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Fotografia: Beatriz Silvestre
Publicado a: 21/11/2025

Um jovem que jorra arte.

Malammore: “A música é parte da emancipação num mundo estagnado em que o tempo está a contar”

Fotografia: Beatriz Silvestre
Publicado a: 21/11/2025

Sandro Feliciano tem 20 anos, mas fala do tempo como quem pacientemente já aprendeu a escutá-lo. Cresceu entre o teatro e a poesia — duas linguagens que se tornaram, desde cedo, formas de pensar o mundo e de nele se imaginar. Entre essas duas expressões — o corpo e a palavra, a fisicalidade do palco e a interioridade do texto — surgiu também a música. E com ela nasceu Malammore, o nome que escolheu para habitar o território onde tudo se mistura: o que sente, o que observa, o que o inquieta enquanto indivíduo e enquanto jovem num país onde a sensibilidade é tantas vezes desvalorizada.

É esse corpo múltiplo de ideias que agora se materializa em “Tudo Passa”, o single que antecipa Aurora, o álbum de estreia que se aproxima, e onde ecoam as tensões, dúvidas, urgências e apostas que o atravessam. Nesta entrevista regressa a alguns pontos do caminho, fala do processo que o trouxe até à música, da convivência entre arte, teatro e escrita, e do modo como cada uma dessas linguagens o ajuda a pensar — e a não ceder ao ruído dos dias.

Diz-nos também — já à margem das perguntas que preparámos — que a esperança será uma palavra importante no disco que virá. Não porque ela esteja sempre presente — pelo contrário — mas porque, mesmo quando esta falha, insiste em continuar a procurá-la. Afinal, como canta em “Tudo Passa”, é preciso acreditar no que antes se sonhou. Quiçá Aurora nasça dessa persistência em encontrar luz num tempo que passa depressa demais e onde permanecem tantas feridas em aberto. Fiquemos atentas, que esta Aurora promete.



Comecemos pelo início: nasceste em Lisboa em 2005, cresceste entre o Forte da Casa e a Póvoa de Santa Iria, viveste os primeiros anos sob tutela do Estado até seres adotado em 2008 — algo que descreves como um “marco decisivo” na tua identidade. Como é que este percurso de vida molda o modo como a arte entrou na tua vida e como é que ela se tornou um espaço de pertença e construção pessoal?

A adoção é um reset. Posso dizer que o Sandro Feliciano nasce em 2008, e esse momento é uma rutura em relação ao que seria a previsão da sociedade sobre uma pessoa que nasce nas condições em que eu nasci. A partir desse momento, a arte entra na minha vida porque os meus pais sempre consumiram muita arte, principalmente livros e música, e mais tarde teatro. Toda a minha casa sempre foi uma galeria.

Iniciaste-te no teatro aos sete anos, passaste pelo Grémio Dramático Povoense até aos catorze e depois pela Escola Profissional de Teatro de Cascais. Estreaste-te recentemente também no Teatro Nacional D. Maria II com Casa Portuguesa, do Pedro Penim. Antes de chegarmos à música, de que forma o teatro foi importante no teu percurso pessoal e artístico?

Eu sempre fui um miúdo que fez muitas atividades extracurriculares. Aos sete anos comecei com aulas de teatro e estive lá até aos catorze. Depois entrou a pandemia e fui estudar teatro para a Escola Profissional de Teatro de Cascais (EPTC). Após dois ou três anos a estudar teatro, decidi que queria ser ator. Foi mesmo uma decisão. Comecei também a achar — e ainda acho hoje — que o ensino regular não beneficia a arte, ou que não beneficia o desenvolvimento de uma mente mais criativa. Comecei a ter dificuldades na escola a partir do 7.º ano e percebi que o ensino regular não era para mim, que queria mesmo ser ator. Fui procurar escolas e decidi inscrever-me na EPTC. Adorei os três anos que estive lá. No segundo ano, aos dezasseis anos, fiz um casting para o Teatro Nacional D. Maria II e acabei por ficar selecionado. A partir daí, felizmente, estou há três anos a trabalhar enquanto ator. Era o meu sonho e espero continuar.

Paralelamente ao teatro, a palavra escrita também te acompanha desde cedo. Quando é que começas a escrever, quem foram as tuas primeiras referências e que papel teve e tem a escrita como ferramenta de autoconhecimento?

Sim, a escrita acompanha-me desde muito cedo. Sempre li muito e, além de ser muito fã da estrutura da poesia, era obcecado com o Fernando Pessoa. A partir daí comecei também a escrever muitos poemas, mas nunca pensei em musicá-los. Isso aconteceu mais tarde, aos 14 ou 15 anos. Até lá só escrevia. A escrita é uma forma de eu me compreender a mim próprio e representa muito as várias fases da vida. Sei que estou pior ou mais stressado se não escrever. Se escrever, significa que estou muito mais relaxado e tranquilo em relação ao que se passa à minha volta. Significa que estou a conseguir resolver as coisas. A escrita traduz-se na resolução de pensamentos e das minhas reflexões.

Entre o teatro e a escrita, aparece então a música — e surge Malammore. Como é que esta transição acontece e em que momento percebeste que querias transformar a palavra escrita também em som e imagem? E como é que a palavra se manifesta de formas diferentes nestas três linguagens?

O teatro sempre foi o sonho e o objetivo. A escrita era uma forma de me expressar. Quando estava na EPTC apaixonei-me e escrevi pela primeira vez uma música — escrevi um poema e tentei musicá-lo. A partir daí comecei a explorar a música e nunca mais parei. Eu gosto muito de música, de perceber as sonoridades, de compreender os beats. E, apesar de ter pouco conhecimento musical, gosto do processo de encontrar caminhos dentro da música, de perceber formas de alcançar um resultado que me agrade. Acho que o Malammore surge aí. O nome vem de uma personagem da série italiana Gomorra, e também dessa ideia de malammore — mau amor, mal amado. Vem muito desta sensação amarga de como o amor pode estar presente na nossa vida. Acima de tudo, gosto muito mais de dizer que sou letrista ou poeta do que propriamente músico ou cantor, porque não me sinto músico ou cantor. Pelo menos até hoje, porque tenho pouco conhecimento musical.

No entanto, em 2025 apresentaste-te musicalmente com três singles: “Dia 26”, “NQQC” e “Raging Bull”. Que lugar ocupam estes primeiros lançamentos no teu crescimento artístico e qual a importância que tiveram na identidade musical que queres construir?

A “Dia 26” saiu em 2024, a “NQQC” no início de 2025 e a “Raging Bull” um pouco mais tarde. Mas antes desses singles já havia muitas outras músicas que foram sendo gravadas em estúdio com o Rodrigo [aka No Icon] e que não fez sentido lançar. A “Dia 26” foi a primeira porque é uma música que, pelo beat e pela sonoridade, nos fez acreditar no single — até mais do que a letra em si. Foi a batida que nos fez achar que era uma boa forma de arrancar. É curioso também que as músicas não surgem pela ordem em que foram escritas. A “Dia 26” já tinha muito tempo, a “Raging Bull” é das mais recentes, a “NQQC” é mais antiga. Mas achei que todas elas foram formas de me fazer crescer, de ter menos vergonha de expor a minha forma de pensar, de agir, de estar. Não sei bem como caracterizar as três músicas, porque acabam por surgir em situações muito diferentes, com ambientes e temas muito distintos. Mas todas elas expõem um pouco de tudo aquilo que sou. A “Dia 26” é mais pessoal, a “NQQC” tem maior consciência e a “Raging Bull” é mais festiva.

Chegamos então a “Tudo Passa”, o single que agora estreias e que antecipa o teu primeiro álbum. O que representa esta canção no teu percurso pessoal e artístico?

A “Tudo Passa” chega já numa fase muito diferente. Já com algum tempo de distância de tudo o resto, com um apoio diferente do que tive até então. Fui falando com várias pessoas mais ligadas à música que me foram dando dicas, contexto, informação, formas de trabalhar e de gerir. E agora, finalmente, sinto-me preparado para lançar o álbum. Foi uma ideia que foi surgindo com o Rodrigo [No Icon], mas sempre com muita calma, sem grande pressa para lançar. Havia sim a vontade de cada um dar o melhor de si, de acreditarmos os dois em todas as músicas. A “Tudo Passa” é provavelmente a música em que nós os dois mais acreditamos. Acho que também pelo gozo que nos deu fazer e gravar. É uma música com muita letra, sem refrão. Foi uma música desafiante que nos deixou extremamente contentes com o resultado. Para nós foi um projeto super bom, foi dos primeiros projetos que me fez dar o salto. A “Tudo Passa” também nunca foi uma letra toda junta: houve poemas que fui recortando e trazendo para aqui.

A música abre com uma imagem: “Abro o álbum e vejo uma foto do William Klein”. Que foto é esta, porque te marcou e como orientou o processo de escrita e composição do tema?

Este ano houve uma exposição do William Klein no MAAT e essa foi a fotografia dele que mais me chocou. É uma criança com uma cara de raiva para a câmara e a apontar uma arma. Essa imagem fez-me pensar de onde surge essa raiva e também como é que eu escondo a minha raiva. Fez-me pensar sobre a forma como as crianças e a juventude têm sido desacreditadas por parte do Estado e da educação. Acho que foi a partir daí que a música surge. E chama-se “Tudo Passa” porque essa raiva, essa dor, tudo isso que nós passamos na juventude — enquanto não conseguimos compreender o mundo na totalidade (se é que alguma vez conseguimos) — também passa. Acho que o tempo atualmente passa rápido. Fiz 20 anos recentemente. Não acho assustadora a questão da idade, mas acho interessante como o tempo passa, como tudo passa. Há, no entanto, uma coisa que me tem assustado. As pessoas dizem que o tempo cura, mas atualmente não sinto que o tempo esteja a curar o mundo. Acho que o tempo está a passar e estamos a deixar a ferida aberta.

Disseste que esta canção traduz “a luta diária para não ceder ao populismo”, para te/nos afastarmos “do ruído constante dos media”, numa busca “quase renascentista por um pensamento mais livre”. Falas, também, de uma sociedade “entorpecida”, onde a arte “perde espaço e visibilidade”. Que papel acreditas que a arte — e a tua música em particular — pode ter neste momento?

Neste momento, nenhum. O mundo está tão polarizado que não acho que este tema em específico possa agregar ou fazer pensar em algo que alguém nunca tenha pensado. Quem tiver uma visão idêntica irá identificar-se; quem não tiver, espero que consiga ver valor no que faço. Mas não olho para esta música com um papel importante. Espero que possa ter, mas não consigo olhar para ela assim.

Ao mesmo tempo, a letra parece mover-se entre o registo íntimo e uma ânsia de falar para o coletivo. Citando um excerto: “Dou conselhos a quem ouve, mas também olho para dentro e me englobo nesses conselhos.” Como é que trabalhaste este duplo movimento de reflexão coletiva e sociopolítica, e ao mesmo tempo de autoconhecimento e partilha pessoal?

O mundo está em constante mudança e, consequentemente, a minha visão também. Estou sempre a aprender e sou também crítico em relação às atitudes que tomo. Aproveito as letras para alertar sobre os meus erros, que são também comuns aos meus semelhantes — e com isso refiro-me aos jovens que passam todo o processo da adolescência e desta tentativa de compreender o mundo.

Há também versos sobre o lugar da cultura: “Portugal jorra arte, jorra arte por toda a parte, mas o Estado não investe na criatividade”. Entre a vitalidade criativa do país e a falta de investimento estrutural, que mudanças consideras essenciais para que a arte e a cultura tenham condições reais de crescimento e sustentabilidade em Portugal?

Existem várias formas de arte e investimentos diferentes para cada tipo de arte. Uma arte que distrai e adormece tem mais investimento do que uma que faça pensar. E há um fator fundamental para o consumo da arte: a educação. Desde que nasci, ou seja, em 20 anos, não houve nenhuma reforma significativa que acompanhe os tempos e as rápidas alterações sociais, tecnológicas e até cognitivas. A arte só tem valor quando é apreciada. Se não somos ensinados a apreciar arte, ela vai perdendo valor ao longo do tempo. Fernando Pessoa, por exemplo, não é apreciado pela juventude nem pelo povo comum — e menos será pelas novas gerações. Numa época em que a pátria está supostamente em risco, segundo algumas visões, acho que é muito hipócrita vivermos num país que pouco ou nada valoriza de facto a sua identidade. Faço muito essa comparação com Espanha, onde crianças vibram com flamenco, dançam, sentem. Cá, o fado é uma seca para a juventude, o cante alentejano é distante, os grandes nomes portugueses na história da arte são conhecidos, mas não reconhecidos ou sequer entendidos. Tudo porque não os ensinam — e não querem ensinar — às várias gerações.

Outro eixo da música é a consciência do tempo, onde tanto cantas que “passas o tempo a ver a vida a passar, com a cabeça a girar”, como ao mesmo tempo dizes que não te afliges com o perigo porque “desistir não é lema para quem quer lutar”, para quem “magica maneiras de se emancipar”. Nessa tensão entre sentir o tempo a escapar e a vontade de luta e emancipação, que papel tem a música nesse processo de te reconciliares com o teu próprio tempo?

A música já é uma parte dessa emancipação: o facto de não parar e de estar sempre à procura de me completar — seja a consumir ou a fazer arte — é a emancipação em relação a um mundo estagnado, mas onde o tempo não deixa de contar.

A produção do tema é assinada por No Icon. Como nasceu esta parceria e que linha estética procuraram na construção deste single?

De facto, este single tinha um desafio. Desde início, o facto de não ter refrão fez-me sentir que era um beat que carecia de muitas palavras e que o diferencial seria justamente a lírica. O Rodrigo foi a pessoa que mais acreditou no pouco material que eu tinha quando lhe apresentei algumas gravações de músicas feitas em casa e alguns poemas no caderno. A partir daí surgiram mais músicas que culminaram num álbum e numa amizade.

Finalmente, “Tudo Passa” abre o caminho para o teu álbum de estreia, que se chamará Aurora. Que direções sonoras, poéticas e visuais estás a construir? Já há previsões para lançamento?

Sim, o álbum já está preparado e finalizado. Sinto-me muito realizado com o resultado. É uma mistura de sonoridades — desde o boom bap à suavidade da guitarra portuguesa — e expressa muito aquilo que sou e os meus gostos.


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