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Fotografia: Loulé Jazz / Algarve ao Vivo
Publicado a: 28/07/2025

Sem o clima a atrapalhar.

Loulé Jazz’25 — dia 1: os caprichosos movimentos do ar

Fotografia: Loulé Jazz / Algarve ao Vivo
Publicado a: 28/07/2025

No final de Julho de 2024, um trio de músicos noruegueses — o tubista Daniel Herskedal, o pianista Eyolf Dale e o baterista Helge Norbakken — rumou ao soalheiro Algarve para actuar no festival Loulé Jazz. É tão seguro programar concertos ao ar livre no Algarve em Julho como programar competições de ski nas montanhas da Noruega em Janeiro, e a Casa da Cultura de Loulé, que organiza o festival, tinha a seu favor um registo ininterrupto de 27 anos de cooperação pela parte dos elementos naturais. Porém, em 2024 — por sinal, ano parco em chuva no extremo meridional do país — à hora programada para o início do concerto do trio norueguês, as leis caóticas que governam os fenómenos atmosféricos conduziram até Loulé uma nuvem de trovoada. O aguaceiro durou apenas alguns minutos, mas foi quanto bastou para determinar o cancelamento do espectáculo. Quando, um ano depois, o trio de Herskedal regressou a Loulé para cumprir o seu propósito original, a meteorologia brindou-o com uma cálida noite de Verão do Sotavento algarvio, daquelas que permitem dormir ao relento sem um arrepio. Na sua concisa apresentação, o tubista observou que, usualmente, o sound check do trio é muito rápido, mas que no, presente momento, se sentia como se estivesse a dar seguimento ao sound check iniciado há um ano. O que se seguiu justificou plenamente a longa espera. Já lá iremos.

A noite de 25 de Julho do 29.º Loulé Jazz começou com um quinteto liderado pelo guitarrista Afonso Pais em dupla estreia, já que a formação e o repertório eram inéditos, quer em concerto quer em disco. Pais tem inclinação para se aliar a cantoras, como atestam os discos Terra Concreta (2015), com Rita Maria, Joana Espadinha, Luísa Sobral e Beatriz Nunes; Além das Horas (2016), com Rita Maria como co-líder; e O Que Já Importa (2021), com Margarida Campelo, Maria Luísa e Nazaré Silva. A voz feminina — desta feita a de Marta Rodrigues — volta a estar no centro deste novo quinteto, que conta com o pianista valenciano Albert Sanz (colaborador regular de Pais), o contrabaixista António Quintino (hoje em dia muito requisitado) e o baterista João Ribeiro. Se nos discos e formações anteriores de Pais as vozes nem sempre têm estado à altura das composições do guitarrista, no caso de Marta Rodrigues o concerto de Loulé não permitiu tirar conclusões definitivas neste domínio. Pais, dirigindo-se ao público logo na fase inicial do concerto, explicou que gostava que as letras das canções preservassem uma aura de ambiguidade e mistério e que não era essencial que o público percebesse claramente todas as palavras. Talvez tenha ido longe de mais neste intento, já que, apesar da toada geral tranquila e desafogada, não foi possível perceber mais do que algumas palavras desgarradas em cada canção e as linhas vocais estiveram frequentemente submersas pelos instrumentos. Como nem sequer nos momentos instrumentalmente mais rarefeitos a voz de Marta Rodrigues pareceu capaz de recortar-se com nitidez, fica a suspeita que o desacerto não estaria necessariamente na engenharia de som ou no equilíbrio de volumes sonoros dentro da banda. Também não ajudou a individualizar as canções o facto de quase todas terem atmosferas meditativas e magoadas — a excepção foi uma enérgica e swingante peça mais próxima dos códigos do jazz “clássico”, que Pais apresentou como uma combinação entre influências de Elis Regina e material melódico pedido emprestado à composição “Senõr Cáscara”, de Bernardo Sassetti (do álbum Mundos, de 1996, numa época em que Sassetti estava fascinado pelo latin jazz). Feitas as contas, o momento mais memorável do concerto acabou por ser um duplo solo em que Pais e Sanz se desafiaram mutuamente.



Veio depois o trio de Daniel Herskedal. Quem, não possuindo conhecimento prévio da obra de Daniel Herskedal, estivesse de pé atrás face à insólita formação instrumental de tuba mais piano e bateria, logo terá posto de lado qualquer reserva: Herskedal é um melodista inspirado e o trio possui uma identidade sonora ímpar, que se alimenta de influências muito diversas — coloridos africanos e orientais associam-se a tradições musicais escandinavas e a um esmerado sentido de arquitectura orquestral. É capaz de gerar uma formidável gama de ambientes, texturas e dinâmicas.

A matéria do concerto teve como base o mais recente disco do trio, Movements of Air, lançado em Abril passado pela britânica Edition Records (editora dos anteriores nove discos de Herskedal), e foi complementada por “Monsoon Coming”, de Slow Eastbound Train (2015), “The Seeds of Language”, de The Roc (2017), “The Mediterranean Passage in the Age of Refugees”, de Voyage (2019) e “The Mariner’s Cross”, de Harbour (2021). No encore foi tocado “Eternal Sunshine Creates a Desert”, numa nova incursão por The Roc. Muitos dos títulos dados por Herskedal às suas composições aludem, mais ou menos explicitamente, à presente crise civilizacional, sobretudo nas vertentes dos fenómenos migratórios, do desprezo pelos direitos humanos e pelo direito internacional, do belicismo, da falta de empatia que corrói o tecido social e da ameaça das alterações climáticas: só no disco mais recente temos “The Olive Branch”, “Peace River Crossing”, “We Belong to Each Other”, “Mountain of Companions”, “Elements of Harmony”, “The White Flag”, “Civilian Casualties”.

Isto não significa que Herskedal esteja alinhado com a presente tendência de artistas e criadores para colocarem a sua arte ao serviço do activismo. Fazer da arte uma denúncia de injustiças presentes e passadas, uma proclamação de bons sentimentos e melhores intenções, um manifesto por uma sociedade mais inclusiva, equitativa e sustentável, redunda, salvo honrosas excepções, em arte medíocre e não contribui para o avanço das causas que se pretende promover. O artista “de causas”, melhor fará em alistar-se como voluntário num banco alimentar ou numa associação de apoio aos sem-abrigo, ou em pagar pela replantação de parcelas de floresta desmatada na Amazónia, ou em “adoptar” (simbolicamente) um lobo selvagem. A arte não deveria servir para fazer sermões ou promover causas. A sua função primordial é lembrar-nos de que somos humanos. Os melros, as tartarugas, as baleias-corcundas ou os tapires não precisam de ser lembrados de que são melros, tartarugas, baleias-corcundas ou tapires, mas o ser humano distrai-se, confunde-se ou esquece-se e facilmente acaba a agir e a exprimir-se como uma besta, uma máquina, um bully, um lorpa, um fanático, um labrego, um troll, um fanfarrão, um chefe de claque ou um tolo. Ninguém é humano a tempo inteiro — mesmo os melhores entre nós são humanos apenas intermitentemente. É preciso que a arte nos lembre reiteradamente a nossa condição e também que nos revele aspectos menos evidentes da nossa natureza, de forma a que dilatemos e aprofundemos a compreensão do que é ser humano.

Nas vezes em que se dirigiu ao público, Daniel Herskedal, não fez apelos nem prédicas nem distribuiu panfletos e a única pista que forneceu sobre o que inspirara o que estava a ser tocado surgiu quando disse que o título “We Belong to Each Other” provinha de Madre Teresa de Calcutá (a frase que lhe é atribuída é “se não há paz, é porque nos esquecemos de que pertencemos uns aos outros”). As peças abriram, quase sempre, com ambientes meditativos, tristes, umas vezes solenes, outras vezes desolados (mas sempre tecidos com belíssimas melodias), e foram ganhando densidade e ímpeto, assumindo proporções épicas e desabrochando em esperança, redenção e plenitude. Há quem acuse o jazz moderno de ser frio e cerebral, mas ao trio de Daniel Herskedal não faltam calor nem emoção, que são geridos com magistral sabedoria para acumularem e libertarem tensões no momento preciso, de forma a arrebatar o espírito deste bípede sem penas que se baptizou a si mesmo como Homo sapiens e que tem a particularidade de se comover, por vezes até às lágrimas, outras vezes até ao frenesim, com os movimentos periódicos e ordenados do ar a que convencionamos dar o nome de música.

Outra falácia que um concerto de Herskedal desfaz instantaneamente é o de a tuba ser um instrumento limitado, um cavalheiro volumoso e entradote, que se locomove num bamboleio mesurado, pomposo e algo cómico. A tuba de Herskedal pode ser um didgeridoo XXL ou um elástico baixo funk, pode desenhar delicadas e plangentes melodias ou gerar ondas sísmicas, e até é capaz de produzir, em simultâneo, duas camadas sonoras distintas (multifonia). Quem conheça Herskedal apenas dos discos e presuma que o largo espectro sonoro que neles se ouve envolve pedais de efeitos e outra electrónica, descobrirá que ele é produzido “somente” com um impressionante domínio das “técnicas expandidas”. Verdade seja dita que a tuba não é o único instrumento usado por Herskedal: em quase todas as peças tocadas, o músico alternou entre a tuba e a pouco ouvida trompete baixo, que produz um som inesperadamente grave para as suas dimensões (e que mereceria ter mais praticantes).

Eyolf Dale e Helge Norbakken, que formam o núcleo-base da maior parte da discografia de Herskedal, a que se somam, consoante os discos, um violetista, um violoncelista ou uma orquestra de cordas, são também dois músicos prodigiosos. Dale tanto é capaz de produzir um gotejar delicado e glacial como de esculpir melancólicas melodias ou de desencadear um avassalador tsunami e, a quem tenha ficado bem impressionado com a sua prestação, recomenda-se vivamente a audição da sua discografia recente como líder, também na Edition Records, em que merecem destaque os discos em trio com Per Zanussi e Audun Kleive (Being, de 2021, e The Wayfarers, de 2023) e Echoes of Oslo (2023), um concerto para piano de sua lavra em que é acompanhado pela Telemark Chamber Orchestra. Quanto a Norbakken, toca um instrumento que é, em si mesmo, uma declaração de independência de espírito: à primeira vista parece coisa de saltimbanco, um amontoado de bricabraque respigado, sem critério, encontrado em ferros-velhos, nas traseiras de lojas de penhores e na berma das estradas. A configuração-padrão da bateria moderna dá lugar a duas grandes jantes, dois tambores africanos, um pequeno bombo colocado na vertical (como se fosse um timbalão), caixas de madeira e um arsenal de chocalhos, shakers, pequenos gongos, sinos, pratos e outros artefactos metálicos, que são percutidos com baquetas de formas e materiais muito variados; as únicas concessões às convenções são dois pratos em suportes e uns pratos-de-choque de pequeno diâmetro. Mas assim que Norbakken começa a tocar, percebe-se que nada no seu bizarro instrumento resulta do acaso: tudo tem o seu papel e a sua racionalidade, e o resultado é uma paleta de timbres e texturas de estonteante originalidade e amplitude.

Em síntese, o concerto do trio de Daniel Herskedal juntou-se à mão-cheia de momentos transcendentes que o Loulé Jazz tem proporcionado ao longo do seu meritório percurso de quase três décadas.


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