[TEXTO] Núria R. Pinto [FOTO] Direitos Reservados
Agosto de 2016. Os Costa Gold acabavam de lançar um daqueles singles que prometiam muito e cumpriam na mesma medida. A produção vinha com assinatura de Pedro Lotto o que, por si só, já era selo com garantia de qualidade e, do outro lado, o “General” MC Marechal impunha de antemão o respeito que se lhe deve. Na teoria, tudo muito bonito. Na prática, vinha com extra.
Lembro-me perfeitamente de ouvir “Quem Tava Lá” — uma diss clássica que talvez só não tenha batido tanto quanto merecia porque cinco dias depois “Sulicídio” roubaria a cena — e pensar, “Espera aí. Quem é este? Alguém meteu açúcar nestes “hey yos” da “No Diggity” e se este timbre vier com rima atrás isto vai dar m…” Pois é. Este era Luccas Carlos e, obviamente, aquilo era amor à primeira vista.
Já muito se falou aqui de 2017 como tendo sido o ano de ouro do hip hop brasileiro, pelo menos no que toca à última década. E se assim foi, também o devemos à capacidade de artistas como Luccas Carlos de trazerem características muito próprias para reinventar o género em português do Brasil. A fusão do hip hop com o funk era inevitável. MCs como Djonga, por exemplo, confessaram ter chegado ao rap bastante depois de abraçarem o baile funk, o estilo que é hoje a bandeira do país no mapa-múndi musical, décadas depois do samba. 2018 seria para grande parte da crítica o ano em que essa fusão se tornaria óbvia. Menos óbvia, no entanto, foi a altíssima qualidade das produções de r&b que começaram a chegar do outro lado do atlântico e que instalaram a dúvida até nos ouvidos mais cépticos.
É do Nordeste e do Eixo São Paulo/Rio que nos chegam os porta-estandartes do movimento (Luiz Lins, Jé Santiago ou Konai são, também, obrigatórios), mas foi na Tijuca, bairro onde Luccas Carlos — ou Ccaslu — cresceu que a coisa se começou a desenhar. Numa entrevista à VICE brasileira em meados do ano passado, confessava que não veio de uma família de músicos — a mãe era enfermeira e o pai um corretor de seguros — mas que o samba era uma constante no rádio lá de casa e as influências dos três irmãos mais velhos, apaixonados por rap, ou do gospel que a mãe trazia da Igreja contribuíram para estimular o lado direito do cérebro. Aos 14 anos compunha a sua primeira canção, um pagode de nome “Casa Comigo”.
Se o estilo não era sofisticado o suficiente para o manter alheado de outros géneros musicais, a temática, pelo menos, parecia ter encontrado aconchego no coração de um romântico confesso. Tupac, Biggie ou Kanye West introduziram-no ao rap mas é na pop e r&b americanas que tem as suas principais influências: Akon, Chris Brown, Ne-Yo ou Omarion compõem uma playlist cheia de temas que o próprio poderia ter perfeitamente assinado se não nos tivesse dado a felicidade de cantar em português.
“Quem Tava Lá” não foi, naturalmente, a primeira aparição do músico que, em 2010 e com apenas 16 anos, conheceria a maior parte dos membros do selo Pirâmide Perdida, do qual viria a fazer parte. Em 2011 lançava a primeira mixtape, Terapia Vol. 1, e descobria na melodia o seu maior trunfo — o feedback em torno das rimas não era dos melhores. Até chegar a UM, o EP de estreia que seria lançado em 2017, foram 6 anos de participações e parcerias com o Cacife Clandestino, Sant Rap — o grupo do rapper Sain — e a rodar com a malta do Catete — importante bairro para história do rap carioca — de onde são a maior parte dos integrantes da Pirâmide ou o até o incontornável Marcelo D2. Faixas como “Quem Tava Lá” ou a brilhante participação no cypher “Poetas no Topo 3” ao lado de Don L, Rincon Sapiência ou Drik Barbosa foram importantíssimas para o trazer para a montra do hip hop BR e até mostrar que esta “falta de jeito” para a rima talvez tenha sido confundida com a falta de experiência de um Luccas Carlos de apenas 16 anos, na época.
O sucesso da Pirâmide foi fundamental para o crescimento do carioca mas é também a ele que se deve a versatilidade do grupo, ímpar noutros selos brasileiros. A lado de BK, Luccas Carlos é hoje um dos membros que goza de maior visibilidade no colectivo e foi também ao lado de Abebe Bikila que o músico conseguiu alguns dos seus maiores hits em parceria. “Lady” de 2016 ou “O Que Quiser Fazer” de 2017 são duas das faixas que melhor espelham o romantismo latente nas produções de Ccaslu e que lançam argumentos de peso para o boom das visualizações: um timbre inconfundível por cima de instrumentais de El Lif Beatz ou Pedro Lotto, produção irrepreensível, rima afiadíssima de BK e, claro, as temáticas a escaldar para rebolar em qualquer club ou sofá de sala. “Cheira-me” que Luccas Carlos e BK já serviram de banda sonora para se fazer muita criança. Para além disso, Makalister, Rashid, WC no Beat ou Febem — para citar apenas alguns nomes alheios aos selo — não fizeram álbuns sem ele, caso dúvidas existissem em relação à capacidade de fazer sucesso “fora de portas”.
Não somos ninguém sozinhos, isso é certo, mas achar que só as parcerias servem a Luccas Carlos seria pura ingenuidade. Sucessos como “Sem Ninguém” ou “Neblina” são exemplos de como o músico se encaixa que nem uma luva nos corações gélidos do rap game brasileiro, sem nunca chegar a ser “cheesy“, ao mesmo tempo que faixas como “Onde Você Tava?“, “7K” ou “Agora” mostram como o hip hop é um estado de espírito e não necessariamente cuspir 100 barras a uma velocidade estonteante: há r&b, há TRAP e amor em auto-tune em doses industriais numa linguagem que tanto os ouvidos como os corpos parecem entender muito bem.
O mais recente trabalho, o EP 1 Milhão de Sonho$, chegou na semana passada e traz participações de Matheus Queiroz, Torres e do Junior “ainda-vai-dar-muito-que-falar” Lord. “coisa rara” foi o single de antecipação e é mais uma faixa daquelas para se ouvir em repeat e a dois. Talvez o calor que sobrou do recém-findado verão no hemisfério sul aqueça o coração dos nossos programadores e as carteiras se abram para trazer aquele que é um dos maiores nomes do r&b underground brasileiro a um dos muitos eventos que o país espera nos próximos meses.