LP / CD / Digital

Loyle Carner

hugo

Universal / EMI / 2022

Texto de Miguel Santos

Publicado a: 29/12/2022

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Roda-se a chave na ignição, engata-se a primeira e estamos prontos para nos fazermos à estrada. Será que de Lisboa a Sintra dá para uma potente catarse? Se o condutor for Loyle Carner e o carro for hugo, sem dúvida que é possível. O rapper britânico está de volta com o seu terceiro longa-duração e, ainda que conduza do lado errado da estrada, a sua música nunca soou tão certeira.

Este veículo sonoro deve o seu nome ao carro do pai do artista nascido Benjamin Gerard Coyle-Larner. A relação do MC com o seu pai é complicada. Depois de o ter abandonado quando ainda era pequeno, Carner voltou ao contacto vários anos mais tarde e durante o confinamento o pai ensinou-o a conduzir. As viagens no carro foram o combustível para uma nova relação com o seu pai e hugo é essa caminhada de Loyle Carner transformada em música.

Mas se todos os temas que fazem parte deste metafórico engenho motorizado fossem como “Hate” estaríamos em Sintra num piscar de olhos. O tema introduz-nos ao álbum a galope, dos 0 aos 100 em dois segundos, um para o que Carner ama e outro para o que odeia, disparando-os com ordem e critério. O seu timbre recatado continua presente mas nota-se um maior espectro de emoções em vez de um único tom, como mostra o culminar deste tema em que Carner profere o ódio à cor da sua pele. 

Este ódio ferve dentro de si como um motor sobreaquecido, e é por causa do seu pai. Diz-nos, “you can’t hate the roots of the tree/ And not hate the tree” em “Nobody Know (Ladas Road)”, utilizando o beat como divã e um sample angelical como amplificador das suas dúvidas, explorando esse sentimento que carregou durante grande parte da sua vida. Terapia na sua música é algo a que Loyle Carner nos habituou desde o início da sua carreira e em “Georgetown” vemos esse trabalho interno dar frutos. O tema é uma confiante celebração da sua herança multirracial com uma batida que é inequivocamente cortesia de Madlib e barras que não desapontam esta emblemática figura que acompanha Loyle Carner. Para quando o álbum de estreia de MadLoyle?



Ainda que nem todo o álbum seja produzido por Otis Jackson Jr., hugo tem várias batidas que estão à altura da condução acutilante de Loyle Carner. “Plastic” é o instrumental mais vivo do álbum e um dos seus melhores: acompanhado por uma mistura de jazz e música electrónica o rapper usa o plástico como uma analogia para as falsidades da vida e da nossa sociedade, as hipocrisias diárias e os escândalos evitáveis disparados com um tom urgente. “Blood On My Nikes” escolhe o caminho oposto: o beat imprime um ritmo electrónico fúnebre, estático e metálico às frases de murro no estômago proferidas por Carner. 

Travamos a fundo neste tema, algo não está bem. Loyle Carner mete o dedo na ferida e discute uma vida em zonas esquecidas e abandonadas, os acontecimentos traumáticos que experienciou e o loop de austeridade e desconfiança em que tantos estão presos. Há vários destinos para um lago jovem atingido por uma pedra de pai ausente, mas as repercussões sentem-se até à margem, a parte de nós que os outros conhecem. “Homerton” mostra-nos alguém ciente do legado deixado pelo seu pai e das lições que a vida lhe deu. Num instrumental que é uma ode ao trabalho de Nujabes (agradeçam a kwes. e Alfa Mist), a bonita poesia de Carner mostra algo mais importante que esse reconhecimento: aprender com as lições do passado.

As primeiras notas de piano de “Lasting Place” transmitem sonicamente essa verdade tão importante e universal. O beat é, aqui, refúgio, calmo e sem se impor às palavras de alguém que soa lânguido, ciente de que errou e que isso vai voltar a acontecer. Loyle Carner não escolhe entregar-se a um perfeccionismo inatingível mas sim à melhor versão de si mesmo — com tudo de bom e tudo de menos bom que isso traz. É uma escolha lógica quando sabemos que Carner foi pai durante a pandemia. A sua perspectiva alterou-se e quer quebrar esta corrente de ódio que o encadeia ao seu pai para não transmitir essa dor e amargura ao seu filho. E é com este objectivo em mente e “Polyfilla” nos ouvidos que nos fazemos novamente à estrada.

Já se vê o Palácio Nacional de Sintra e chegamos a “HGU”, o destino final desta viagem sónica. À boleia de uma batida esperançosa, Loyle Carner fala sobre o perdão, sobre o seguir em frente e construir pontes em vez de estagnar e ressentir o passado, e termina assim um álbum conceptual bastante ambicioso, terapêutico para ouvinte e autor. hugo é sobre mudar o final da história, deixar que “hurt people hurt people” seja motivo de ruína e em vez disso seja o veículo para um futuro melhor.


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