Digital

Mach-Hommy

Pray For Haiti

Griselda Records / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 01/06/2021

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Apesar da considerável distância – afinal de contas há de permeio, pelo menos, um oceano, toda uma cultura, um par de décadas de diferença de idade e uma tremenda falta de melanina de quem escreve estas linhas… –, é impossível não confessar o fascínio que alguém como Mach-Hommy consegue exercer: de cara tapada com uma bandana, o rapper de Nova Jérsia reafiliado com o universo Griselda tem mostrado um desprezo total pelas “normais” regras de funcionamento do mercado da música manifestado, por exemplo, na peculiar política de aplicação de preços às suas ultra-limitadas edições físicas: o test pressing de Wap Konn Jòj! foi vendido a 1,111.11 dólares, opção que o próprio artista justificou de forma lacónica – “não quero que isto caia nas mãos erradas”… De igual forma, o rapper tem gerido com mão de ferro a distribuição da sua obra (tentem lá encontrar as letras deste novo álbum no Genius…) e nem sequer um encontro com JAY-Z o demoveu de funcionar de acordo com as suas próprias regras. O mundo é esse lugar em que Mach-Hommy faz o que Mach-Hommy acha que deve fazer. E neste momento, ele quer rezar pelo Haiti, lugar que, como muito bem avisaram Caetano e Gil, não é aqui. A distância é, portanto, ainda maior… Hommy, porém, deseja encurtá-la e por isso fez saber que 20 por cento de todo o dinheiro gerado pelo álbum, incluindo proveitos de eventuais concertos, streaming, publishing e merchandising, serão entregues a uma instituição que trabalha no Haiti para ajudar na formação de futuros especialistas em programação informática. Ou seja, é bem capaz de ser possível mudar o mundo para melhor com uma rima sobre crime de cada vez.

Com produção-executiva de Westside Gunn e beats carimbados por gente como DJ Green Lantern ou vários dos in-house producers da Griselda – Conductor Williams, Cee Gee, Camouflage Monk –, Pray For Haiti é um mural psicadélico que combina um lisérgico sentido de distorção da realidade com uma tremenda força vocal que não se expressa em músculo, mas em subtileza: Mach-Hommy sabe que a sua voz é um instrumento, uma ferramenta, mas também uma arma afiada. Explorando as suas raízes culturais haitianas (há até a inserção de material de um debate académico sobre a riqueza do crioulo) através da língua, mas também da sua particular experiência, Mach-Hommy desfere rimas sobre instrumentais de vocação cinemática, com mais expressividade melódica e harmónica do que rítmica, de toada jazzy. O que importa aqui são as barras, a clareza sónica do discurso, a atmosfera desenhada, o fumo que envolve a voz e a luz que se revela nas histórias.

Com pouquíssimas colaborações – escutam-se apenas as vozes de Melanie Charles, Tha God Fahim e Keisha Plum num par de temas além da de Westside Gunn, o “maestro” de serviço neste projecto que espalha barras em três momentos distintos (uma bem-vinda surpresa tendo em conta que Hommy, inicialmente próximo da Griselda, parecia ter tido um desaguisado com Gunn que resultou num afastamento) –, Pray For Haiti vive sobretudo da imensamente carismática presença de Mach-Hommy, capaz de cuspir barras ou cantarolar como se nem sequer soubesse que o microfone está ligado, de trocar de registo narrativo ou até de oscilar entre línguas: “not like the rest of these bums, multilingual/ thought you was the best on the drums? Meet Ringo”. Essa versatilidade firma-o como um dos mais sérios valores dos subterrâneos desta cultura, bem mais sério do que inicialmente se poderia pensar tendo em conta as tais opções aparentemente estranhas de gestão de carreira. Mas quem recebe assim atenção de Jigga e se mostra capaz de reconstruir pontes com um dos mais dinâmicos e criativos colectivos da última década sabe muito bem o que está a fazer. E Pray For Haiti é, para já, um dos melhores discos do ano.


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