[TEXTO] Núria R. Pinto
Não há outra forma de se começar a escrever sobre Mal dos Trópikos sem ser de repente. O que é completamente contrário à forma como se deve ou se consegue absorvê-lo, na verdade. Arrisco-me a dizer que este Mal dos Trópikos, diagnóstico com grafia adaptada para servir as maleitas da Geração Y, talvez deva mais ao campo das doenças auto-imunes do que propriamente à Medicina Tropical. Metáforas à parte — coisa que rapidamente perceberão que não falta à lírica de Makalister –, o primeiro álbum do rapper de Santa Catarina é uma viagem pela vicissitudes de se ser humano e se pensar a própria existência. Se a ignorância é uma benção, abdicar dela é definitivamente um caminho sem volta, muitas vezes duro e cheio de questionamento próprio do existencialismo. Seria muito mais simples se conseguíssemos pôr as coisas de outra forma, mas de simples a vida tem muito pouco. É também por isso que atravesso com a necessidade de uma análise repentina: há tanto para se pensar, que mais vale começar logo do que correr o risco de nunca se saber qual o ângulo certo. E por repentina, quero dizer quatro meses.
“Do meio da culminação de tudo que é comum, me exijo fora
(…)
Postura de inimigo público
Todos contra o sozinho que se entrega aos carinhos místicos da colina
Na maratona de queijo e vinhos, eu desisti no meio do caminho
Exausto pelo próprio vício no pífio destino
Meu bonde joga foda e quando lançar as obras, mixtapes
Precisarás de replays pra entender os dizeres
E também um reset nas peças do tabuleiro”
– “Quando Observo a Cruz de Folga (Na Maratona de Queijos e Vinhos)”
Mal dos Trópikos, Construindo a Ponte da Prata Roubada é um ponto de viragem para Makalister Antunes: três mixtapes depois, o MC de São José, Santa Catarina, chega com um álbum que se posiciona como uma peça fora do tabuleiro do jogo dos hits de consumo fácil. Revela-se, sim, um clássico instantâneo do hip hop contemporâneo brasileiro. Ávido consumidor do cinema independente, (o próprio já confessou que só não faz filmes pois acha que não tem os meios para isso) baptizou o álbum de estreia a partir do filme tailandês de Apichatpong Weerasethakul, Mal dos Trópicos; “Sud Pralad” na versão original. A vida, a morte e a transformação são as questões essenciais da longa-metragem de 2004, onde o quotidiano tailandês se mistura com os The Clash e o Quem Quer Ser Milionário e, num ambiente fantasioso, se abordam questões tão profundas como a percepção de apenas existirmos porque somos trazidos à existência pelo “outro”, a procura do auto-conhecimento que o amor que sentimos por alguém nos impõe ou a promíscua relação entre o nosso lado humano e o lado animalesco.
Não só nas temáticas se encontra o paralelo entre os dois “males”: a banda sonora do filme está cheia de cortes e finais abruptos, variações melódicas que marcam o ritmo da narrativa e muito deve à música concreta. Características que Makalister se apropria quando em faixas como “Corpos de Cera no Incêndio” rima por cima de uma fogueira que arde durante quatro minutos intercalada por um sample de Beto Guedes. Ou quando em “Sêm Folego” nos coloca perante uma plateia que poderia perfeitamente estar a assistir a um duelo de boxe na faixa feat. com o gigante Aori.
Aqui serve-me a imaginação e essa é também a parte boa de se ouvir um álbum-filme ao estilo “tire as suas próprias conclusões”. Não é isso, também, que nos pedem os quadros no Louvre?
É ainda em “Sêm Folego” que Aori faz a Makalister o favor de definir aquilo que se ouve em Mal dos Trópikos: por detrás desta linguagem culta continuamos a ouvir poesia chula. Passeamo-nos pelas questões de amar em tempos de mensagens não lidas e scrolls infinitos no café, na faixa “Da Era do Amor Virtual”, ou pela impotência em relação aos males da globalização e da alienação em “Synedoche Linhas Pífias”.
O foco vem na forma como a cultura e a arte se deixam corromper e acabam por criar modelos que em nada servem ou representam a identidade brasileira. Por outro lado, o rapper Matéria Prima — mais um dos representantes da velha escola — acaba a deixar cair linhas que obrigam os novos MCs a repensar se o que importa realmente é perceber quem se manteve fiel desde o início ou insistir no propósito social com o qual o rap se comprometeu.
Já “Bobby James” é uma das baladas melhor polidas que o rap brasileiro produziu em 2018: juntam-se três timbres distintos num mesmo ambiente povoado por riffs de guitarra, uma batida boom bap e coros em auto-tune à distância, para criar uma faixa daquelas em que é muito difícil resistir ao replay.
“As lojas se fecham, os bares se abrem, os pares se partem
Ocupam suas noites com tablets
O calor é mobile(…)
Da era do amor virtual
Fizeram do amor ritual
Onde os dogmas laçam e os androides se abraçam
Castos e cultos
Tudo é hologrado, inorgânico, mudo”
– “Da Era do Amor Virtual”
Em Mal dos Trópikos, há espaço para todas as dualidades: para o velho e para o novo, para o real e o ficcionado, para a questões do eu e do nós. Jovem Maka trouxe para um trabalho produzido quase inteiramente por si incontornáveis como Aori e Matéria Prima, representantes do underground brasileiro como Jovem Esco, Jeffe ou Reis do Nada e aqueles que hoje encabeçam os tops de visualizações como Froid, Luccas Carlos ou Diomedes Chinaski.
Ao lado do produtor Arit e com mistura e masterização a cargo de Eliefi, samplou faixas de Beto Guedes, do japonês Shigeo Sekito ou dos conterrâneos Dazaranha para criar ambientes que se movem entre a subtileza orgânica e a agressividade electrónica banhada a auto-tune.
Mal dos Trópikos é um disco que se deve ler. É um bom livro. É um bom filme, daqueles que, por norma, nos obrigam a puxar um pouco atrás para encaixar as mensagens ou que terminam de forma abrupta para nos obrigar a tirar as nossas próprias conclusões. Um filme de amor e de futilidades, de tecnologia e alienação, de depressão e suicídio. No fundo, uma espécie de obra-prima pela qual se guiaria uma refinada raça humana do século XXI se o principal mal (e conforto) do homem não fosse a dor de pensar a sua própria existência.