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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/01/2021

Parar, ultrapassar barreiras e abraçar o impossível e o absurdo.

Luis Pestana: “Aprender a reconhecer o potencial de cada erro se transformar em algo belo tornou-se a minha busca”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/01/2021

Sonicamente ambicioso, audaz e original. Ar fresco no meio de um ano sufocante, Rosa Pano foi rapidamente acrescentado a algumas listas de melhores discos de 2020. Foi uma surpresa no panorama nacional, tanto dentro como fora da música electrónica. Talvez por isso mesmo, o seu lugar tenha sido na americana Orange Milk Records.

Nunca é demais reforçar que este é o primeiro registo a solo do músico português Luis Pestana, guitarrista da extinta banda de doom/post-rock LÖBO, quando isso, de facto, nos informa muito pouco na preparação para esta estreia. O seu passado associado à guitarra só nos põe em evidência o seu gosto por instrumentos de corda. A presença desse instrumento, se surge, é em feedbacks, longe do seu uso mais padronizado. E a intenção de não se prender a instrumento algum vê-se na forma como aborda todos os arranjos, num híbrido de difícil definição.

É muito difícil de perceber em Rosa Pano o que é um sample, um instrumento acústico, electrónico ou digital. A variedade na tipologia de texturas é grande parte do que fascina neste projecto, a par com o manuseamento das mesmas e com a decoração de cada tema. A cinematografia que a sua música exalta através de uma composição que se prende mais com a junção das suas camadas do que com compassos bem contados.

Embora se possa apontar para algumas referências, é bastante clara a originalidade e audácia por trás da composição ao mesmo tempo dispersa e coerente de Luis Pestana, na qual junta instrumentação e ideias da música clássica contemporânea, da electrónica e, na verdade, de tudo o que pode estar entre o tradicional e o avant-garde. Apesar da confusão (provocada pela tensão harmónica) que surge em momentos mais desassossegados do álbum, há muito de um bucólico harmónico e consonante em Rosa Pano. Talvez a associação ao lado campestre seja óbvia, tendo em conta o cante alentejano que se eleva “Ao Romper da Bela Aurora” por cima de uma sanfona, mas também os sinos e as camadas de instrumentos acústicos. Tudo isto pouco diz sobre o que é Rosa Pano, mas esperamos que incentive a vossa atenção para aquele que é um dos discos mais fascinantes de 2020.



Como surgiu a relação com a Orange Milk? Deu-se antes ou depois da composição do Rosa Pano?

Na altura em que andava a compor as músicas do Rosa Pano, ouvia bastante o Life Strategies do Event Cloak, o Gasp do Seth Graham. Os dois na Orange Milk. O Binasu da Kate NV também. Acabaram por influenciar algumas decisões no meu processo de criação. Enviei-lhes duas músicas – gostaram e perguntaram por mais. Quando terminei o álbum, pareceu-me a editora perfeita para o editar. É uma das editoras mais genuínas que conheço. Sem medos e sem pudor. Onde violência e graciosidade vivem lado a lado.

Este é um universo consideravelmente distante do que existia no teu anterior projecto em banda. Veio de um ponto de viragem ou esteve lá sempre um percurso electrónico e exploratório à vista?

Passei tanto tempo a fazer a minha guitarra soar a tudo menos uma guitarra. Com o tempo, senti-me pouco inspirado com o instrumento e tive que aceitar que não era um guitarrista. E que talvez nem o queria ser. Fiquei uns anos sem criar, a explorar outros interesses na vida. Até perceber que, para mim, criar era tão essencial como comer.

A minha vontade de criar música sem qualquer limitação física e criativa fez-me ultrapassar o meu desinteresse por computadores e mergulhar no mundo mágico do MIDI e dos samples. E aos poucos, sem perceber bem o que andava a fazer, deixaram de haver ideias impossíveis e absurdas ou erros. Quase todas as músicas do Rosa Pano nasceram com enganos e erros técnicos nas gravações. Passei a explorar métodos que tornam esses supostos erros mais frequentes – no fim, aprender a reconhecer o potencial de cada erro se transformar em algo belo tornou-se a minha busca.

Há aqui uma sonoridade muito específica que alberga diferentes influências. Fala-nos um pouco sobre estes timbres que escolheste: os teclados, as vozes – que se chegam a assemelhar a cante alentejano num contexto electrónico – e a cítara, inclusive, tocada pelo Bruno Pereira. A procura por instrumentação menos convencional neste formato foi intencionalmente arrojada ou foi-te surgindo naturalmente?

É uma consequência da procura constante por timbres diferentes e texturas pouco familiares. E para isso não bastava pegar nos instrumentos que conheço bem e carregar nos mesmos pedais de efeitos – tive que procurar fontes novas. Uma das poucas regras que usei para simplificar as minhas escolhas foi limitar o uso de elementos percussivos e rítmicos, que muitas vezes são prisões na música electrónica. Esta regra e a minha limitação a tocar e compor para instrumentos fizeram com que focasse grande parte da minha energia nas possibilidades que cada timbre diferente podia oferecer a cada música.Talvez o que me deu maior prazer foi modificar gravações de forma a que os instrumentos não parecessem algo tocado por alguém, mas apenas sons que estão “a acontecer”. Algumas texturas que podem pensar serem de instrumentos, são na verdade sintetizadas e vice-versa. 

Como se deu a intervenção dos restantes músicos? Como chegaram à participação de Rosa Pano?

Foi fruto de jams com amigos próximos. Costumava pedir a amigos que improvisassem com o que quisessem – a sua voz, algum instrumento –, mesmo que não o dominassem. Depois usava essa gravação para manipular a voz ou instrumento a meu prazer, e na maioria das vezes ficaram irreconhecíveis. No caso do Janita Salomé e do Vitorino, cederam-me a gravação e eu quase nem lhe toquei, acrescentei apenas um fundo instrumental muito simples. Estou-lhes muito agradecido por poder usar as suas poderosas vozes.

E quanto ao digging de samples? Como chegaste a Julia Wolfe, Warner Jepson, José Pinhal e Krzysztof Komeda? Onde é que os ouvimos e como te apropriaste destes artistas?

Não há melhor maneira de ultrapassar um dia menos inspirado ao compor do que começar por samplar. Umas vezes com um sample desfigurado, outras vezes assumido, as melodias restantes começam por descer do céu Depois costumo descartar o sample. Poucas vezes acabam por ficar. A Julia Wolfe é uma das minhas compositoras contemporâneas preferidas. Ensinou-me como música pesada ou poderosa pode ter várias cores delicadas e sensações subtis, e não ser apenas um monólito negro. O Komeda e o Jepson fizeram bandas sonoras lindas nos anos 60. Usei as samples desses filmes para cobrir os sons digitais de pó, terra, sangue, memórias.

O José Pinhal ajudou-me no começo de uma música e acabou por pedir para ficar. Ainda estou à espera que alguém consiga reconhecer esse sample.

E para os próximos tempos, o que nos podes contar? Tens novos trabalhos ou colaborações a caminho?

Continuo a procurar texturas e timbres novos. Novos para mim. Ainda há muito aqui em Portugal por explorar… Especialmente vozes – procuro vozes que me comovam. E instrumentos com sons que me transportem para o meu mundo. Tenho procurado estar mais presente no quotidiano e retirar o que é eterno do mesmo. Viver essa aparente contradição é a base do meu processo para criar nos próximos tempos. Com um pé na terra e outro no céu.


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