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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 17/02/2023

10 anos de uma casa recheada de complexos e interessantes talentos.

Luís Viegas (Ao Sul do Mundo): “Acreditamos nos artistas que agitam as águas”

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 17/02/2023

É com a apresentação de Paulino Vieira no CCB que a Ao Sul do Mundo assinala a sua primeira década de existência. Nesta agência convivem os talentos de muitos artistas a que o Rimas e Batidas tem dado fértil atenção desde o início: Tristany e Conan Osíris, Bandua e Selma Uamusse, Moullinex e Bruno Pernadas, prétu e Paulo Flores e muitos outros que têm o condão de criar alguma da mais interessante música do nosso complexo presente. No Centro Cultural de Cabo Verde, depois de uma cachupa refogada, conversámos com Luís Viegas, o homem que conduz este barco de porto em porto, que fala com entusiasmo de trabalhar com artistas, de uma ética de honestidade na forma como se relaciona com todos eles. Foram 10 anos para chegar aqui e agora importa o futuro.



Estás num momento de aniversário redondo. São sempre momentos em que nós paramos para pensar, fazer balanços, desenrolar a história que nos trouxe até aqui. Ao fim de uma década de Ao Sul do Mundo, o que é que tu sentes? Que o melhor ainda está para vir? Sentes orgulho pelo que já fizeste nestes dez anos?

Ao longo destes dez anos — e pegando numa parte da tua pergunta — o que fez falta, às vezes… Não é fazer falta. Senti que devíamos ter tido mais tempo para pensar. Na origem da Ao Sul do Mundo, pensávamos mais, tínhamos mais tempo para pensar, e se calhar fazíamos menos coisas. Se eu pudesse descrever a fundação da Ao Sul do Mundo em três palavras, acho que escolhia “inquietação, romance e posicionamento”. Chegamos aqui passados estes dez anos. Mas eu não quero fazer desta resposta a entrevista toda [risos].

Mas podes.

Porque, primeiro, não fui só eu que fiz a Ao Sul do Mundo. A Ao Sul do Mundo nasce — e vou pegar na primeira das três palavras que te disse — da inquietação que nós, os fundadores — e já nos vou apresentar —, sentíamos na altura em que a troika estava em Portugal. A cultura começa a sofrer no pêlo por volta de 2010/2011. A Ao Sul do Mundo começa a ser pensada em 2012, a partir da inquietação dos fundadores, que eram agentes culturais activos. Precisávamos de dar uma resposta. Precisávamos de nos unir para responder a esta grande dificuldade que a cultura, de uma forma geral, vivia. Eu lembro-me que foi nesse ano, em 2012, mesmo os grandes festivais tiveram revezes nas bilheteiras. Tal como a datas nos Coliseus… Havia uma recessão latente. A forma que vimos para combater isto foi, “vamos juntar forças”.

Ou seja, a Ao Sul do Mundo nasce num momento em que é uma péssima ideia trabalhar na cultura, “mas ‘bora lá”.

Exactamente. A Ao Sul do Mundo nasce nesse momento, quando está toda a gente a fugir da cultura, só mesmo ultrapassado por este triste acontecimento mais recente — e que foi para todos; mas a cultura foi uma das partes que mais sofreu — que foi a pandemia.

A imagem que me ocorre é aquela de um filme clássico, em que há um incêndio num prédio, vem toda a gente a descer as escadas e há alguém que vai na direcção contrária, a subir na direcção do incêndio. Foi um bocadinho o que vocês fizeram, não foi?

Foi, foi. Nunca tinha pensado nisso dessa maneira [risos]. O que nós fizemos, basicamente, foi juntar esforços e, acima de tudo, tentar uma forma romanceada — daí há pouco ter falado no “romance” — quase a roçar a utopia de… Nós não queríamos ser um concorrente de ninguém. Nós queríamos encontrar o nosso espaço e queríamos dar espaço a músicas e expressões culturais — umas mais tradicionais, com mais anos de vida; outras emergentes, mas que normalmente não tinham espaço nos palcos ou até nos meios de comunicação — na nossa matriz cultura, que é geograficamente europeia, mas que a nossa história demonstra, nem sempre da forma mais feliz, que é mais ao sul do mundo.

Verdade.

O posicionamento vem nesse seguimento. Nós não queríamos concorrer directamente com ninguém. Queríamos encontrar e dar espaço àquilo que nós gostávamos e acreditávamos que ainda não tinha espaço. Tinha em alguns clubes, que já faziam essa tarefa, nomeadamente em cidades cosmopolitas como Lisboa e Porto. Queríamos que a música que nós gostávamos e que sabíamos que era tão bem feita quanto aquela música anglo-saxónica que tem lugar logo no pedestal dos media. Nós queríamos meter o Bombino no Paredes de Coura, Amadou & Mariam no Coliseu… Obviamente que isso acontecia, mas nós queríamos que não fosse a excepção, mas sim a regra.

Esse “nós” — já mencionaste essa palavra umas 30 vezes — quem são?

Esse “nós” era um grupo de amigos — pessoas que se gostavam, admiravam e se respeitavam — que se encontravam em Salonica, na Grécia, numa WOMEX. Provavelmente aconteceu à mesa — que é onde estas coisas se fazem — enquanto andávamos pelo WOMEX a ver showcases. O WOMEX dura vários dias e nós fomos a todos. Fomos conversando sobre este movimento que devíamos de fazer. Um movimento de união e de concretização. Discutimos muito, como eu disse no início. A discussão acontecia bastante no início. Inclusive sobre que modelo devíamos de adoptar — se uma empresa, se uma associação, se uma cooperativa. Acabou por ser a cooperativa o modelo que vingou no momento.

É um grande legado do 25 de Abril, a ideia da cooperativa, não é?

E o nosso primeiro concerto é Amadou & Mariam no Coliseu, dia 25 de Abril de 2013. Mas a cooperativa é um grande legado do 25 de Abril.

Para a sociedade civil, “nós podemos organizar-nos.” É o que esse modelo transmite, não é?

É. E isso faz parte do romance que está aqui associado, que ao mesmo tempo é honesto. Nós podíamos criar uma associação — e nada contra as associações nem contra as empresas; há espaço para todos viverem e conviverem —, mas nós queríamos ter essa mensagem política, que era a união e, ao mesmo tempo, se houver lucros, os podermos distribuir de uma forma completamente clara e transparente.

Esses cooperantes eram quem?

Eu era o mais novo. Há o Carlos Seixas, do Festival de Músicas do Mundo, de Sines. É o Carlos Vicente, que tinha a By The Music e uma outra empresa, da qual não me recordo. Ele entra aqui porque ele tinha equipamento — tinha PA, etc.. Ele tinha equipamento e tinha equipas que produziam espectáculos. Todos nós tínhamos experiência de produção, mas ele tinha os equipamentos, coisa que nós não tínhamos. O Fernando Sousa, da programação da Casa da Música, entrou e esteve pouco tempo — primeiro porque entrou para um cargo não executivo, mas percebemos que podiam existir incompatibilidades dentro do código da ética, uma vez que ele programava a Casa da Música e nós, para podermos apresentar a coisa à Casa da Música, podia não ser boa ideia. Então, o Fernando foi fundador, porque se associou à causa e ao movimento, mas saiu prontamente, passado dois ou três meses. Isso está atestado em actas. Mas a parte do romance também é isto.

Era uma congregação de vontades?

Era uma congregação de vontades. Falta-me o Carlos Bartilotti, do Porto, também. Tínhamos duas pessoas do Porto, eu e o Carlos Vicente em Lisboa e o Seixas em Sines. Somos os cinco fundadores. Mais tarde, mas praticamente a seguir ao movimento da fundação, a Felicia Silva, que não sendo fundadora, na prática é quase como se fosse.

Foi um trinco na equipa?

Foi um trinco e só nos abandonou há poucos meses. Dos fundadores, o último que resta sou eu [risos]. Porquê? Aí envolve a história de cada um de nós. Inquietação, romance e posicionamento, mas depois, cada uma destas pessoas, por motivos pessoais, pelo rumo de cada um…

Já me explicaste o Big Bang. Estas pessoas estão todas na origem da Ao Sul do Mundo.

Quem cria o nome Ao Sul do Mundo é o Carlos Seixas. Nós tivemos vários nomes e eu sou daqueles que, “devíamos ter um nome português.” Sudexpress foi um deles. Sempre nomes muito a sul. AC21 — Acção Cultural 21, que era um nome com uma grande carga, mas que, ao mesmo tempo, podia parecer uma escola de condução. Às tantas, os nomes eram reprovados na admissibilidade de nome para firma, porque já existiam nomes semelhantes. Às tantas, ao telefone com o Carlos e o André ao meu lado, o Carlos teve esta tirada, que é uma tirada até política, também [risos].

Ética, política e espiritual, diria eu.

Exactamente. Ao Sul do Mundo. E é um nome que é aprovado, que sai e que fica.

Havia uma série de agentes, de actores culturais, no momento em que vocês nascem. O que é que vocês achavam que apresentavam de diferenciado no tabuleiro da cultura musical em Portugal?

Para já, era a nossa união. Era a junção destas pequenas forças. E que a junção dessas pequenas forças fosse maior do que a junção de todas as partes, como se diz. Obviamente que já existiam outras pessoas a trabalhar a música global. Acima de tudo, era a nossa visão, mas não sendo arrogantes — de “a nossa visão é melhor do que a do vizinho”. Esse espaço [da música global] já existia e era feito por outros agentes culturais, desde a Sons em Trânsito, da Uguru, a Sul Produções, a LG Produções, que tem continuado o seu caminho, a Incubadora de Artes e a malta do jazz…

Ou seja, vocês queriam juntar-se à conversa?

Exacto. Nós queríamos ser um novo par, com um novo olhar, que ajudasse a dar palco e lugar a estas expressões culturais, que nós achamos que têm tanta qualidade quanto as outras que a maior parte da malta conhece. Pessoalmente, a música que eu gosto hoje não tem nada a ver com a música de que gostava quando tinha 20 anos. Mais: já me aconteceu estranhar o sabor da música de que gostava há 20 anos atrás. Isto não tem nada de mal. Eu quero acreditar que não tem nada de mal. Tem a ver com uma evolução. Nós passámos de cinco para seis rapidamente, depois passámos para cinco, para quatro… Houve alterações. E eu estou a falar só dos fundadores, mas há a equipa, que também é muito importante. A equipa e tudo o que foram contributos. Nós influenciávamos e contaminávamo-nos uns aos outros — e muito!

É essa a cultura positiva de uma empresa. Deve ser assim que a coisa deve acontecer, organicamente, como as plantas a crescer num jardim, com as raizes a entrelaçarem-se umas nas outras e…

Exactamente. Há esta história muito interessante: da primeira vez que me sento à frente do Conan Osiris, virei-me para ele e disse, “tu fazes-me lembrar uma buganvília.” Ele ficou, assim… Foi o que me apeteceu dizer-lhe [risos].



Já que puxaste pelos artistas, vamos entrar por aí. Há várias coisas que se me ocorre dizer quando se entra no site da Ao Sul do Mundo e se vê o roster. Há uma série de artistas com quem vocês trabalham apenas como management e outros que vocês representam enquanto agentes. Mas eu diria que há ali quase uma dimensão política na escolha do vosso roster de artistas. Acho que me atreveria a ler ali uma clara linha: trabalhar com artistas que são, de alguma forma, transformadores, disruptores, obviamente criativos, mas que não estão no centro — não são artistas do mainstream; o que não quer dizer que não possam vir a ser, que dava outra conversa. O que é que tu dirias que pesa quando tens que pensar “assino ou não assino?” Quais são as qualidades — ou os “defeitos” — que um artista tem de ter para fazer parte do roster da Ao Sul do Mundo? O que é que tu procuras num artista para o acrescentar ao teu catálogo?

Acho que a decisão é, de facto, política. Nós somos agentes activos de política. Podemos fazer política sem fazer posts nas redes sociais.

Ou sem estar no parlamento.

E sem estar no parlamento. Podemos fazer política nas opções que escolhemos para nós.

Acredito profundamente nisso.

Temos de melhorar, de ouvir, de acatar quando é para acatar e de reclamar quando é para reclamar. Quando escolhemos os artistas que fazem parte do catálogo da Ao Sul do Mundo… Nós não temos nada contra o mainstream, mas já há tantos colegas a fazer o mainstream, seja porque razão for — quer dos artistas, quer dos colegas. Nós acreditamos na linguagem que é transformadora, nos artistas que têm identidade vincada, nos artistas que criticam de forma construtiva aquilo que está em causa, nos artistas que agitam ou agitaram águas. É nisso que nós acreditamos. Os outros merecem todos o nosso respeito e a nossa admiração, o nosso gosto, mas se calhar não precisam de nós.

Há um perfil típico de um artista Ao Sul do Mundo? Vocês têm desde o Conan Osiris ao Moullinex, do Tristany e do prétu ao Fausto e ao Paulo Flores…

Os Lavoisier!

Lavoisier. Exactamente. O leque é gigante. Mas, ao mesmo tempo, não é. Acho que o jantar de Natal da Ao Sul do Mundo corre sempre bem. Ou seja, se vocês convidarem aqueles artistas todos, eles vão ser capazes de conversar uns com os outros, não é?

É uma coisa que nós nem temos explorado muito, aquele “caldeirão”. Quando digo que não temos explorado… Ainda há dias — não me lembro se foi o Moullinex ou a Selma — alguém me perguntou, “porque é que tu não promoves mais ligações entre os artistas da Ao Sul do Mundo?” De facto, temos esta diversidade toda. O que têm em comum, a meu ver, na perspectiva de quem fez e faz a Ao Sul do Mundo, é serem espaciais, à nossa maneira e à nossa visão. Há artistas do mainstream que são especiais para uma catrefada de gente e isso é de respeitar. A ligação entre o artista e o público não está aqui em causa. Aqui está em causa a nossa visão. Nós fazemos a Ao Sul do Mundo e é a nossa visão que está aqui em causa. Diria que tem muito a ver com a identidade, a honestidade com que fazem a sua arte.

Acho que ontem foram publicadas novas sondagens, que dão não apenas vitória ao PSD numa prováveis futuras eleições, como um crescimento exponencial do Chega. Estamos a viver num país — diria até num mundo — onde a ideia da intolerância parece estar a crescer. Quando se tem um catálogo com artistas como a Selma Uamusse, o Paulo Flores, o prétu ou o Tristany, nós sabemos que isso tem de ser uma questão. Nós estamos a conversar num sítio que eu conheci por causa do Dino d’Santiago, que acabou de propor um novo hino para Portugal. Há aquele filme americano, Este País Não É Para Velhos…

Dos irmãos Coen.

Pois é. Como é que este país se dá com a cor negra, no que aos artistas diz respeito? Algum dia sentiste algum tipo de resistência — quando vais fazer propostas a salas, festivais, eventos, etc. — por causa dos artistas que representas?

O país é um país que tem tudo, ou que contem muita coisa. Obviamente que eu encontro — quer nos festivais, quer nos programadores — uma aceitação ou uma resistência, que não é esquizofrénica, mas que vai de um extremo ao outro. O país é uma fotografia dessa imagem. Eu chego a um teatro e, se for preciso, o programador que está à frente daquilo não sabe quem foi o Bana. Mas não sabe mesmo! Isso existe. Mas também sei que há programadores que têm uma cultura e uma sensibilidade que… Falamos todos a mesma linguagem. O país ainda vive esta realidade e é uma realidade transversal. As pessoas que estão à frente dos espaços, umas são mais sensíveis que outras, outras estão mais viradas para os blockbusters de bilheteiras e só trabalham com o que os faz vender. Isso não tem a ver sequer com cor, com o tipo de música ou o que quer que seja. Tem a ver é…

Mas quando trabalhas com dinheiros públicos, tens o dever de arriscar e de educar. Ou não?

Acredito no serviço público. O dever de arriscar é serviço público. Se tu, num festival privado, quiseres fazer uma programação orientada para um determinado gosto do programador, o único escrutínio que tu tens é na bilheteira e no público. O público pode dizer, “esqueceram-se de incluir este ou aquele nome no cartaz.” O público opina. E hoje em dia, com as redes sociais, opina bastante. Nem todas as críticas são construtivas. Algumas são só disruptivas e ditas da boca para fora. Mas esse espaço existe. Há essa liberdade para se dizer o que pensamos. O que eu acredito é que nós devemos trabalhar na educação e na tolerância. Acho que. Acho que há muita intolerância cuja base é apenas e só a ignorância; cuja base é só e apenas não conhecermos o outro — e quando não conhecemos, resistimos, estranhamos e rejeitamos.

Mas há um momento em que temos de criar esse ciclo, não é? Arriscar e fazer diferente.

É para isso que…

… a Ao Sul do Mundo Existe [risos].

Nós somos uma pequena entidade que faz o seu papel. Mas é nisso que nós acreditamos. Já fizemos muita coisa que só fizemos por acreditar. O nosso primeiro concerto é um statement disso: Amadou & Mariam no Coliseu. Perdemos só e apenas — por generosidade das várias partes que estavam envolvidas — 15 mil euros. Podíamos ter perdido mais. Estivemos um ano a trabalhar para pagar aquele prejuízo, com o esforço de todos, que não ganhávamos para poder pagar. Levamos aquilo em que acreditamos muito a sério. A intolerância e a preocupação de como forças de extrema direita podem ganhar terreno no nosso país é uma coisa que nos inquieta muito.

A música pode ser transformativa nesse contexto?

Acreditamos que a música pode e é transformadora nessa manifestação, que eu tenho dificuldade em percebê-la. Noutro dia fui ver uma peça de teatro, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas.

Conta-me [risos].

Epá, é incrível! Parabéns ao Tiago Rodrigues. Parabéns àqueles actores. Parabéns ao actor que, no fim, tem de fazer de fascista e quase que leva…

Com tomates?

Quase [risos]. Com apupos, leva vários. Recebe ofensas de todos os feitios. Mas nós, enquanto sociedade, temos de pensar, temos de conversar uns com os outros. Temos de pensar porque é que aquelas manifestações estão a existir e porque é que o mundo está a ficar tão cheio de pessoas iradas, zangadas, mal compreendidas. Temos de pensar nisso à séria. Às vezes podemos pensar, “este tipo ou esta tipa!” A nossa primeira atitude pode ser reactiva. Mas não tem! Temos de nos elevar e não ser reactivos. Temos de explicar. A grande questão é, obviamente, a educação e a formação. É por isso que nós, enquanto Ao Sul do Mundo, queremos trabalhar e dar espaço a toda a gente.

Se a cena da música portuguesa fosse uma caderneta de cromos, estilo estas colecções de futebol, tens noção de que a Ao Sul do Mundo teria os cromos raros da série? Quando vais jantar com amigos da indústria, eles não te chamam maluco? “Tu vais assinar contrato com esse gajo?! És maluco?!” Como é que te sentes nessa parte do jogo e da cultura?

Contrariamente ao que possa parecer, eu sinto-me bem quando vou jantar com os meus colegas da indústria. Sinto que eles me vêem — e eu não estou na cabeça deles — bem. E eu próprio me sinto bem. Obviamente que — na escala, an quantidade e, vá lá, na facturação — eu sou, se calhar, o Múgica, aquele presidente do México que tinha o carocha [risos]. A Ao Sul do Mundo é essa figura. Mas sinto-me muito bem com isso, pelo facto desse artistas me darem a honra de trabalhar com eles e de eu me sentir honrado por trabalhar com essas pessoas. Gosto deles todos, quer enquanto artistas, quer enquanto pessoas. Isso é um grande activo. Eu sinto-me muito bem. Haverá um ou outro que me pode tratar mais, “aquele gajo! Aqueles freaks da Ao Sul do Mundo!” Mas não penso muito nisso, sinceramente. Sinto-me bem. Não me sinto nem acima nem abaixo. Sinto-me normal.

Mas é preciso ter um grande arcaboiço para — e estávamos a falar de cromos difíceis — para ter o Fausto, Paulino Vieira… É preciso ter uma grande vontade de fazer coisas pela música em Portugal para trabalhar com este tipo de artistas, que são “complicados”. Eu acho que é suposto os artistas não serem pessoas fáceis. Pessoas fáceis são os nossos amigos, a quem nós ligamos para ir jantar fora ou porque precisamos de desabafar. Os artistas são gente complexa, não é? E tu tens um grande jeito para escolher gente complexa para o teu catálogo [risos].

Acho que é um grande desafio e o desafio chama-me. Nós temos aquela atracção pelo desafio. É o desafio e o posicionamento, que é uma daquelas três palavras que te disse no início. Tudo isso convive com o que é a nossa matriz de decisão. Há uma inquietação por fazer coisas. Há um aspecto na beleza no romance daquilo que nos inspira para ali. Tem a ver com o posicionamento. “Se calhar ninguém faria isto, então ‘bora fazer!” [Risos] Nós falamos que os artistas são pessoas difíceis. E são. Mas têm uma vida difícil. Quantas vezes dou por mim a escutar as coisas que eles fazem e a admirá-los por isso. Acho que não é nada fácil ser artista. É muito exigente ser artista.

Eu seria incapaz.

Eu também [risos]. Às vezes penso, “mas porque é que me estás a perguntar isso?” Mas eu adoro-os a todos. Cada um com a sua maneira. Felizmente, são todos diferentes. Falamos muito em equipa, “nós trabalhamos para os artistas. Não trabalhamos para os promotores nem para os clientes.” Os nossos primeiros “clientes” são os artistas. É para eles que trabalhamos, é neles que acreditamos e eles acreditam em nós.



Diria que há uma ideia interessante a retirar do catálogo da Ao Sul do Mundo, que é um olhar progressivo sobre a ideia da lusofonia. Quem tem Conan Osiris, o Paulo Flores, o Tristany, o prétu e a Selma, todos a trazerem novas nuances da língua para dentro da nossa música popular… Estás a fazer um trabalho do caraças, nesse sentido de expandir… Acho que esta ideia da lusofonia esteve tão cristalizada, tão estática, durante tanto tempo. Hoje é que nós começamos a admitir, “o que é isto da lusofonia?” E vocês representam-na de uma maneira, a meu ver, muito inteligente. Esse lado da língua é importante no desenhar do mapa do roster da Ao Sul do Mundo?

O lado das línguas — não é só uma. Só Moçambique tem uma série delas, como a Selma as canta. Angola tem outras, que o Paulo e o Yuri as cantam. Os crioulos.

Com as diferentes nuances das diferentes ilhas de Cabo Verde.

Acho que isso é a nossa história. Ainda que tenha partes muito infelizes — na origem, na forma como as coisas foram feitas. É a história que nos une. Eu acredito que o que nos une, nas diferenças que temos, é um activo incrível. Isso ainda não é olhado como uma forma de combater a hegemonia da música anglo-saxónica. Eu ouço muito a Antena 3 — a minha mulher diz-me, “estás sempre a ouvir a Antena 3!” [risos] — e às vezes não passa música da qual nós gostamos. Eu penso assim, “mas porque é que temos de estar aqui a levar com esta coisa não sei de onde?” Isto sou eu armado em velho rezingão [risos]. Quando nós temos música neste espaço, não só lusófono… É um espaço de comunhão, de irmandade…

Entre pessoas que escolhem viver aqui?

São pessoas que escolhem viver aqui, tal como nós podemos escolher viver acolá.

E às vezes não escolhem, são empurradas para aqui, de alguma forma.

A música e a criação artística nascem de forma espontânea, seja num espaço onde as pessoas foram empurradas e não foram de livre vontade… A arte é isso. A arte serve para agitar e para provocar. Esta é uma ideia que vem desde o início, desde o tempo dos fundadores da Ao Sul do Mundo: este espaço tem de ter expressão. As editoras, durante muito tempo, viraram as costas a isto. Salvo os Buraka Som Sistema e outros projectos lá mais para trás. Mas essa visão do Kalaf e do Branko…

Foi um verdadeiro pontapé na porta.

Deram um pontapé na porta. Eu não sei onde é que eles estavam e, hoje em dia, continuo a perguntar onde é que eles estão. Se calhar estamos a falar de majors e as majors são escritórios de uma força maior, que obedecem a políticas que não são eles que as fazem, embora tenham um quê de regional. Eu estou farto disso. Quer dizer, eu recebo, consumo e acho que tudo faz parte e tem espaço. Acho é que temos demais para o que devíamos ter.

Gostava de falar sobre alguns artistas em específico e começo, claro, pelo Paulino Vieira, o artista escolhido para celebrar esta década de aventura, de luta e de superação. Há pouco dizia que há, no ADN da Ao Sul do Mundo, a tendência em escolher artistas que exigem luta para serem trabalhados. O Paulino Vieira é um herói esquecido da nossa música, não é?

É. Sem dúvida. É um herói há muito tempo admirado.

Deixa-me abrir aqui um parêntesis: eu ouço o nome do Paulino Vieira pela primeira vez em entrevistas dos Heróis do Mar, algures nos anos 80.

Exactamente. Ele gravou Heróis do Mar e gravou António Variações.

Eles citavam o Paulino como uma referência. Mas é um nome que não é celebrado na nossa historiografia oficial da música pop portuguesa.

Essa última parte já tem a ver com a indústria discográfica e com o nosso metiê. Sobre isso, vou-me abster de falar, porque terá que ver com uma história que não foi vivida por nós. Por nós, o que é sentido é uma enorme admiração pelo artista e pela sua obra. O Fausto fala muito nisto, de quando se dá o 25 de Abril e a descolonização, Portugal faz o reencontro com a matriz geográfica da Europa. Mas nós não podemos esquecer o que está para trás: o Paulino é dos primeiros artistas, das primeiras pessoas, que consegue estudar as semelhanças e as diferenças na lusofonia — acho que até já escreveste sobre isto — e eu atrevo-me a dizer que ele é dos primeiros a transformar esta linguagem numa linguagem global.

Ele é dos primeiros a entender que Lisboa é um lugar onde se pode projectar uma outro ideia do que é que significa ser africano. Há aquela ideia de An American in Paris. Nunca se falou num africano em Lisboa, não é? E ele é um africano em Lisboa.

Mas com referências — dos Heróis do Mar ao António Variações. Ele é um cidadão africano em Lisboa, mas é um artista! Agora vou eu fazer um parêntesis. Há pouco falaste nos artistas da lusofonia e da forma como se catalogam. Nós fizemos um Coliseu com o Paulo Flores e o Yuri da Cunha. Nós vamos pedir apoios e… Existe uma tendência de nós catalogarmos o artista africano de “música africana”. Eu não vejo ninguém a catalogar os Coldplay, por exemplo, como um artista irlandês, da Grã-Bretanha ou do raio que o parta. Assim como toda a gente sabe que o Nick Cave é australiano, mas também ninguém anda a falar dele como “música australiana”. Porque é que hão-de pôr o Paulo Flores… “Sim senhora, então é a RTP África a dar apoio a isto.” Porque é que não há-de ir para a RTP generalista? Porque é que não há-de ir para a SIC ou para a TVI? “Não, isso é RTP África.” É nesta normalização… Isto tem a ver com a normalidade. Posso ir buscar o exemplo de um outro artista com o qual trabalhamos, que tem um álbum chamado MÚSICA, NORMAL.

Falemos dele! Quando é que o Conan lança um disco com música nova?

Vou dar-te uma resposta politicamente correcta: é quando ele quiser.

Obviamente. Ele é um fenómeno.

Ele é uma pedrada no charco.

Acho que ele é a pedra que caiu na máquina e desmontou a engrenagem toda. O macanismo do relógio deixou de funcionar quando aquele grão ali caiu e desmontou o mecanismo todo. E ainda bem que o fez! Acho que o Conan vai ser falado daqui a 20 anos, tal como hoje se fala no Variações, no Zeca, no Fausto, no José Mário ou na Amália. Acho que ele tem de ser entendido nessa dimensão daqui a uns tempos. Por isso, eu estou ansioso para conhecer os próximos passos dele. E digo-te uma coisa: eu admiro a contenção dele. Não sei se te lembras, eu parti a perna no dia em que ele se apresentou no Coliseu, no dia em que entrevistei a Selma na FNAC, e não vi esse concerto por essa razão.

Está na RTP Play. Não sei se o foste ver ou não.

Claro que fui ver!

Para mim, é um documento daquilo que se passou, mas não substitui o que foi ter lá estado.

Obrigado por me esmagares. Eu tive uma boa razão para lá não ter estado!

Eu estou a dizer isto porque é sempre diferente.

Eu sei. Estou a brincar. Mas nós estamos sempre à espera. Às vezes sinto que Portugal está à espera do Conan para nos apontar o caminho.

Vou-te dizer: acho que ele está preparado — ou está a preparar-se — para fazer a sua…

Para mim, ele é um mistério e um fascínio. Já vi artistas a tentarem capitalizar em cima de um momento e ele está-se nas tintas.

Essa é mais uma das razões pelas quais gostamos dele [risos].

Outro artista que eu também acho transformativo é o Tristany. Há quem pense nele como uma coisa minúscula no panorama geral da nossa música, mas eu penso nele como uma coisa gigante. Ele é uma voz da periferia no nosso centro. É aquela cena que nos diz, “há mais Portugal do que aquele que tu consegues ver da tua varanda.”

O Tristany é mesmo isso: uma janela. É uma janela que nos mostra, a todos nós, que existe mais Portugal do que aquele que conhecemos. Eu tenho 50 anos e tenho a certeza que uma boa parte das pessoas da minha idade ainda ouvem os mesmos discos que ouviam há 30 anos. Há pouco falava da Antena 3, e a Antena 3 também é uma janela que nos apresenta uma brisa fresca, quase sempre. Obviamente que — é uma rádio — há-de ter a sua playlist. Mas tem novidade.

E não escolhe a música a partir daquelas fórmulas…

Os algoritmos, os gostos. Mas essas pessoas, que ainda ouvem a mesma música de há 30 anos — e não tem mal nenhum, atenção —, o mundo delas está mais pequeno. Se nós ouvirmos coisas novas todos os dias — seja na rádio, através de amigos, no Instagram ou no Facebook — o mundo torna-se maior. Não se torna infinito, porque nós, muitas vezes, não temos tempo para tanta informação. Acabamos por ter de ser selectivos, porque o nosso cérebro não tem capacidade para isso tudo, nem nós temos tempo para estar disponíveis para tudo. Mas o nosso mundo torna-se maior. E ao tornar-se maior, torna-se melhor.

Já imaginaste qual o artista que vais escolher para a celebração dos 20 anos da Ao Sul do Mundo? Como é que vai ser quando, daqui a 20 anos, voltarmos a ter esta conversa?

Nos cinco anos, já agora, foi o Fausto. Nós não trabalhávamos com o Fausto até 2018, convidámo-lo e ele, a partir daí — quer ele quer nós gostámos muito — passámos a trabalhar juntos. Para os dez anos vai ser o Paulino, muito com ajudas e influências de várias latitudes, nomeadamente do [?], a malta dos Acácia Maior…

São gente linda.

Partilhei com eles o sonho de ter o Paulino nos dez anos. “Gostávamos muito de fazer uma coisa com o Paulino.” Nos 20 anos — e ainda faltam dez; isto é uma corrida de fundo, não um sprint — ainda não faço a mais pequena ideia.


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