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Fotografia: José Frade / EGEAC
Publicado a: 28/02/2024

Celebração em palco e algumas dúvidas no ar.

L’USAfonia no Teatro São Luiz: uma celebração do Black History Month na capital portuguesa

Fotografia: José Frade / EGEAC
Publicado a: 28/02/2024

Eram sete da tarde, lá fora o frio dava nome ao entardecer, e dentro do Teatro São Luiz, na baixa lisboeta, uma audiência ia ganhando forma para o espetáculo que estaria por vir. Na plateia podia observar-se pessoas com a predominância da idade nos seus 50’s, embora marcassem presença outras gerações mais novas. Como barulho de fundo, ouviam-se conversas paralelas pronunciadas num inglês com sotaque dos Estados Unidos, e para fazer exceção à regra, a plateia contava com pessoas de diferentes tons e cores. Certamente que não é todos os dias que naquele teatro se olhava à volta e se vêem tantos afrodescendentes.

L’USAfonia faz parte do “United States Department of State’s Global Music Diplomacy Initiative”, e por obra feita da Embaixada dos EUA em Portugal e a Câmara Municipal de Lisboa, nasceu este concerto que surge como uma celebração do Black History Month, através da reinterpretação de temas clássicos do soul, jazz e r&b que marcaram as décadas de 60 e 70 nos EUA, por artistas afrodescendentes com origens em Portugal, os PALOPs ou os EUA. Para reinterpretar os mesmos contámos com a presença de Soraia Morais, Djodje Almeida, Karyna Gomes, Gabe, Mirza Lauchand, AMAURA, Nayr Faquirá, Orlanda Guillande, Raissa, Anastácia Carvalho, Dino D’Santiago, Laurin Talese, Vicente Augusto, Héber Marques, Alex d’Alva Teixeira, Selma Uamusse e o incrível Gospel Collective.

O nascer e o desabrochar destes géneros musicais estão diretamente relacionados com as vivências materiais que as pessoas afro-americanas tiveram ao longo do século XX — a realidade de fazerem parte de uma América esquecida e segregada, em que a música surgia como espaço de possibilidades  — e com a criação de uma nova consciência negra, da esperança de um novo amanhã, da experiência de catarse e libertação, e um encontro com a espiritualidade — esta que existia também devido à influência importante da música gospel cantada nas igrejas, espaço que serviu ainda de força motriz para o desenrolar do Movimento dos Direitos Civis e o questionamento do lugar dos afro-americanos na sociedade. Esta tensão entre a luta e esperança foi especialmente evidente durante a década de 60, em que o Movimento dos Direitos Civis ganhou força, e em que a população afro-americana foi assolada pelos assassinatos de Malcolm X em 1965 e Martin Luther King em 1968. A música é política. E política, foi coisa que não faltou neste espetáculo.

Já passavam 15 minutos da hora prevista do concerto quando se vê nada mais, nada menos, do que o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa a caminhar para a primeira fila, enquanto parou no meio para tirar umas selfies. Poucos minutos depois as luzes recolheram-se enquanto as cortinas do palco se abriam, e Mirza Lauchand nos dava as boas-vindas, oscilando entre o português e inglês e satisfeito por ver “all of this blackness in the room”. De seguida falaria Carlos Moedas, num discurso celebrativo da diferença e de uma Lisboa em que, segundo as palavras do próprio, “é diversa, única nessa diversidade, e diversidade essa que faz a nossa força”. No fim do discurso, este seria contrariado por um espectador que o interpelou, acusando o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa de falar de uma Lisboa que seria uma mentira. De seguida teria a palavra a embaixadora dos EUA em Portugal, Randi Charno Levine, que haveria de falar sobre a criação de pontes entre os dois países e a importância da celebração do Black History Month.

E o espetáculo começou. Não seria tarefa fácil reinterpretar temas tão importantes e desafiantes, quer do ponto de vista vocal dos seus intérpretes, quer da relação que o público tem com as canções originais, entregues ao valor simbólico e magnífico, de músicas que são lendas, feitas por lendas e nomes cujo alcance é impossível de igualar. E sem que se estivesse à espera de alguma prestação que pudesse ser de alguma forma medíocre, este grupo de cantores afrodescendentes, conseguiu o quase impossível. Mais do que fazer justiça às canções, conseguiram torná-las quase tão belas como as originais e trazer o espírito delas ao Teatro de São Luiz com uma frescura e um olhar novo bom de se sentir. Desde o “Oh Freedom” de Joan Baez, cantado por Karyna Gomes acompanhada por uma tina — um instrumento guineense que nos transportou para outras viagens e paragens, atravessando a história da escravatura e das mulheres do Caxeu, na Guiné-Bissau —, à performance de outro mundo de Matay com uma voz que veio do fundo do estômago e que por momentos fez parecer que Sam Cooke estaria na sala a cantar o “A Change is Gonna Come”, ou às contribuições do Gospel Collective, que trouxeram o arrepio à sala com um conjunto de rostos e vozes que traziam a liberdade na voz. Seria injusto classificar performances e nomear distinções entre o grupo. Do início ao fim, foi pura alegria, emoção e festa. Ficou registado um momento marcante em que durante a performance de “Proud Mary”, de Tina Turner, cantada por Anastácia Carvalho com a ajuda do Gospel Collective, uma senhora com os seus 60 anos de idade estaria a dançar como se não houvesse amanhã no meio da sala.

E não foi só de música que o concerto foi feito. Entre as diferentes canções, houve vários momentos por parte dos intervenientes de apelo à união, de celebração de diversidade, ou de recordação de que houve muita luta travada para que se pudesse chegar onde estamos, e que ainda há bastante por fazer. Houve apelos a um voto com consciência e com amor no dia 10 de março, e ainda se fez ecoar um grito do público dizendo “Free Palestine” após a intervenção de Matay, que afirmara que é responsabilidade nossa continuar a lutar pela liberdade dia após dia, ao que o mesmo respondeu “God bless you”. Não se deixou de sentir um elefante na sala. É pena que nenhuma palavra tenha sido ouvida dos intervenientes sobre o genocídio a que assistimos diariamente em Gaza. Usando as palavras de Nina Simone, da canção “Mississipi Goddam”, cantadas no concerto sobre o bombardeamento de 4 raparigas negras em 1963 — poderia-se também dizer “Everybody knows about Palestine Goddam!”. Afinal, foi também num contexto de contestação da política de guerra levada a cabo no Vietname pelos EUA que se criou o movimento que contaminou esta geração de cantores e que culminou também em alguns dos temas cantados. Será coincidência que nada tenha sido pronunciado sobre a questão com todo este aparato político e institucional da Embaixada dos EUA e a Câmara Municipal de Lisboa? A pergunta fica no ar.

Fazem faltas iniciativas como estas — de celebração da história, das lutas e das canções que deram corpo e vida a revoluções passadas, que moldam o que somos no presente. No entanto, fica a questão: até que ponto existe a permissibilidade, através de canais institucionais como estes, de criar espetáculos com narrativas, intervenções e apelações ao público que sejam verdadeiramente livres e alinhadas com as reivindicações do presente? E mais do que a celebração da lusofonia através das músicas dos EUA, é preciso relembrar as nossas próprias histórias, da nossa realidade. Cantar e homenagear o “Monangambé” do Ruy Mingas sobre os negros contratados nas roças durante a era colonial em províncias de Angola, a “Sodade” de Cesária Évora sobre a o trabalho forçado dos Cabo-Verdianos nos campos de cacau em São Tomé, ou o “Alto Cutelo” dos Tubarões sobre a seca em Cabo-Verde e a exploração no trabalho deste povo em Lisboa. Há ainda muito a fazer no que toca ao reconhecimento, valorização e reinterpretação do cancioneiro da música tradicional e de intervenção dos países que outrora foram colónias portuguesas, e cujas lutas pela independência estão diretamente relacionadas com o desabrochar do regime democrático que hoje gozamos em Portugal, graças ao 25 de abril. Há ainda muito por fazer no que toca a conhecermos a nossa realidade, sobretudo num ano como este, que se assinala o 50º aniversário da Revolução dos Cravos.

Ainda assim, este concerto não deixou de ser um momento bonito, de recuperação de músicas icónicas com um conjunto de artistas que tudo deram para recuperar o espírito daquela década, fazendo o trabalho de relembrar lutas e conquistas que não podem ser esquecidas. Que haja mais celebrações a rondar o espaço da lusofonia, e que se continue a semear sempre a semente da liberdade, que como disse a ativista Angela Davis, é uma luta constante.


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