu não estava a 100% familiarizada. Foi tudo uma descoberta conjunta.

Que artistas ou discos dirias que serviram como referências para este teu trabalho a solo?

Essa é sempre uma questão um bocado complicada, para mim [risos].

Lembras-te do que andavas a escutar nessa altura?

É assim, eu ouço muita coisa diferente. Eu ouço muita música brasileira — muita bossa nova, MPB… Acredito que isso influenciou bastante. Posso tentar especificar alguns nomes, sei lá, como a Adriana Calcanhoto, a Maria Rita… Os clássicos dos clássicos, como o Tom Jobim. Todos eles. Acho que são esses aqueles que eu visito bastante. Depois vou ouvindo um jazz perdido por aí, que eu não sei especificar nomes [risos]. São coisas que me vão aparecendo e eu lá vou gostando. Sei lá. Ouço muitas outras coisas, eu nem sei bem. Também tento explorar muito música portuguesa, mesmo as coisas mais emergentes, vou estando sempre atenta. Acho que é por aí. Eu sou fraca nesta questão [risos].

Explica-me este título: vens ou ficas. Sugere uma pergunta, mas ao mesmo tempo é uma pergunta que parece não oferecer grande margem de escolha.

Então, primeiro surgiu-me vens ou ficas?, com o ponto de interrogação. Depois olhei melhor e não me apeteceu pôr o ponto de interrogação [risos]. Não me apeteceu, por um lado, suscitar nada nesse sentido. Ou seja, não queria levantar questões, apesar de acabar por ser inevitável fazê-lo [risos]. Mas não queria. Era quase como se fosse um universo próprio, que começa na “intro” e acaba na nota final — termina, acabou e pronto. Não interessa o que é que vem depois. Acho que fui muito por aí quando decidi retirar o ponto de interrogação. Na verdade, também há uma outra razão: a expressão é tão comum, eu penso que é utilizada por muitas pessoas, e inevitavelmente é uma pergunta, portanto o ponto de interrogação deixa de ser obrigatório ali, pois está implícito. Depois, o facto de eu o tirar — sendo que é tão implícito e tão comum ter esse ponto de interrogação — quer dizer alguma coisa por si só. Deixa essa inquietação no ar que eu gosto de deixar, porque todo o universo deste álbum é a inquietação, é a dúvida e “o que é que eu vou fazer a seguir com este turbilhão?”

Falaste-me da guitarra ser um instrumento muito prático e eu ao escutar o disco quase consigo imaginar-te sozinha no quarto a compor estas canções. Isto nasce de um trabalho muito solitário, não é?

Sem dúvida. Foi aqui, neste mesmo quarto [risos]. Aliás, toda a guitarra foi praticamente gravada aqui. Foi um trabalho bastante solitário. Toda a criação do álbum foi bastante solitária. E ainda bem! Quando digo que foi um processo solitário, é no bom sentido, pois senti-me muito bem a fazer isto. Fui eu a explorar uma linha que fizesse sentido para cada canção, basicamente. Umas foram mais imediatas, para outras se calhar fui buscar coisinhas que já tenho de outros tempos. Juntei umas nas outras e fez sentido.

É um álbum com uma carga emocional muito grande. Foi fácil lidar e expor estas questões através da música sem teres outra pessoa para te ir acompanhando no processo?

Eu cheguei à conclusão de que a parte mais gratificante e fácil foi a partir do momento em que decidi que ia fazer isto e comecei a fazer. Desse momento até à última gravação/produção foi maravilhoso [risos]. Eu esforcei-me muito, soube-me mesmo bem e não senti falta nenhuma de orientação. Foi uma liberdade fixe. Agora, o que aconteceu antes e o que aconteceu depois já é uma história completamente diferente [risos]. Acho que antes estava numa frustração gigante, porque queria efectivamente ajuda para fazer isto. Não sabia para que lado havia de me virar. Precisava de orientação. Mas, como já tenho dito, contei com a ajuda da minha grande amiga Joana, que me deu na cabeça, assim, à séria — “Pára com isso! Faz só. Se não tens ninguém para te ajudar, fazes sozinha.” Esta foi a frustração pré-criação. A frustração pós-criação foi a de partilhar isto, de estar a expor esta profundidade toda completamente sozinha, porque não posso dizer que veio de outra pessoa qualquer, pois não veio, é mesmo minha [risos]. Aí sim, talvez tenha sentido a falta de alguém junto neste projecto, mas estou-me a aguentar.

Acaba por ser um win-win. De um lado tens a questão terapêutica, de canalizar esses sentimentos através da música, do outro vences a tua insegurança de trabalhar sozinha, monstrando a ti mesma que consegues fazê-lo.

Sem dúvida nenhuma. Fazer isto sozinha até se tornou no meu maior prémio. Fiquei mesmo orgulhosa e satisfeita de ter conseguido chegar até ao fim. Lancei e está feito. Essa sensação é muito boa.

Falaste também numa certa frustração na pós-criação das canções, quando as começas a partilhar. Quando é que este projecto deixa de ser apenas teu e passa também a ser do domínio daqueles que te são mais próximos? E que influência teve esse processo de dares a conhecer o que andavas a fazer?

Olha, eu fui muito sorrateira [risos]. Mesmo muito sorrateira. A Joana, por exemplo, que é a pessoa em quem eu mais confio para ouvir, só ouviu praticamente no fim e nem ouviu tudo logo, só uma ou outra. Eu fui enfiando cada vez mais na cabeça que queria fazer tudo sozinha. Porque, às vezes, as opiniões, mesmo vindas de amigos, são difíceis. Mostras a um e ok, diz-te qualquer coisa. Mostras a outro e diz-te uma coisa completamente diferente. E pronto, depois não sei para que lado me hei-de virar [risos]. Foi por isso que resolvi manter mesmo bastante sigilo até ao final. A malta sabia o que eu andava a fazer, só não ouvia [risos]. Fui partilhando uma ou outra, de vez em quando. Mas foi mais no final do processo, quando estava a terminar tudo, em que comecei a sentir que estava a ficar uma coisa mais coesa. Nessa altura mostrei uma ou outra. Até lá, ainda nem eu estava a acreditar a 100% que valia a pena.

Fala-me um pouco sobre quem colabora contigo aqui e de que forma é que esses inputs se fazem sentir nas músicas. Nos créditos, vi lá os nomes do Luís Duarte Moreira, Joana Rodrigues e Zé Poças (aka zé menos).

O Zé misturou e masterizou todo o álbum. Eu já estava super-convencida de que ele ia fazer um bom trabalho, porque já o tinha feito em redoma e eu gosto imenso da sensibilidade dele — porque é necessário ter essa sensibilidade e ele tem-na. Se eu puder, trabalho para sempre com ele [risos]. Eu acho que ele teve algum peso, para já pela disponibilidade que ele tem em ouvir e em tentar entender exactamente o que é que uma pessoa quer — neste caso, o que é que eu queria com o meu álbum. E ele também tem a sua própria sensibilidade e vai dizendo: “Mas o que achas desta coisa aqui?” Portanto, sim, grande zé menos, grande Zé Poças. Gosto muito dele. A Joana produziu comigo a faixa “como se início” e ela também foi muito essencial, porque eu estava a dar essa faixa quase como perdida. Não estava a encontrar exactamente aquilo que eu queria e ela deu-lhe ali a volta da forma que era necessária, que ela faz muito bem. Depois, o Luís, deu-lhe aquele vozeirão na “manhã”, que é uma caminha muito confortável e que eu acho que ficou super-bem. Num todo, eu gosto de sentir que, de certa forma, estas pessoas, que são importantes para mim, fizeram parte do álbum, do processo, mesmo que só em pequenos apontamentos. O que importa é que estão lá e essa é, também, um bocado uma metáfora para todo o processo que motivou o álbum.

Em redoma tinhas editado pela Biruta, mas agora para este álbum juntaste-te à MORADA.

Exacto. Eles ajudaram-me na parte da comunicação. Não estou propriamente como estou com a Biruta. Mas sim, associei-me a eles. Também já tenho trabalhado com a INÊS APENAS e ela faz parte da MORADA. Fez-me sentido, até porque eles também estão a emergir agora e a lutar bastante para pôr os artistas aí a bombar.

Tens concerto de apresentação marcado para o Maus Hábitos no dia 16 de Novembro. Como estão a correr os preparativos? Em que formato é que te apresentas ao vivo enquanto Malva?

Para este concerto vou levar uma guitarrista, chamada Catarina Estácio. Isto porque eu percebi que sozinha ia ser tenso para mim [risos]. Eu prefiro focar-me na parte vocal do que estar a ter os dois focos. Não é que eu não consiga. Eu consigo, mas fica frágil. Sinto-me muito melhor neste formato. E eu, de vez em quando, também complemento com outra guitarra. Portanto há momentos em que estamos as duas a tocar. Tenho-me preparado pela calada — mais pela calada, novamente [risos]. Já fiz um ou outro concerto assim, com pouca promoção à volta. Tenho usado este formato e os três concertos que já aconteceram correram bastante bem. Então espero que no Maus Hábitos também corra tudo bem.


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