Final de tarde escuro e pontuado por aguaceiros. Os humores lá do alto poderiam estar vacilantes, mas cá por Terra a atmosfera era espirituosa. Depois de uma série de pints bebidas a acompanhar histórias e anedotas no conforto rústico do Crown & Castle, deslocámo-nos até ao mu. Situado no coração de Dalston, a algumas centenas de metros de pontos de referência locais como o Café OTO e o Vortex Jazz Club, este metade restaurante, metade clube de jazz consegue sê-lo simultaneamente sem que isso cause desequilíbrios na balança. Não se trata de funambulismo ou de manobra acrobática: quando se junta boa música a comida saborosa, a receita para o sucesso está mais do que garantida.
Grace Dent escreveu no Guardian que a comida do mu “é o elo que faltava entre Ormskirk e Osaka”. Ainda que seja difícil descortinar a relevância desta vila do noroeste inglês para a equação, a mensagem parece ser a de que estamos perante uma união consagrada de mundos separados. Na comida, a predominância da cozinha japonesa é suavizada pelas influências locais, quer sejam estas continentais ou insulares. Na música, o experimentalismo de Don Cherry — usado como ponto de partida para o nome do estabelecimento — é alargado por uma oferta em que os bops, o jazz modal e as fusões também surgem frequentemente no cardápio. Se pode soar estranho, leiam até ao final: garantimos-vos que tudo faz pleno sentido.
Entra-se no mu pelo lado urbano da cidade, por uma fachada grafitada, para do outro lado deparar-se com uma sala ampla, iluminada a meia-luz, envolta num certo requinte boémio. São contrastes, certamente, estes que moldam a experiência, mas afinal não são estas aparentes “contradições” constitutivas que tornam tudo mais interessante? Para completar a propedêutica de união de universos distintos, resta-nos falar do gig da noite, protagonizado pelo Luke Bacchus Trio. Se o mu une Ormskirk a Osaka, este trio funde Londres ao Caribe, com breve passagem por Nova Iorque. Continuamos nas dinâmicas de convergência e assimilação: o nosso mundo hiperglobalizado é feito disto.
Ainda sem qualquer registo discográfico que dê a conhecer o jazz caribenho que exala da música destes rapazes, a atuação do trio no mu não deixou, no entanto, dúvidas de que estamos perante talento emergente. Confirma-o o estatuto de finalista que o líder do trio, atualmente com 22 anos, arrecadou, no ano passado, no BBC Young Jazz Musician. É certo que ainda há por aqui muita matéria em bruto, pronta a ser burilada, mas o trio encontra-se já preparado para voos de alta altitude, tocando com rasgo e ambição, aliando conhecimento e técnica a originalidade e criatividade.
A acompanhar Luke Bacchus ao piano esteve o contrabaixista Nathan Dawkins, também ele um jovem talentoso, com apenas 19 anos, e o experiente baterista Sam Jones. Para quem esteve no We Out Here deste ano, o nome (ou a cara) de Jones não será porventura desconhecida. Que tenhamos presenciado, este baterista tocou no palco principal pelo menos três vezes, acompanhando concertos de Yazmin Lacey, Nubya Garcia, e Joe Armon-Jones & Mala. “Cansativo?”. “Oh yeah, man!”, respondeu-nos com um sorriso ufano. Não julgamos a vaidade — foi dono e senhor dos ritmos nalguns dos melhores concertos do festival. Confidenciou-nos, também, que se encontra a preparar material original, o qual poder-se-á ouvir num futuro próximo, salvo contrapartidas de maior. Excelente notícia — aguardamos ouvi-lo com antecipação.
Na conversa que tivemos com Sam Jones, ficámos também a saber que, naquela noite, o baterista tocava com o trio de Luke Bacchus pela primeira vez. A surpresa desta revelação prende-se essencialmente ao entrosamento imaculado que Luke Bacchus e os seus companheiros revelaram nos dois sets que apresentaram. No primeiro, estiveram próximos da tradição, emanaram bop por todos os poros, e conversaram com os fundadores desta música através de standards e originais. Além disso, sempre que o momento pediu, trouxeram a música dos pais a jogo, imbuindo o jazz nos balanços do mento, calipso, dub e do reggae. Fizeram-no maravilhosamente, com Luke Bacchus ali a honrar com dignidade absoluta as suas raízes guianenses.
Já no segundo set, o trio aventurou-se por composições de faceta mais contemporânea, demonstrativas da amplitude musical do seu reportório. Foi um deleite ouvi-las no sistema de som imersivo do mu, do qual saímos com a promessa de ali brevemente regressar. A pairar no ar ficou uma certeza — a de que, sem dúvida, ainda ouviremos falar bastante de Luke Bacchus — e uma dúvida — qual será a razão para que um espaço destes ainda não exista em Portugal. Para os mais distraídos, repetimos a fórmula com que abrimos este texto: “quando se junta boa música a comida saborosa, a receita para o sucesso está mais do que garantida”.