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Fotografia: Guilherme Heneni
Publicado a: 04/04/2023

Em destaque no festival Micro Clima.

M3DUSA: “Quando nos posicionamos como feministas, sabemos bem os questionamentos e as provocações que isso pode trazer”

Fotografia: Guilherme Heneni
Publicado a: 04/04/2023

Por regra, a escolha, no programa de um festival (como o Micro Clima, que acontecerá na SMUP a 14 e 15 de Abril), de um/a artista para entrevistar recai sobre algum/a interveniente que “dá” concertos e tem uma discografia. Os DJ sets são relegados para segundo plano, porque se entende que a sua função é “apenas” a de fechar a noite em ambiente de festa e dança – ainda que tal possa, até, fazer sentido.

Quando se trata de M3DUSA, um trio de DJs com mensagem e com uma abordagem especial do DJing, há que rever esta hierarquização e dar-lhe destaque. Porquê? Porque a música que passa faz-se no feminino e abraçando as causas queer e anti-xenófobas com um carácter de urgência e de luta. Pois leiam o que têm a dizer estas mulheres que, entre outros projectos que vão nascendo na cena nacional, estão a desestabilizar e a pôr em causa a dominação masculina no DJing…



Comecemos com uma questão problemática: M3DUSA apresenta-se online, simplesmente, como um trio de raparigas que, nos seus DJsets, tem como objectivo passar música de mulheres e dar voz às causas do feminismo. Na apresentação dos vossos eventos acrescenta-se, porém, algo mais. Para além de feminista, o grupo reivindica um posicionamento queer e de Black Women Power e salienta que as mulheres trans integram o que se entende como feminino – distinguindo-se do feminismo exclusivista das TERFs. Ora, numa entrevista que as três M3DUSA deram à Dezanove afirma-se que vocês são “brancas, cis e heterossexuais”, na mesma resposta em que aludem ao “lugar de fala”. Este “lugar” não deveria pertencer às próprias mulheres queer e racializadas? É a vossa intervenção aquela que devemos esperar de uma banda “aliada”? Podem es aliades substituir as vozes queer e negras? São os conteúdos que importam, não es DJs?

Desde o início que nos apresentámos não só como um trio de DJs feministas, mas como feministas interseccionais, isto é, como feministas que fazem o exercício político diário de reconhecer as diferentes condições de todas as mulheres e como essas condições nos afectam de maneira diferente. Daí a necessidade de esclarecermos que não nos esquecemos que, apesar de mulheres – e, por isso, condicionadas pelo nosso género feminino num mundo cishetero-normativo –, somos, além disso, brancas, cis e de classe média (a heterossexualidade de nós as três é, para já, uma outra questão). Ao afirmarmos isso numa entrevista à Dezanove é a nossa forma de dizermos que estamos bem cientes dos privilégios sociais que isso nos traz na nossa situação profissional – dentro e fora do DJing –, académica, no acesso à habitação, à saúde, e até no que aos padrões de beleza concerne, entre tantas outras facetas que compõem a vida de uma pessoa. É a partir daí que mencionamos também a nossa consciência em procurar um tal “lugar de fala”, ou seja, saber qual é o nosso e saber qual é o des outres e, portanto, não querermos falar por alguém, em cima de alguém, no lugar de alguém. Assim, assumimo-nos como aliadas de causas antirracistas, anti-xenófobas, anti-queerfóbicas. Algumas soluções que encontrámos para dar a voz a outras mulheres pelas quais não queremos falar é organizar eventos no Dia Internacional da Mulher, promover curadorias noutros espaços e trazer convidades para os nossos DJ sets, com uma missão inclusiva e o mais representativa possível.

Pelo que tenho ouvido, há três tipos diferenciados de DJing: aquele em que o mix é criativo, com utilização de outros elementos (sobretudo beats e ambientes) picados aqui ou ali ou gerados peles própries DJs, colocando-se assim no limiar da música electrónica; há o que passa os temas sem qualquer acrescento, deixando as operações concentradas na continuidade do alinhamento; e há um terceiro, o des disc-jockeys da rádio, mais passivo e com intervenções faladas pelo meio, para apresentar o que se ouviu e o que se vai ouvir de seguida. Vocês parecem incluir-se na segunda destas categorias. Concordam?

Concordamos. Há quase quatro anos, desde que existimos enquanto M3DUSA, que tocamos temas de outres artistas, com passagens, brincadeiras criativas do DJing de mistura de sons e canções – pegando também, de vez em quando, no microfone –, mas não produzimos, até hoje, música ou remixes.

Os sets de M3DUSA incluem diversos géneros da música de dança: o funk americano e o do Brasil, a soul, o hip hop, o r&b, o disco, a pop, o reggaeton… Apostam na diversidade, mas o que resulta desta mistura é uma indistinção, uma abstracção de estilos e tendências. E isso acontece, sobretudo, pelo modo com que o trio faz as transições de uma música para outra, unificando-as pelo seu factor comum, o da diáspora africana, e parecendo que não são várias, mas uma apenas no prisma da música urbana de hoje e de ontem. É propositado, no sentido em que as madeixas-serpentes da Medusa pertencem todas à mesma cabeça humana? Ou é apenas um recurso justificado pelo receio de haver um silêncio, uma pausa, entre temas?

A nossa escolha musical passa por um critério principal, que é a selecção de temas cantados, com a participação ou a produção de mulheres e pessoas queer. A partir daí, fazemos playlists principalmente focadas, sim, no universo da música da diáspora africana, com especial apetência para o hip hop e o r&b, e outros géneros que daí tenham evoluído ou que estejam na origem dos mesmos. Tudo dependerá também da nossa vontade, do local, do público ou da altura do dia em que estejamos a tocar, mas já passámos sets que se dedicam ou incluem outros géneros musicais: já fizemos tardes de funk e de disco, noites de house old e new school, sets em que do hip hop, ao perreo, ao afrobeat, tudo se junta um pouco. Debaixo da autoria ou da participação feminina e queer, passamos tudo aquilo que achamos que funciona numa dance floor e que coloca as pessoas a dançar, desde que nos faça sentido e tenha alguma coerência.

Consideram que o foco na dança e no entretenimento deixa espaço a uma actuação política e social? Não há o perigo de as pessoas esquecerem esta dimensão para apenas se divertirem? É mesmo possível combinar lazer e intervenção política? Gostaria de saber o que pensam sobre isto, recuando um pouco para se observarem a vocês mesmas a partir de fora…

Acreditamos piamente na força da arte como intervenção política e prova de que isso é possível são determinades DJs históricos da cena queer e negra, ou artistas de performance, ou drag queens, e a história das ball rooms, por exemplo. De qualquer maneira, cremos que todas essas pessoas souberam usar o palco e a pista de dança como um espaço de afirmação política. Equiparando aqui ao nosso projecto, achamos que ocupar durante uma tarde ou uma noite um espaço de lazer e criar um DJset com uma playlist exclusivamente constituída por artistas mulheres e queer já é um acto político forte por si só – não o mais corajoso e revolucionário do mundo, mas suficientemente disruptivo num país em que a programação cultural continua a ser discriminatória contra mulheres e minorias, dos maiores festivais portugueses aos mais pequenos espaços culturais. E é tão disruptivo que já nos confrontámos, dentro e fora dos DJ sets, com a hostilidade masculina (já foram várias as vezes que fomos alvos de sexismo e até de assédio, mesmo quando estamos a trabalhar), que não reage bem à ideia de, primeiro, estarem três mulheres a passar música, um lugar tão fortemente dominado por homens, e, segundo, ainda terem a ousadia de encherem as horas do set com apenas músicas de mulheres e pessoas queer. Em suma, é para nós bastante simbólica e poderosa a ideia que nos fica depois de tantos DJ sets, que é a de que fomos capazes de pôr um espaço inteiro a dançar e a celebrar-se a si e à história da música das mulheres, com um público diverso onde cabem diferentes backgrounds, durante não sabemos quantas horas, só tocando música feminina e queer. E isso, para nós, é um poderoso acto político.

O vosso interesse pelas causas interseccionais vem implicando que organizem outros modos de intervenção fora do âmbito do DJing e da música. São os casos do Mulher PodeCast, em que discutiram sobre a menstruação, os padrões de beleza, os direitos LGBTQIA+, o assédio e a violência sexual, ou o do Mulher Pode, que celebra o Dia Internacional da Mulher. Podemos tomar como certo que têm a necessidade de tratar estas temáticas em forma de debate, pois sentem que a sua integração na música não basta, ou que fica em segundo plano, ou que se torna invisível (inaudível) para quem dança?

Tal como já explicámos, as iniciativas adicionais que temos organizado vêm da necessidade não só de juntarmos mais pessoas e projectos à conversa, cujas vozes não podemos substituir, mas também de querermos continuar o activismo além da pista de dança. Assim, nas duas edições do evento Mulher Pode, a festa que costumamos organizar no Dia da Mulher, convidámos realizadoras, artistas plásticas, outras DJs, tatuadoras, marcas de roupa, ilustradoras, entre outres, para virem participar connosco num dia focado na causa feminista. Sempre gostámos de complementar o DJing com actos adicionais, ligados a outras artes e, principalmente, com outras pessoas, que podem contribuir de diferentes maneiras para o projecto. O podcast nasceu no contexto da pandemia, e, por isso, num momento em que ficámos paradas a nível de sets. Havia temas que queríamos explorar as três em debate, lá está, explorando outros meios além da pista de dança, e veio daí o Mulher Podecast. Desde então, só ficou uma primeira temporada com a participação única das três, mas sempre quisemos prosseguir para uma segunda temporada, durante a qual convidássemos uma série de pessoas LGBT, pessoas racializadas, pessoas com deficiências, enfim, toda a gente que pudesse contribuir de uma maneira que nós não podemos para uma conversa útil e educativa.

Sendo M3DUSA um trio, é natural esperar que vejamos as três a fazer DJing em simultâneo, mas tal não acontece. Vão-se alternando em solos de cada uma. Porquê esta escolha? É uma questão de funcionalidade e de simplificação performativa que a determina? Este trio não é, na verdade, um trio, mas uma associação de vontades?

Essa opção que tomámos nestes últimos anos de DJing foi puramente prática. Quando iniciámos as M3DUSA, nenhuma de nós tinha experiência anterior em DJing; por isso, foi através do uso de um controlador que aprendemos as bases e desenvolvemos sempre a nossa técnica dessa forma. A nível da performance em si, é rodando entre as três, deixando cada uma de nós tocar durante uns minutos, enquanto as outras duas fazem de hype women e dançam, para manter a energia sempre em cima, o que funciona para nós. Isso também permite cada uma ter algum tempo para explorar o set quando é a sua vez de passar música, mas estamos sempre as três em harmonia e em backup constante.

M3DUSA utiliza computador em vez de gira-discos ou de CDJ. Algum motivo em especial para tal escolha, que é também, por exemplo, a dos Venga Venga?

Mais uma vez, foram opções do acaso e da prática. Não temos ainda uma colecção suficientemente significativa de vinis para tocarmos só nesse formato, além de que isso seria sempre mais dispendioso (mas respect a todes es DJs que só passam vinil). Para já, tocamos com o sistema do software no nosso computador e com o controlador . Mas não só não excluímos essa hipótese como temos interesse em evoluir para tocar com CDJ no futuro.

Em algumas ocasiões, os vossos concertos incluem figurinos, cenários e uma iluminação mais elaborada. É assim que prefeririam para todos eles, o que muitas vezes não é possível, ou reservam este tipo de produção para momentos mais especiais, por intencão, nos venues melhor equipados?

Isso são factores que normalmente fogem do nosso controlo e que, por isso, não são decisões nossas. Já fizemos DJsets, mais no início do nosso projecto, em que trouxemos acessórios para a pista, como cartazes de manifestação feitos por nós, com palavras de ordem feministas, antirracistas e pró-LGBT, ou glitter e um toucador para todes se maquilharem, ou autocolantes de identificação com nomes de personagens femininas históricas importantes. Quanto ao resto do cenário e da iluminação, depende de quem nos convida.

O que pensam sobre o facto de os DJs serem mais bem pagos do que os músicos que tocam ao vivo, pelo menos aqueles que não são estrelas e que praticam músicas relegadas para as margens ou para o underground? Parece-vos justo? Considerando vocês que é injusto, como se sentem a participar num circuito que tem estas exigências ou modos de funcionamento, tendo em conta o vosso activismo (artivismo)?

Não sabemos qual é o cachê de outres DJs nem de outras bandas e se esse é superior ou inferior ao nosso. Para nós, todo o trabalho tem de ser pago justamente e os lucros melhor distribuídos, o que nem sempre acontece – inclusive connosco –, independentemente de se tratar de DJing ou de um live act, até porque a esmagadora maioria dos lucros vai para os espaços que estão a facturar com o evento. São as salas de concertos e os espaços culturais e/ou nocturnos que devem ser questionados sobre isso; quaisquer artistas que sejam obrigades a trabalhar nessa indústria, sobre a qual não têm controlo, estão apenas a tentar sobreviver e pagar as contas. Assim sendo, nós também estamos nesse jogo, que não consideramos nem justo para todes, nem inclusivo.

Que comentários me poderão fazer relativamente à participação de M3DUSA no Micro Clima, designadamente no fecho da primeira noite do festival que vai decorrer na SMUP? Neste aspecto há como que uma inversão de critérios: primeiro estão es músicos e es DJs são colocados no fim, para que, após as prestações live de cantores e instrumentistas, venha a festa. Estarão reservades a um periférico lugar de presença?

Estamos super-orgulhosas por termos sido contratadas por um festival que tem promovido, nestes últimos anos, artistas cheies de talento e que tem uma programação que representa a cena musical jovem, munida de diferentes géneros musicais e equilibrada nas suas diferentes quotas. Estamos especialmente entusiasmadas por nos fazermos acompanhar de artistas como a Pongo e a Soluna, cujos temas tocamos frequentemente nos nossos sets, além dos restantes nomes, igualmente talentosos, que vão estar presentes nesta edição do Micro Clima. A escolha de deixar os DJsets para o fim é uma que já é habitual noutros festivais portugueses e das quais já fizemos parte noutros eventos e que faz sentido para nós.

Quem se posiciona como feminista – ou se alia a outras causas, como o antirracismo – sabe bem os questionamentos e as provocações que isso pode trazer de outros lados. Noutras entrevistas e noutros locais têm-se focado muito em buscar contradições no nosso feminismo, causa que trazemos na lapela e que, talvez por essa mesma razão – e por sermos mulheres –, tenham procurado perscrutar, pôr em causa, pedindo que nos justifiquemos, tantas vezes, em relação a isso. Percebemos a importância de nos manterem em cheque relativamente às causas a que nos aliamos, mas não compreendemos, por exemplo, a falta de interesse sobre a nossa experiência feminina num mundo discriminatório como é o do DJing, num país ainda estrutural e culturalmente machista, no qual tem havido debates, como já mencionámos, sobre as programações de grandes festivais e a falta de nomes de mulheres e minorias nesses cartazes, não nos questionam sobre como nos posicionamos enquanto mulheres numa indústria musical masculina, etc., e outras perguntas que fariam todo o sentido colocar a um grupo de DJs mulheres. Até há uns anos, havia um grupo reduzido de mulheres DJ em Portugal que eram reconhecidas, mais ou menos consensualmente, como as “únicas” DJs femininas aceitáveis (para os padrões masculinos, claro está), que nós admiramos imenso.

Porque, até então, esse tokenismo de algumas mulheres a ocupar esses lugares bastava e mais não lhes era permitido. Es outres DJs ficavam na penumbra e os homens desse mundo dominavam, desproporcionalmente, os cartazes e as noites, e não por falta de outres DJs com igual ou melhor qualidade e capacidade, como tantas vezes é argumentado. Ficamos felizes com a geração nova e muito mais diversa de DJs que têm aparecido, as festas focadas na cena jovem queer e negra de Lisboa, como a Dengo Club e a ARVI. As coisas estão a mudar, não sem luta e dores de crescimento, e isso é bom.


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