Em tempos de Carnaval, o samba é rei, é impossível não ouvir o seu ritmo alegre e festivo a alastrar-se pelas ruas e a animar as pessoas. Contudo, em mais um ano em que o Carnaval ficou confinado, o samba de Luca Argel, membro dos grupos Samba Sem Fronteiras e Orquestra Bamba Social, é outro. Samba de Guerrilha, quebra as normas estilísticas, fala de lutas e de personagens que mudaram a história do Brasil, aborda o racismo que ainda persiste, num arco que nos remete para todas as consequências de um passado que ainda se manifesta no presente e, consequentemente, de como o samba e a cultura brasileira fizeram parte de todas essas etapas. No fundo, mais do que música, vamos aí encontrar uma aula de história com H grande em que o mais popular dos ritmos brasileiros se desmonta, e em que o artista se apresenta como político e sociólogo.
Numa entrevista bem humorada, onde nem uma crítica aos correios nacionais escapa, o músico e escritor brasileiro, radicado em Portugal, olha para os dois países e conta-nos um pouco melhor a história deste projecto, explica como surgiu a ideia e a necessidade desta partilha, fala-nos da voz angolana que dá alma e coração às narrações, assim como explora a influência que o nosso país acabou por ter num passado que continua a não se discutir. Pelo meio ainda há referências a Emicida, a um português que fez samba e ao porquê de tanta dificuldade de comunicação entre as músicas de Portugal e Brasil.
Antes de falarmos sobre o álbum e aproveitando o momento que atravessamos, gostava de saber como é ser brasileiro e não poder celebrar o Carnaval, não poder estar na rua com as tuas bandas, a tocar samba para as pessoas?
Depois de tantos meses sem poder fazer nada, sem poder dar concertos, sem poder encontrar as pessoas, acabou por desta vez nem custar muito. Eu sigo um historiador que fala muito sobre Carnaval e sobre o samba, e ele diz uma coisa com que me identifico um pouco, que é: para ele custa menos não poder celebrar o Carnaval quando ninguém pode. Se todo o mundo estivesse na rua e eu estivesse em casa ia-me sentir horrível, mas, como ninguém pode, estamos todos na mesma situação. Estamos não celebrando juntos e dessa forma meio estranha continuamos juntos.
Não pudeste celebrar o Carnaval da forma tradicional, mas acabaste por nos dar outro samba, um samba diferente. Foi uma coincidência ou foi planeado a aproveitar também as características do momento para editar este álbum?
Pois é! Foi uma coincidência, mas acabou a combinar muito bem com este momento. Eu tenho o hábito de lançar álbuns no final do Carnaval, porque penso que é um período com uma energia especial, tanto para mim como para a cultura brasileira. É quando o ano realmente começa, pois, até terminar o Carnaval, há uma espécie de hiato, as coisas só começam a acontecer depois. O Samba de Guerrilha também foi planeado para ser editado nesse período, contudo acaba por ser muito diferente dos outros. Formalmente é muito distinto, é composto por versões e não por originais, e calhou que o Carnaval também ele fosse diferente dos outros, de uma forma triste, dolorosa, tal como o álbum difere por motivos muito dolorosos, traumáticos, ele fala o tempo todo de um grande trauma. Mas foi uma coincidência, não tinha como planear isso.
Como surgiu a ideia de fazer este Samba de Guerrilha?
Foi com um desejo que foi crescendo com o estudo que eu fazia. Quanto mais eu estudava e conhecia a história do samba, mais eu tinha a vontade de falar sobre esta história. Porque mesmo eu, enquanto brasileiro, não conhecia com muita profundidade essa história e ela é uma parte importante do Brasil e da cultura brasileira, toca em temas fundamentais, até mesmo para a cultura portuguesa porque temos muita coisa em comum.
Acabei por querer desenvolver um projecto em que pudesse trabalhar isso, transmitir esses conhecimentos de alguma forma para além da música, porque cantar e tocar samba já o faço há muito anos, agora este complemente histórico é uma novidade. Em 2016 tive a oportunidade de pôr pela primeira vez a ideia em prática, num evento no agora extinto Contrabando. Foi durante o golpe que levou à queda da Dilma Rousseff, eles fizeram uma semana especial dedicada ao Brasil, com muitas actividades para informar as pessoas sobre o que acontecia e fui convidado por eles para fazer algo. Foi a primeira experiência, fiz um concerto sozinho, só voz e guitarra, onde só tocava sambas políticos ou de intervenção, criando entre eles uma espécie de arco que começava na abolição da escravidão, no final do Século XIX e terminava no Michel Temer em 2016, tentando mostrar como havia uma lógica de perpetuação de poder, desigualdades e discriminação que permaneciam intactas até hoje em dia, mesmo com todas as transformações. Muito do que é a estrutura social brasileira continua baseada no paradigma da escravidão, continuam muito pautadas por aquilo que foram 350 anos de experiência da escravidão e, depois do golpe de 2016, isso ficou muito escancarado, e ainda nem imaginávamos sequer que ia haver um Bolsonaro, que ainda aumentou mais isso.
Depois do formato do concerto, que continuava a tocar ao vivo no Porto e em Lisboa, eu transportei o projecto para outros formatos, publiquei em revista, levei para a rádio. Só em 2019 é que comecei a considerar fazer um álbum, demorou este tempo todo até eu pensar nele como tal, dessa fase até ao lançamento foram mais dois anos de produção, por isso foi demorado chegar a este formato.
Agora que essa ideia do espetáculo no Contrabando ganhou vida em forma de disco, pensas fazer o oposto e replicar o formato para concertos?
Não sei, ainda tenho alguma dúvida de como traduzir o disco para o palco, porque é um ambiente diferente, é um suporte diferente. Para já tenho tocado apenas eu e guitarra, de uma forma muito informal, quase como uma conversa com o público, em espaços pequenos. Agora para palcos maiores, e sobretudo após ter lançado o álbum, em que é algo muito mais elaborado do que simplesmente voz e guitarra, preciso repensar o formato. Primeiro de tudo preciso de mais músicos, para tocar enquanto banda e aproximar-me do som do álbum. Depois preciso também pensar em como vou encaixar essas histórias num espetáculo, porque muitas pessoas fazem-me essa pergunta e eu sinto que nela vem também o desejo de voltar a ouvir essas histórias em palco, não só as músicas. E isso de contar histórias em palco é um trabalho de dramaturgo, não exactamente um trabalho de músico, nunca fiz isso, não trabalho com teatro, nada parecido. É outra forma de comunicar com o público, então eu penso que vou precisar de um actor ou de uma actriz em palco comigo. Também vou precisar de adaptar essas histórias, talvez contar diferentes, porque as do álbum as pessoas já conhecem. Eu gostaria de ver coisas novas e acho que vou acabar a propor coisas novas. Ainda há outra complicação que é a identidade visual do álbum, agora o Samba de Guerrilha tem uma identidade visual que não tinha lá no início e que precisa de alguma forma de estar presente no palco. As ilustrações do jornal que editámos também chamaram muito a atenção das pessoas, é um projecto gráfico interessante e isso precisa de alguma forma ser traduzido também para o espetáculo. Vou precisar de outro profissional, um cenógrafo. Quero levar isso tudo, vai ser algo meio megalómano que vai dar um trabalho gigantesco, mas vou tentar fazer isso de alguma forma. Agora está muito difícil, mal dá para ensaiar quanto mais montar um espetáculo assim, mas espero mais para o final do ano ter algo.
Tu referiste uma componente teatral e foi interessante: ao ouvir o álbum, eu senti que, muito mais do que um simples concerto, ele pede uma peça de teatro, muito devido às ambiências que criaste com o trabalho de sonoplastia presente no álbum e que infelizmente por vezes é esquecido. Eu gostava de falar contigo sobre isso, sobre o uso dessas ambiências no álbum, porque seria muito fácil, teres só as narrações. Como foram surgindo essas ideias e esses detalhes sonoros?
Nunca me passou pela cabeça ter simplesmente só as narrações, sem nenhuma sonoplastia no fundo, isso estava completamente fora de questão, porque a minha intenção era fazer com que as pessoas não perdessem a atenção na narrativa quando as músicas terminavam. Imagino que as pessoas ao ouvir o disco, quando acaba uma música e entra uma narração, tenham aquela tendência em perder um pouco o foco ou saltar para a faixa à frente, e eu não queria isso, por isso criei na minha cabeça a ideia de um álbum sem intervalos entre as músicas, sem silêncios. Na realidade, só há dois silêncios que existem para separar os três actos, tirando esses momentos tem sempre algum som a acontecer. Foi assim que nasceu a ideia da sonoplastia. Muitas vezes é um instrumento que tocava numa faixa e que se prolonga um pouco naquele intuito de agarrar a pessoa, criando a ideia que a música ainda não terminou e nessa altura a Telma já narra e a pessoa continua presa. Ou, então, no meio da narração, começo a introduzir alguns instrumentos que depois entram na música seguinte, a ideia é as músicas ficarem todas coladas entre si, para criar transições naturais. Tive de fazer muitas experiencias até chegar a este resultado, que sons utilizar, que instrumentos. Foi engraçado porque depois criou-me outro problema: como organizar estas faixas todas. Eu sabia que tinha três actos, mas na altura de fazer o bounce do álbum não sabia se ia fazer com que cada faixa tivesse 15 minutos sem intervalos, ia ter um álbum de três faixas, o Spotify nem ia considerar aquilo um álbum, ia ser um EP. Então tive de cirurgicamente cortar as músicas em certos momentos para poder, por exemplo, permitir a entrada de uma música isolada numa playlist. Tive de inventar títulos para as narrações. foi um processo divertido no fundo, apesar de ser um desafio.
Falaste da Telma Tvon, ela é uma presença fundamental no Samba de Guerrilha. Como a conheceste?
Eu conheci a Telma na Red Bull Radio, num programa da Filipa Marinho, que relaciona música com literatura. Ela conhecia os meus álbuns e os meus livros e era a outra artista convidada para o programa. Até aquele dia não a conhecia, mas fiquei logo fã dela, gostei imenso da música dela, e fiquei com pena dela ter abandonada a música, mesmo nessa altura já estava mais voltada para a literatura e ainda hoje continua. Depois desse programa voltei a cruzar-me com ela num festival de literatura, e nessa altura já tinha a ideia do álbum na cabeça e convidei-a nesse dia a fazer parte do álbum. Primeiro de tudo eu queria uma voz feminina e uma voz negra, porque eu acreditava que a minha própria voz precisava de uma contraste: ter uma voz que canta as músicas de um homem branco brasileiro, e depois ter uma mulher negra, africana, fazendo a parte das narrações, porque o álbum precisava dessa representatividade, era algo básico. Foi um equilíbrio que considerei na hora de convidar a Telma. Para além da sua voz, ela realmente também tem uma voz muito forte, no sentido físico, sonoro. É uma voz muito bonita, muito afirmativa.
Basicamente fizeste um álbum de samba que não é samba, pouco das suas características fundamentais resiste. Isso é devido a uma necessidade de incorporar uma linguagem e uma identidade tua ao projecto ou porque querias fazer o oposto dos sambistas e, em vez de esconder a mensagem, quiseste dar um maior poder a palavra?
Eu acho que foi as duas coisas. Foi uma opção pessoal, porque eu carrego comigo referências muito diversas e tinha essa vontade de as colocar para fora, ainda que tivesse a fazer samba. Queria usar instrumentos e arranjos que se relacionassem com outros géneros. Instrumentos electrónicos, queria usar batidas, quase todas as músicas têm guitarra e baixo elétricos. Isso faz parte da minha formação musical também e acaba por fazer todo sentido colocar essas referências, mas, por outro lado, queria testar os limites do samba. Tentar despir o samba das sonoridades que as pessoas já estão habituadas e colar outros sons nele. É um trabalho de destruição, no sentido positivo, é como se tivesse a dissecar. Penso que o próprio Tom Zé fez isso nos anos 70, com o Estudando o Samba, que foi um álbum muito ignorado na época. Só quando o David Byrne descobriu e gostou é que o Brasil passou a prestar atenção ao Tom Zé, mas ele já tinha feito isso de uma forma brilhante. Pegar nos elementos mais básicos e reorganizar, mudar a ordem, usar instrumentos e sonoridades diferentes, isso é um trabalho que me interessa muito, mais até que reproduzir a tradição do samba, a minha natureza de compositor leva-me para o lado da subversão. Acabou por ter o efeito colateral, mesmo que não tenha sido muito planeado, de sublinhar o significado das letras com outra força, porque realmente existe isso do som esconder a palavra. Muitas pessoas fora do Brasil ficam surpresas para esse efeito paradoxal de uma música que é muito festiva, ter letras que se forem despidas são muito sérias, muito graves, com um senso de humor muito ácido.
Durante a entrevista disseste que este projecto é uma consequência do teu estudo sobre o samba e sobre a cultura brasileira e lembrei-me que há uma parte do álbum que refere que aquilo não se aprende na escola. Porque é que isso acontece? Porque é que estas histórias incríveis e tão importantes acabam esquecidas ou escondidas em vez de ensinadas?
Pois é! Eu acho que isso acontece por ser um sintoma de um traço social que existe no Brasil e que é uma herança da escravidão: o racismo. E o racismo opera de formas muito subtis as vezes. Não é só a cor da pessoa, é também o discriminar dos símbolos culturais. Os bens culturais, os bens simbólicos, os conhecimentos produzidos pela cultura negra também sofrem discriminação, assim como as pessoas. Julgo ser isso que acontece com muitas das histórias, com personagens negras, movimentos, revoltas… eles acabam sempre por ser subjugados. O próprio samba é visto como uma sub-cultura, algo que não deve ser levado a sério, mesmo hoje é visto de uma forma muito condescendente, muito simples, as religiões africanas são tratadas muito mais como superstição e não como religião. Existe um sistema social complexo e hierárquico que acaba por relegar a cultura negra para algo simplesmente pitoresco ou pouco relevante e é isso que acontece no ensino escolar, A abolição da escravidão no Brasil é um exemplo disso, até se aprende um pouco sobre os quilombos, como um espaço de resistência, com a fuga de escravos, mas não se aprofunda muito sobre o movimento abolicionista, sobre uma sequência muito intensa de revoltas que acontecerem pelo país todo — alguns eu falo no álbum. O Almirante Negro, o Dragão do Mar, a Tereza de Benguela, que não são muito citados nos livros. No entanto, nunca vai sentir a falta da princesa Isabel, ela está sempre presente e é sempre o foco. A impressão que fica nas pessoas é que a abolição foi um presente dado de boa vontade aos escravos e não uma conquista deles, e isso é muito triste, e acaba a criar uma mentalidade muito perigosa, de que já foi tudo resolvido.
De certa maneira este álbum fez-me lembrar o AmarElo do Emicida. Não sei se viste o documentário a volta do projecto, mas eu encontro vários momentos e propósitos onde os dois trabalhos convergem. Existe nesta altura uma necessidade de falar nesses temas? Sobretudo numa classe artística e jovem brasileira.
Eu penso que sim, é difícil falar por toda a produção que se faz neste momento porque não consigo acompanhar, mas o AmarElo é um trabalho sintomático que vem num momento muito propício para ter a importância que tem, para além de toda a sua qualidade. É um momento político muito violento, de muito desencanto, com muitas feridas antigas a serem expostas de uma forma muito agressiva, e a arte sempre responde a esses momentos, eu noto que há uma atenção maior na cultura brasileira sobre esses temas. Acho que o AmarElo existe um pouco em função deste momento e de um processo do próprio Emicida de descoberta dessas histórias, e isso é algo com que me identifiquei muito, eu revi-me muito no documentário. Ele começa a descobrir essas histórias porque elas agora são contadas por alguns historiadores, como o Luiz Antonio Simas, que colabora com ele no projecto, o Nei Lopes, uma figura muito importante nos estudos sobre a cultura negra brasileira. Essas vozes começaram a ganhar muito ouvintes agora, porque se relacionam muito com o momento presente, e os artistas através deles começam a descobrir esse passado. Isso fez nascer álbuns como o do Emicida, como o Samba de Guerrilha. São assuntos que são muito falados no Brasil e tenho muita vontade que sejam falados também em Portugal, apesar de ainda se estar uns passos atrás.
Interessante afirmares isso: este álbum sai também numa altura em que os descobrimentos portugueses começam a ser debatidos e questionados. Temos, por exemplo, toda a polémica à volta do Padrão dos Descobrimentos. Acreditas que nós, portugueses, temos de voltar a questionar e a aprender esse período, toda a questão da escravatura?
Eu acho que Portugal sofre de um problema de negação. Tem uma resistência muito grande em sequer conversar sobre esses temas. É muito complicado começar esse debate — acontece –, mas, como se diz no Brasil, é meio aos “trancos e barrancos”, vai sempre encontrar resistência a conversa, como se refletir sobre esses assuntos fosse um ataque à honra. Eu vejo autores, jornalistas, até historiadores, em que parece que se sentem pessoalmente ofendidos quando aparece um debate sobre o processo de colonização portuguesa, como se alguém tivesse a falar mal da família deles. Na verdade são simplesmente são levantados factos, dados e observações sobre consequências desses processos no presente. Talvez por o Brasil ter sido uma colónia e não um colonizador, exista menos entraves a esses questionamentos, mas acho que isso não é desculpa. O debate em Portugal sobre o processo histórico de colonização está tão atrasado que ainda germina no senso comum certas ideias estranhas, por exemplo, a própria ideia dos descobrimentos é estranha, como se os descobrimentos portugueses tivessem levado a civilização a outras sociedades, como se eles estivessem a precisar ou a pedir aquilo, como se fossem inferiores. Esses conceitos todos julgo que ainda estão muito presentes no subconsciente dos portugueses e isso assusta-me um pouco.
Vou falar de algo que me aconteceu hoje. Fui aos correios para enviar alguns jornais do Samba de Guerrilha e vi, no expositor, livros que pareciam uma biblioteca escolar do Estado Novo, tinha livros do primeiro, segundo, terceiro ano de disciplinas que iam de português, a geografia, moral, tudo reedições novas de livros que eram claramente pré-25 de Abril. Peguei um livro de geografia, sentei e comecei a ler: percebi que esse livro ensinava que Portugal era o quarto maior território no mundo contando com os territórios do ultramar. Achei muito bizarro ver um livro que ensina este tipo de coisas, livros do Estado Novo, à venda nos CTT em 2021, uma instituição que já foi do estado, e que espero que volte, porque o serviço agora é terrível. Quem pensou que era boa ideia ter aquilo ali à venda? Ou se quer reeditar estes livros? Só alguém pensar que isso é normal já é um sintoma grave desse estado de negação. Foi uma história de violência profunda, mesmo para Portugal, mas que parece que o país decidiu calar.
Eu perguntei isto sobre Portugal porque abres o disco com um português, o que torna-o de certa maneira um personagem central do todo o projecto. Porque a escolha de começar por este Alfredo Português?
Pois é! Acabou por ser central. Houve vários factores que levaram a isso, acabou por ser uma coincidência muito feliz. Primeiro de tudo, a composição dele. Ele escreveu muito pouco, uma das poucas composições que tem é este “Samba do Operário”, que é um samba muito político, talvez de todos no álbum seja aquela que tem um discurso político mais explícito, onde diz com todas as letras que um operário é explorado porque não sabe o seu valor no trabalho, isso é o marxismo no samba. Eu sabia que este samba era do Nelson Sargento e do Cartola, mas só depois com toda a pesquisa sobre o samba é que descobri que afinal era do Alfredo Português também. Aí comecei a investigar sobre ele e percebi que este era o tema perfeito para abrir o álbum. Uma composição de um português, emigrado para o Brasil, que era fadista, mas que abraça o samba, que foi um dos fundadores da Mangueira — uma das maiores escolas de samba do mundo –, parceiro de grandes sambistas e padrasto do Nelson Sargento, que também tem o “Agoniza Mas Não Morre” mais tarde no alinhamento. É uma figura portuguesa ligada ao samba, e acaba por cumprir uma função no álbum que queria muito, estabelecer elos de ligação entre os dois países, para que os ouvintes portugueses se sentissem também implicados na história. Ainda procurei outros compositores de samba portugueses, mas não há muitos. Há o Ratinho, mas não tem muito esse lado político, por isso acabou por não entrar no álbum.
Este álbum vai muito para lá da música, é sobretudo uma importante aula de história. Há uma em especial que me marcou, tanto no teu álbum como no AmarElo, que é a lei da vadiagem, que personifica da melhor maneira o Brasil a tentar matar a sua própria cultura. Isso ensinou-me que falar de samba é também falar de perseverança, coragem e sobrevivência. Aprender estas ideias, ver este álbum como algo mais que música, acaba por ser a maior vitória e o maior elogio para um projecto como o Samba de Guerilha?
Eu acho que acabou de dar o maior elogio que eu poderia ouvir, que é dizer que hoje associa perseverança e sobrevivência ao samba — o que eu mais ouvi nos últimos anos foi pessoas a associarem o samba ao Carnaval e ponto. Tirar o samba desse lugar já é uma grande vitória para mim. Ainda por cima nem é um lugar que o Carnaval devia ocupar porque ele é muito mais do que as pessoas pensam que é. Existe essa ideia de que samba é igual a Carnaval, e que é igual a mulheres sem roupa, quando é muito mais complexo. No Samba de Guerrilha acabei por não ter tempo para fazer isso, para desconstruir a própria ideia do Carnaval como uma festa da alienação, o que é mentira. É uma festa muito mais subversiva, muito atacada pelo poder público. O Carnaval acabou por se tornar uma exportação do Brasil através de uma deformação dele, os desfiles. Pensar que o samba é só Carnaval é um equívoco gigantesco. Poder abrir a cabeça das pessoas sobre isso já é a maior vitória que posso pedir do Samba de Guerrilha.
Só um apontamento: falou da lei da vadiagem e eu não falo isso no álbum, mas nas apresentações ao vivo às vezes conto. O último prefeito do Rio de Janeiro, o Marcelo Crivella, ele era bispo da IURD. Ele foi prefeito nos últimos quatro anos, até perder no ano passado. Uma das primeiras coisas que fez quando assumiu o cargo foi um decreto que regulamenta actividades culturais na cidade, em que dizia que qualquer coisa que fizesse na cidade, mesmo que privado, tinha de pedir autorização à prefeitura. Só que os eventos que eram fiscalizados e proibidos eram por coincidência eventos de samba, Carnaval, eventos religiosos ligados à cultura negra, era uma reedição de tudo o que a lei da vadiagem fazia. É uma luta que continua, mesmo hoje em dia.
Para finalizar gostava de fazer uma pergunta que não tem a ver com o teu álbum, mas que acho pertinente de fazer, por conheceres o lado brasileiro e português e também por já teres trabalhado com músicos portugueses, desde a Ana Deus ao Keso. Apesar de sentir que a distância entre Portugal e Brasil musicalmente já foi maior, ainda sinto que existe uma certa barreira entre os dois países e nunca percebi muito bem o porquê de não existir uma maior comunicação, visto que partilhamos a mesma língua. Percebes porque é que existe essa falta de diálogo entre os dois países?
Eu acho que pelo menos da parte do Brasil isso é verdade, existe uma ignorância muito grande em relação à música portuguesa, não se conhece praticamente nada, o que se conhece é fado, o Roberto Leal e agora muito recentemente o [António] Zambujo e a Carminho, porque gravaram com o Chico Buarque e o Caetano Veloso. Isso acabou por abrir algumas portas, mas no geral é um desconhecimento gigantesco, que me dá tristeza e que eu só consigo explicar por uma razão do tamanho de mercado. O mercado brasileiro é gigante e muito centrado em si. O que o brasileiro ouve é basicamente música brasileira, sobretudo sertanejo da pior qualidade, e quando não é isso, é música americana, o resto do mundo basicamente não existe. Eu, de certa forma, até percebo porque a produção musical no Brasil é mesmo muito grande, e fica um pouco difícil ter espaço para mais. Portugal, como é um mercado menor, é mais permeável. As vezes há algum entrelaçamento sobretudo no rap, houve o Língua Franca, o álbum da Capicua que teve a participação da Karol Conká, existem essas conexões, mas é muito mais por parte de Portugal. Depois, acho que há uma certa preguiça em relação ao sotaque português, parece uma coisa pequena, e é pequena, mas acaba por afastar.