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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Victor Braz
Publicado a: 21/04/2023

Alma latina.

Lucy Val: “Se queres fazer música honesta, não vais estar a criar propósitos que não o são”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Victor Braz
Publicado a: 21/04/2023

Feitas as contas, já são pelo menos dez anos a fazer música. Mas, para João Giga chegar a Lucy Val, o autor de Serpentino — o seu EP de estreia pela MAR (Match Attack Records) — teve de trilhar um percurso de superação pessoal e auto-descoberta artística até chegar a um primeiro trabalho em nome próprio (re)definido. Volvidos estes anos de amadurecimento discreto, a apresentação do artista serpense sediado na capital faz-se entre um reggaeton trágico-sedutor e um bolero à portuguesa, de inspirações mais latinas do que propriamente lusófonas, mas incontornavelmente circunscrito às suas raízes, aqui exploradas em primeira mão.



Sei que já fazes música há algum tempo e que tens vindo ao longo dos anos a definir a tua identidade. Como foi esse percurso de auto-descoberta artística até chegares ao Lucy Val?

Eu comecei a produzir em 2013, e na altura era mais fácil para mim escrever em inglês. O tempo foi passando, eu fui produzindo — mas não tão certo do que ia fazer, nem sequer do que estava a fazer — e, eventualmente, lá para 2016, comecei a compor as coisas já de uma forma mais com intuito de lançar e de começar a minha carreira. 

FRNKLN nasceu em 2017: foi quando lancei a primeira música com vídeo. Isso foi um processo um bocado… foi sempre uma mistura. Não sei se tu conheces esse projecto em específico, mas o género é muito vago; eu acho que sempre usei as minhas influências todas, e na altura as minhas influências tinham muito mais a cena electrónica e… não quero dizer trap, mas, na altura, sem dúvida que houve uma influência gigante desse género em toda a indústria. Era obrigatório: se não tivesse um 808, as pessoas não iam ouvir da mesma forma. Não me obriguei a fazê-lo, fui usando os elementos da forma que soube. Mas chega a um ponto — foi em 2019, penso eu — em que inglês, só, não funciona, não é tão sincero, não traduz tão bem os meus pensamentos como as minhas próprias palavras. E escrevi a primeira música em português, uma demo que ainda tenciono tocar ao vivo — não sei se vou lançar alguma vez —, que se chama “Morte Lenta”.

Antes disso nunca tinhas escrito em português?

Não, nunca mesmo. Sentia-me…

Desconfortável?

Era isso, a voz em português soava diferente, a dicção… É habituares-te a ti. Acho que eu não me queria ouvir a mim. E, eventualmente, quando decidi que queria ouvir-me a mim, comecei a assumir o português. Porque eu não queria abandonar FRNKLN, não queria desmontar aquilo e mudar as coisas, então assumi só deixar um projecto para trás e começar outro com outro nome — e neste caso com outra língua e, na verdade, com outra estética. O tempo todo em que não lancei estive só a explorar os géneros de música que me influenciam mais, e acho que fiz um casamento fixe com as influências que tenho. A partir daqui será mais ou menos pela mesma estrada: as guitarrinhas que eu gosto [risos] e que adoro tocar,  e percussões mais orgânicas. Sinto só que ficou mais maduro nesse sentido; FRNKLN ainda era uma visão… não quero dizer infantil.

Ingénua?

É isso! Parecia-me um pouco ingénuo que fosse funcionar como carreira, se é que isto faz sentido. Não podia estar mais feliz com a mudança, e estou curioso, na verdade, para ver agora para onde é que Lucy Val vai quando sair um álbum, talvez, que eu tenciono ir sempre adicionando alguma coisa à minha música — não uma mudança drástica, mas garantir que é sempre alguma coisa nova a acontecer de alguma forma. 

Nesse processo de transição de FRNKLN para Lucy Val, a deixares de ser tão ingénuo artisticamente, procuraste ser mais ponderado em relação ao que lançavas?

Sou muito perfeccionista — e cada vez sou mais —, o que complica um bocado esse processo de, às vezes, assumir ou aceitar que alguma coisa já está boa, que já é exactamente aquilo que eu quero ouvir. Mas é um bocado vago…

Pergunto isto porque, actualmente, a tendência é ser mais selectivo naquilo que se lança, e não tanto ir descobrindo essa identidade à medida que se lança.

Acho que isso varia um bocado de artista para artista. Falo por mim — porque, na verdade, só posso falar por mim —, mas sinto que, muitas vezes, o pessoal faz a cena do throw away: por exemplo, uma música que lanças só para manter as audiências. Sem dúvida que tens de jogar de forma estratégica com os teus lançamentos, mas, no meu caso, se não estiver exactamente como eu quero, não está pronto para ir — mesmo que amigos ou colegas achem que já está no ponto. Às vezes, há sons que ficam em stand-by para sempre; há qualquer coisa ali que não desbloqueia, mas é só para mim. Garanto, pelo menos, que sempre que lançar vai ser exactamente o que eu quero ouvir. 

No processo de chegar ao Serpentino aconteceu isso?

Na verdade, o EP nasceu muito rápido — nasceu na primeira semana de 2022. Encontrei instrumentais, que são da “Casa”, “Choro” e “Baile”, e numa semana compus a cena toda, fechei os três sons, e foi isso que me motivou, depois, a continuar a ver se fechava o EP. A “Sangue”, se calhar, foi a mais demorada — foi uma música que passou por várias versões, um desses casos de “ainda não é isto”.

Curiosamente, foi a que eu gostei mais do EP.

Olha, valeu essas voltas todas, acho eu [risos]. Mas, sim, esse foi o caso mais problemático. Por isso, acho que o EP foi fácil de fazer. Não me preocupei muito porque estava sempre feliz com o que estava a fazer.

Em que fase do processo entrou a MAR [Match Attack Records]?

Em termos de produção chegou depois de tudo estar feito. A “Fogo”, na verdade, foi composta já sendo artista-MAR — foi a última a ser feita; deve ter sido feita para aí dois meses antes de fechar o EP, não fazia parte. E a MAR entrou por essa altura.

Como surgiu essa ligação e o que te atraiu nesse projecto, que ainda é recente? 

Se calhar, isso foi uma das razões principais. Para além disso, ser colega dos [respectivos] artistas: o Pedro da Linha… É assim, nós não temos nada assumido ainda, nenhum projecto pensado em específico, mas ele deu muito sangue para eu estar aqui. Lembro-me de estar com o Pedro, que é o meu agente, encontrámo-nos com o Pedro da Linha, e a ideia era o Pedro vender ao Pedro da Linha o meu trabalho, mas o Pedro da Linha esteve o tempo inteiro a vender o meu trabalho ao meu agente [risos]. Foi fixe, senti que fui bem interpretado e que a agência tem os mesmos interesses que eu. Acho que eles pegaram pelas razões certas e entendem a minha visão — e apoiam as it is.

Nesse caminho de descoberta do Lucy Val, apesar de não teres lançado muita coisa, o teu nome já vinha a ser associado a artistas como L-ALI, Kidonov ou Extrazen. Eles foram determinantes nessa descoberta?

O Kidonov foi desde sempre. Ele tem um papel muito importante, quer ele saiba ou não, em tudo o que eu faço. Está sempre lá para me ajudar com detalhes, situações, seja o que for — mesmo que não seja música. No caso do L-ALI, adoro o trabalho dele, e mal posso esperar para que toda a gente possa ouvir o que ele está a fazer. Mas é mais um apoio artístico do que propriamente musical, e digo o mesmo em relação a qualquer outro artista. A minha música é toda produzida por mim, não tenho esse tipo de influências de outros artistas. 

Era o que te ia perguntar, também: se a produção do EP é integralmente tua, ou se houve mais gente a contribuir.

Em mix, muitas vezes, dá assim um sample só para dar o balanço necessário. Mas foi tudo produzido e gravado em casa, o que é importante para mim de certa forma, porque eu tive algum tempo sem casa, então andava sempre em casa de amigos e de mochila às costas. E, na altura em que consegui esta casa, montei um estudiozinho…

Em Serpa?

Não, Serpa é de onde eu sou. É ali na margem sul, no Seixal. E, aí, conseguindo montar esse espaço, foi muito mais fácil começar a produzir. Acho que foi aí que descobri a minha sonoridade. Portanto, para já, sou só eu. Para o álbum, em princípio, vou incluir mais instrumentos: violoncelo, trompete… A ideia é ir sempre crescendo nesse sentido, para também o espectáculo ao vivo ser uma cena cada vez mais composta.

Encontraste a tua zona de conforto.

É, sem dúvida, a minha zona de conforto. Eu não saio de casa — saí hoje para vir cá [risos]. Não, mas passo muito tempo em casa; passo muito tempo no estúdio: não uso a minha sala, o quarto é para dormir, acordo de manhã, vou para o estúdio e é lá que passo o dia. Acho que tive essa fome de durante tanto tempo não ter um espaço para produzir, ou as condições certas, e [agora] valorizo isso. E, felizmente, está a funcionar, estou a conseguir trabalhar bem. 

Esse registo que descobriste como zona de conforto, que se sente do início ao fim do EP, de onde veio? 

Se calhar, [vem] de influências que eu sempre tive, mas que não explorava com o mesmo interesse. Eu toco guitarra desde miúdo, por causa do Kidonov mais uma vez: nós conhecemo-nos desde os 13 anos, na altura ouvíamos metal, e lembro-me de ele estar a tocar air guitar e eu disse, “Porque é que fazemos isto se não sabemos tocar?” — e ele disse, “Fala por ti”. Então, cheguei a casa e pedi ao meu pai para me ensinar. Desde aí, sempre toquei guitarra. Depois, tive bandinhas de metal, mas sempre gostei de tocar em acústico e [ouvia] montes de música latina desde miúdo. Acho que foi só amadurecer o que eu gosto de ouvir, e fazer. At this point acho que é mesmo a minha guitarra e as minhas influências.

A guitarra é sempre o teu ponto de partida para criar?

Evito que seja.

Porque é mais fácil para ti?

É um processo muito mais intuitivo, mas, para mim, chega uma altura que também sinto…

Que não é desafiante?

É isso, é isso. Por isso é que a minha intenção com o álbum já é envolver mais instrumentos — não tanto o processo de eu estar a produzir sozinho em casa, mas estar com mais artistas e conseguir criar uma música que não seja pensada e fechada por uma pessoa só. Inclusive, eu não sei tocar os instrumentos, por isso acho que, sabendo o que as pessoas conseguem fazer, dá para ser mais criativo nesse sentido. Mas, para já, não estou preocupado com essa parte.

Mas neste EP aconteceu isso: partires da guitarra para tudo o resto?

Sim, e continua a ser. Eu tenho dezenas de instrumentais em que a base é sempre a guitarra. Por mais voltas que o instrumental dê, é sempre mais fácil para mim entender a música dessa forma: criar acordes, fazer melodias… porque é aquilo que eu toco. Se calhar, se tocasse piano, tinha outra sensibilidade. 

Mesmo na “Sangue” foi assim? Porque, nessa, a batida é preponderante e parece que guia tudo o resto.

Sim, sim, também acho que isso se deve à guitarra estar tocada num loop muito simples. E também sinto isso: que a música vive muito do bounce do beat.

Ainda em relação às influências, eu sinto que o EP está a ser… muitas vezes a “Fogo” e a  “Abala” são interpretadas como fado — ou música portuguesa. Sem dúvida que é, porque eu estou a cantar em português, mas eu oiço muito pouca música portuguesa. Quase nenhuma, mesmo. No sentido em que fado não tem uma influência em mim, nem nenhuma coisa parecida que, se calhar, interpretam como fado — que é o bolero, que é a minha maior influência. Eu sinto que trago muito isso, mas cantado em português a linha é muito ténue. É muito difícil entenderes que género está a ser tocado. Não digo isto de forma… não me ofende; as pessoas, cada uma lê como sabe, claro. Mas não sei até que ponto essa ideia…

É quase uma coincidência?

É… Não sei explicar, é complexa esta conversa. Não consigo transparecer directamente as minhas influências, porque, cantado em português, vai sempre soar a português.

Eu não associei tanto ao fado, mas mais ao cante alentejano — talvez sugestionado por saber que vens de lá — com a estética latina à mistura, que é uma estética que ultimamente tem sido explorada por vários artistas.

Sim, mas é isso. Essa é outra [risos]: eu sou de lá e tenho imenso orgulho em ser de lá, adoro Serpa, estou lá sempre que posso e espero um dia viver lá. Mas, mais uma vez, a minha música não é influenciada pela música portuguesa. Influencia-me, de facto, o cenário de Serpa, e tudo o que vá fazer visualmente vai ser sempre lá. A parte do cante alentejano influenciou-me, se calhar, em expressões que eu me lembro de ouvir a minha infância toda.

Como “deixa-me da mão”.

Sim, tipo isso. E “abala”, que é tipo “vai-te embora” [risos]. Porque isso me soa bem e acaba por ser musical. Acho que é o máximo que eu tiro da música alentejana, será a parte do coro, a estrutura com que eles compõem as letras, e expressões. 

Para mim esse espectro vai de um João Não a um Pedro Mafama: como se caminhos diferentes fossem dar à mesma estrada.

Sim, sim, eu vou acompanhando e entendo perfeitamente a comparação. Eu quando digo que não oiço música portuguesa é no sentido de a música que acham que me influencia eu não oiço com essa intenção. Podia ouvir e optar por beber dessas influências, mas tenho outras. Mas entendo essa caixa em que nos põem. 

Sobretudo por ser uma caixa nova.

Sim, sim, é uma caixa nova, mas, ao mesmo tempo, para mim, é um tema um bocado delicado…

Porque é redutor?

E o que é que é realmente influência ou apropriação, percebes? Às vezes, eu não sei distinguir, por isso é que eu também não me informo muito sobre a razão das coisas, porque não me diz respeito. O que me importa, na verdade, é o resultado final. Mas é isso: eu não quero ser interpretado como um artista que faz música…

Desta vaga de novos fados?

Sim, é por aí. E como sinto que isso está a ir por aí, é óbvio que vou manter a minha estética, mas quero ser muito mais em termos musicais. Vai ser sempre português, mas é fugir um bocado ao quão fácil é seres posto em caixas. 

E, comercialmente, até seria benéfico para ti associares-te a essa caixa.

Sem dúvida. Mas eu já estou nisto há bué tempo [risos], e agora fazer isso dessa forma…

Depois de tanto tempo a descobrires a tua identidade, abdicares dela…

Nem é abdicar. É, se calhar, explicá-la de uma forma que não é real. Não justifica. Se queres fazer música honesta, não vais estar a criar propósitos que não o são. Mas não me ofende e agradeço na mesma. Significa que ouviram, e cada um tem as influências que tem para explicar o que ouve ou vê.

É inevitável fazermos associações por aquilo que passámos.

As caixas que tu tens é onde vais pôr. Mas é o que é. Agora é fazer música e ver em que caixa vou ficar.

Se quisermos pôr caixas, a que me surgiu a ouvir o EP foi um reggaeton trágico-sedutor.

Gostei… [risos] Um reggaeton melancólico. É fácil falar de tragédia — toda a gente tem histórias, e não é preciso muitas palavras. Eu acho que sou a prova disso: eu repito-me imenso, porque acho também que não é necessário pôr tanta palavra se o que tu tens já funciona. E eu gosto de escrever, mas a escrita sai-me enquanto faço a música. Não fico a compor, necessariamente, um texto. E, muitas vezes, sabe-me bem repetir aquilo, dizer só isto desta forma. Música, para mim, é feita para tu sentires — a que eu faço. Não tens que pensar muito, a minha mensagem nunca é directa, por isso interpretas como quiseres.

Na parte escrita vais muito ao sabor da melodia?

O texto é muito cuidado. Pode, às vezes, não parecer, mas as palavras que eu escolho são pensadas quase matematicamente. Se as palavras não batucam como eu quero… porque, muitas vezes, o que eu canto tem de ser uma percussão ao mesmo tempo. É um processo em que uso muita música que já fiz. O lado positivo de fazer música durante muito tempo é que tens imensas demos e coisas já decoradas. Então, se eu tivesse de fazer um freestyle, ia cantar uma música que ninguém conhece. E, às vezes, há coisas que não amadurecem tão bem — o que é fixe, ainda bem que não as lancei —, mas há pequenas partes que dá sempre para usar, que são chave para desenrolar uma letra inteira facilmente.

Falavas já na transição deste EP para um primeiro álbum. Já estás a trabalhar nisso?

Não, não. O álbum está planeado por mim, no sentido de que tenho ideia dos géneros que vou abordar e quais são as influências exactas de que vou beber. Porque há coisas que eu quero experimentar há muito tempo que ainda não experimentei. Vai ter de ser de raiz e composto com os músicos em específico, vai ser preciso ser feito com as pessoas — eles vão ter uma visão e uma linguagem diferente da minha.

Portanto, se calhar, até vai para um sítio que não estás à espera.

Vai ter que ir [risos]. Não sei é com quem é que vou trabalhar. Mas, quando souber, vai ter que ser com a razão certa.

E, agora que tens o EP editado, já tens planos concretos para tocá-lo ao vivo em breve?

Sem dúvida, já estamos a ensaiar, para garantir que o concerto não seja só um microfone e um DJ — acho que a minha música pede mais que isso, e quem vai ouvir merece mais que isso, merece um espectáculo. Sei que vou tocar em Serpa e, dia 13 de Maio, no aniversário da Fábrica da Musa. 


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