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Fotografia: Inês Abeu
Publicado a: 15/03/2023

Um som tão cerebral quanto musculado.

Luís Vicente 4tet na Jazz Messengers: um pulmão curtido no fumo

Fotografia: Inês Abeu
Publicado a: 15/03/2023

Meia dúzia de sofás, de preferência com um ar gasto e encostados à parede que o espaço é exíguo. Se nas entranhas dos mesmos se encontrarem isqueiros, bics finas ou grossas e outros objectos perdidos tanto melhor. Luz escassa, apura-se a visão na escuridão. Máquina de fumos autónoma quanto baste e dependente da quantidade de nicotina e cannabis ingerida. Como corolário, minis amontoadas em cada mesa e esquina e cinzeiros por despejar. Foi assim no extinto Laboratório, no saudoso Estrela, ou no Banco, mais tarde rebaptizado como Aposentadoria. Numa categorização de espaços nocturnos, poderíamos classifica-los como antros culturais ou “aquela luz é o nascer do sol”. Na mesma categoria, sem sombra de dúvida, o Desterro e o extinto Sabotage. Com um sistema de fumos bem mais eficaz o, também ele extinto, Irreal, que colocaríamos num hipotético – bar de mesas com copo de tinto e boa música. Por último, as lojas. Somente aquelas que são bem mais que um receptáculo de vinis e CDs e que se preocupam em estabelecer uma ligação com os artistas e a obra destes com o público. Há uns bons anos a Trem Azul, hoje um sports bar, sinais dos tempos, e actualmente a Flur e Jazz Mensegers.

Pavor a roteiros turísticos e a livros que reconstituem percursos. Somente, o desejo de mapear um dos muitos “pulmões curtidos no fumo”, que dá pelo nome de Luís Vicente. O nosso encontro mais próximo e ao seu trompete deu-se no Estrela. Nas afamadas, celebradas, derreadas noites do Estrela Decadente. Raramente a solo, sempre acompanhado de outros excelentes músicos, em exercícios de pura improvisação ou pelo menos muito próximo deste registo e sendo um dos maestros dos ensembles, das noites de encerramento do Estrela. Tempos da mais pura ebulição, em que a participação nos projectos que cada um ideava tornava-se obrigatória. Desde aí, nota-se uma energia incomensurável no Luís. Desde aí, uma vontade imensa em mostrar o seu trabalho. Da Rua Josefa Maria, a umas quantas voltas pela Europa, com músicos de diversa formação e nacionalidade, o seu percurso foi-se sedimentado e solidificando.

Voltar a vê-lo na Jazz Mensegers, aquando da apresentação do seu mais recente trabalho, House in the Valley, pela Clean Feed, é recosturar todo este amontoado de fios e memórias. Que nos perdoem todos os excelentes músicos que o acompanharam, neste final de tarde, John Dikeman (saxofone tenor), Luke Stewart (contrabaixo) e Onno Govaert (bateria) ao longo de uma hora de concerto, com a sala a demonstrar uma nova configuração, bem composta por sinal. O quarteto funcionava num diálogo aberto, muito bem construído por cada uma das partes — ora com os tradicionais solos, ora em combinação de sopros, ora numa dança entre sopros e, sobretudo, contrabaixo.

Mas talvez sem aquelas horas de fumo e lassidão não haveria músculo para tão bela música. Sons amarrados a horas e horas de ensaios e jams. O percurso de Vicente é cada vez mais sólido, menos impreciso, com músculo e cérebro. E ambos o Luís tem. Ao descer a escadaria uma pergunta a nós mesmos – Sem aquelas noites de parcos recursos técnicos e monetários, teria chegado até aqui?


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