Qual a distância entre o interior e o litoral? Entre a montanha e a planície? Entre o campo e a cidade? A paz e o bulício? A memória e a acção? Às vezes, mas só às vezes mesmo, a melhor resposta para este tipo de perguntas é a música. Não toda a música, obviamente, mas alguma música que habita esses espaços liminares que se abrem entre o que é imaginado e o que se afigura possível, essa música que elimina essas distâncias quando se posiciona no centro de todas essas coordenadas — entre o que existe lá longe e o mar, entre os montes e os terrenos planos, entre os lugares onde há mais terra do que cimento e aqueles outros onde o inverso é verdade e, sobretudo, aquele sítio exacto entre o que se recorda interage directamente com o que ainda não aconteceu. No sábado, na penúltima jornada do festival Jazz em Agosto que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, esses complexos e no entanto tão simples caminhos foram trilhados pelos portugueses Made of Bones e pelos americanos Being & Becoming de Peter Evans.
Pelo fim da tarde, no Pequeno Auditório da Fundação, os Made of Bones foram os primeiros a entrar em acção. O baterista Duarte Fonseca, o guitarrista João Clemente, o teclista Nuno Santos Dias e o contrabaixista Ricardo Sousa expuseram em palco o tutano da sua arte com uma refinadíssima performance, vibrantemente eléctrica e plena de imaginação. O grupo integra o ultra-criativo e prolífico “viveiro” Profound Whatever, editora que a partir do Portugal profundo, onde de facto pulam muitos lobos e demais bicharada, tem debitado a um ritmo alucinante alguma da mais criativa e livre música deste nosso plural presente. João Clemente é um dos denominadores (in)comuns nessa operação, bem como o homem do extraordinário Waldorf Zarenbourg, piano eléctrico que pensa que é guitarra e que faz chover poeira cósmica quando é bem tocado, como foi, realmente, o caso.
Genera of Birds, o mais recente documento discográfico deste abrasivo quarteto que evoluiu a partir dos Slow is Possible, foi o ponto de partida para a viagem em que levaram o público atento que esgotava a sala da Gulbenkian. A música dos Made of Bones é complexa, gizada ao detalhe, mas ainda assim plena de liberdade. Como é óbvio, ajuda — e muito! — que estes músicos se conheçam de ginjeira. Clemente e Santos Dias, por exemplo, ainda recentemente lançaram Glass Shards Imagination, exploratório registo em duo em que exibem um sincronismo de luxo que no concerto do Jazz em Agosto foi também mais-valia evidente. A sustentar essas torrentes harmónicas oferecidas pelo guitarrista e pelo teclista está uma sólida e granítica fundação rítmica. O facto de ser sólida, no entanto, não a impede de ser também imaginativa, propulsiva, diligente e maleável. As cadências fluídas que Duarte Fonseca arranca ao seu kit e que Ricardo Sousa arredonda com classe são uma espécie de território amplo e neutro por onde João Clemente e Nuno Santos Dias deambulam livremente, sempre em busca do encaixe perfeito, sempre absolutamente desinteressados em seguir numa única direcção, investindo antes em discursos pluri-idiomáticos que bebem no rock, obviamente, mas também no jazz, no funk, no hip hop, na música para cinema (olá Morricone), e nalgumas tradições de latitudes “exóticas”.
Deveras entusiasmante a prestação destes Made of Bones, que para lá de ossos se fazem também de nervos e músculo, de cérebro e sistema nervoso ultra-sensível. O deleite que estes quatro músicos têm em criar em conjunto é óbvio e contagiou sem problemas quem do lado de cá, confortavelmente sentado na plateia, fechou os olhos e de repente deu por si numa outra paragem qualquer. E lá fomos nós, transportados pela música para um lugar que só existe quando a imaginação está aos comandos.
Depois de um jantar retemperador, a noite de temperatura amena prometia outra das actuações que deste lado se aguardavam com maior curiosidade e interesse — a dos Being & Becoming, projecto comandado pelo trompetista norte-americano Peter Evans. Com o magnífico Joel Ross no vibrafone e os não menos excelsos Kick Jozwiak no contrabaixo e Michael Shekwoaga na bateria, Evans exibiu Ars Memoria, o mais recente trabalho do quarteto, lançado em 2023 na More is More.
O nome da editora do mais recente registo destes Being & Becoming seria perfeito para descrever o kit de Michael Shekwoaga, certamente um dos mais complexos levados a palco neste festival, com uns vistosos címbalos elípticos e muito metal afinado a dar-lhe um som peculiar de que o baterista se socorreu para preencher todos os espaços disponíveis. Ainda assim, o seu estilo maximal nunca atropelou os companheiros — pelo contrário, a sua abordagem encaixa bem na verdadeira máquina de fazer grooves que é o contrabaixista, uma fonte inesgotável de bom gosto que deixou marca subtil, mas real, no final do concerto — e não apenas por causa dos seus expressivos solos, mas pela clara capacidade de circular entre os discursos dos diferentes companheiros com à-vontade e sempre com empatia que engrandecia o colectivo. A proposta de Evans neste projecto é clara. No breve texto que no Bandcamp acompanha a edição de Ars Memoria, esclarece-se que “a música deste disco foi trabalhada, tocada e aperfeiçoada ao longo de dois anos”. Ou seja, quando a audiência sente que o que está a acontecer em palco resulta de criação espontânea, é preciso ter em conta que essa capacidade de improviso é sustentada por estruturas pré-definidas e buriladas com máxima atenção.
Dentro dessas estruturas, Evans foi o mais generoso dos guias, apontando caminho aos seus mais jovens companheiros de viagem, deixando-lhes amplo espaço para exibirem os seus dotes. E aí, Joel Ross brilhou de forma intensa. O vibrafonista é uma das estrelas do mapa presente do jazz norte-americano e o estatuto é plenamente merecido. Dono de uma invulgar capacidade discursiva, de um som cheio, brilhante e agradável, Ross tem argumentos de sobra para ombrear com um líder que, francamente, é um dos génios que empurra este presente na direcção do futuro. É por aí, aliás, que se deve ler o nome do grupo: “ser e tornar-se”, presente e futuro, certeza e incerteza. Sempre desafiante na forma como aborda o seu instrumento, Evans voltou a mostrar que há muito mais sons dentro (e fora…) do trompete do que se poderia julgar, arrancando ao instrumento drones texturais de enorme originalidade e, em paralelo, mostrando também que ainda faz sentido apresentar ecos da tradição na música nova com que nos presenteia. Uma delícia absoluta esta performance, maneira perfeita de nos levar ao fim do penúltimo dia do 40º Jazz em Agosto.