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Publicado a: 02/03/2018

Linn da Quebrada: “Terrorista de género significa ter a minha música como uma arma apontada para a minha própria cabeça”

Publicado a: 02/03/2018

[TEXTO] Núria R. Pinto [FOTO] NuAbe

Fixem estes números: 75 e 35. O primeiro diz respeito à esperança média de vida do brasileiro, a meio da tabela desenhada pelas Nações Unidas e cinco anos acima daquilo que é a média mundial. O segundo, pelos dados do mesmo orgão, é nada mais nada menos que a idade a que é expectável que um transexual brasileiro possa chegar. Em nenhum outro país do mundo alguém pode esperar morrer tão cedo. Os números são ridículos, à falta de melhor adjectivo e, talvez por isso mesmo, um novo termo encaixe aqui nem uma luva.

“Terrorista de género” é a patente pela qual Linn da Quebrada se apresenta ao mundo. Natural do interior de São Paulo, a artista é hoje uma das principais vozes do movimento LGBT para a lusofonia, bastante longe das capas da Vanity Fair que serviram de almofada para outros exemplos a oeste. “Bicha, trans, preta e periférica”, Linn representa todo um movimento que vê no Brasil o progresso e a radicalização em crescimento. Na mesma proporção. Em 2017, o país que mais mata transexuais no mundo foi o mesmo que alterou a legislação para que um transexual pudesse mudar de nome e género no Cartão de Cidadão sem que isso implique uma cirurgia ou até aquele que recebe transexuais nas suas escolas de samba, equipas desportivas nacionais ou como personagem principal da novela das nove da Globo.

Linn da Quebrada, a própria que actua já esta noite na Galeria Zé dos Bois, comemora hoje uma semana desde que ganhou um Urso de Ouro na Berlinale, pelo seu documentário Bixa Travesty. A longa metragem acompanha o percurso da MC que encontrou na pop, no funk e no rap a sonoridade perfeita para acompanhar o seu discurso acutilante com percentagem zero de papas na língua. Falou ao Rimas e Batidas sobre Pajubá, o álbum de estreia que chega para mostrar que na guerra ao preconceito não há espaço para falinhas mansas.

 



Pajubá tem um duplo significado: pode tanto ser uma novidade, uma fofoca, como algo que é incompreensível para os outros. Sentes que esse foi sempre o teu ponto de partida?

Pajubá é linguagem e me chamou a atenção justamente por ser uma linguagem de resistência, uma linguagem criada pela comunidade LGBT como criação e intervenção na linguagem. Para dar e criar sentido aos próprios corpos, às coisas e ao mundo, para gerar relações a partir disso. É uma linguagem de resistência porque também é muito utilizada pelas travestis como modo de se proteger e falar coisas que não necessariamente se quer que outras pessoas saibam. Por essas duas características, principalmente, me interessou e eu acho que tem muito a ver com meu trabalho. Por ser criação e intervenção sobre a linguagem, por ser uma nova criação de sentidos, por ser diálogo, por ser comunicação e por ser resistência.

Pertenceste às Testemunhas de Jeová — e bem sabemos o peso da religião no Brasil. Se ser preto e favelado já é percebido como uma desvantagem social, à partida, como é ser uma mulher trans, preta e favelada no meio de uma comunidade religiosa tão restritiva?

Ser essa bicha travesti preta é o que me dá força. Meu corpo é um ponto de partida do meu trabalho. Eu falo a partir do meu corpo, das experiências que eu vivo. A partir das relações e dos vínculos que eu fui criando durante a minha vida.

Foi um gatilho para ti?

Todas essas experiências foram gatilho para que eu começasse a produzir a minha música como arma. Inclusive no que diz respeito a criar minha própria comunidade, a criar um lugar onde eu pudesse pertencer junto ao meu grupo. Acho que meu show é como um espaço de culto, acho  que minhas músicas são como louvores: louvores das nossas vidas, louvores dos nossos corpos. Acho que todas essas experiências que fui acumulando ao lado dessas pessoas, pelas quais eu fui me aproximando, me fizeram enxergar e criar forças em coisas que me eram apontadas como fragilidade.

Percebo que não te identificas como uma cantora mas sim como uma artista, certo? Que a música não era propriamente a tua arte de eleição mas sim a forma que encontraste de te expressar e passar a tua mensagem. Porquê a música e que mensagem é essa? Principalmente para quem só agora chegou ao teu trabalho…

Não me identifico como cantora porque eu digo que ‘estou’ cantora. A música é uma ferramenta. Tem sido uma das minhas ferramentas de produção e uma ferramenta também de investigação da minha própria identidade, da minha comunicação com o mundo. E ela aconteceu. Eu não tive necessariamente uma arte com a qual eu sempre desejei ser. Eu nunca nem desejei ser actriz, nunca desejei nem ser cantora, nem nada disso… Acho que a música aconteceu justamente porque o que eu mais buscava e o que eu mais continuo tentando buscar, de qualquer forma, é o diálogo. Para que eu percebesse que não estou sozinha. A música para mim tem essa propriedade, de criar pontes e redes de diálogo e de fazer com que nós possamos perceber que não estamos sozinhas. Imagina: é como se eu gritasse no mundo e quem ouvisse minha voz pudesse assim se aproximar e assim eu pudesse formar o meu grupo, meu grupo de força e resistência. Mas eu acho que a minha principal ferramenta e arma de trabalho é o meu corpo. Meu corpo, meu campo de batalha, minha arma. Minha voz é corpo e a minha voz é também essa ferramenta com a qual eu utilizo para encontrar outras igual a mim.

No entanto, começaste pelo funk, que é um dos géneros que mais mensagens sexistas também veicula. Queres falar-me um pouco sobre essa “estratégia”, se é que ela existiu sequer?

Comecei pelo funk porque ele faz parte da minha história, ele faz parte do meu contexto. O funk é a poesia da quebrada. E eu acho que não é uma característica só do funk ser machista: primeiramente, porque temos muitas produções machistas em diversas outras áreas musicais, em diversas outras instâncias artísticas, de forma dissimulada, e temos também outras produções tão nocivas quanto o funk em diversas dessas outras áreas. Olhar para o funk como o funk sendo fundamentalmente machista, também pode ser um olhar elitista, em relação à periferia. É o olhar que mais uma vez talvez tente punir a periferia. Porque o funk também tem muitas outras possibilidades. Eu poderia citar inúmeras criações e produções de funk que não são machistas. Temos diversas produções de funk com diversas possibilidades e eu amo o funk pela sua possibilidade e sua coragem de falar tão directamente sobre a realidade da favela. Eu vi que, com o funk, eu poderia falar abertamente sobre os meus desejos, sobre o que eu gostaria de produzir de desejos em mim. Eu sou completamente apaixonada pelas batida do funk, pelo movimento que o funk traz de resistência.

Quais foram as tuas principais influências e personagens-chave para a produção de Pajubá?

Minhas principais influências para Pajubá foram as artistas que estiveram próximas a mim. Desde a minha parceira Jup do Bairro, a Liniker, as Bahias e a Cozinha Mineira, várias outras pessoas da cena underground de São Paulo, como Alice Guél, Danna Lisboa, MC Dellacroix. Acho que sempre fui mais próxima de artistas que estiveram próximas a mim e que estavam produzindo e criando a cena junto comigo. Lógico, além de influências como Claudia Wonder, Lacraia e pessoas de fora do Brasil como Mikky Blanco. Temos uma cena tão diversa, tão repleta, de pessoas que possibilitaram que eu acreditasse e que era possível eu fazer música, que todas essas pessoas são influências para mim. Até mesmo pessoas que estão fora da cena, como as próprias travestis, que estão nas ruas, estão próximas a mim e que me influenciaram directamente com suas experiências e os seus corpos.

Classificas-te como sendo uma “Terrorista de Género”. O que é que isso significa para ti e de que forma se reflecte no teu trabalho?

Terrorista de género, para mim, significa me colocar em risco, significa ter a minha música como uma arma apontada para a minha própria cabeça. Ter a coragem, às vezes, de matar e destruir coisas em mim para dar espaço para que outras coisas possam florescer. Porque para mim, realmente, toda criação envolve destruição e o meu corpo é a minha obra, é a minha obra em construção — constante! –, o meu corpo é meu campo de batalha e o meu corpo é meu objeto de pesquisa e investigação. É onde sou a médica e a monstra. Cobaia de minhas próprias experiências. Ser terrorista de género é me colocar em risco para que eu também possa ser outras que nem eu imaginava ser.

O que podemos esperar do teu concerto em Lisboa?

Quanto ao meu show de Lisboa, vocês podem esperar… podem esperar! (Risos) Estou indo com muita vontade de compartilhar o que nós estamos fazendo, eu não vejo a hora de conhecer essas pessoas e trocar. De conhecer a cidade. Podem me esperar de corpo inteiro, podem esperar todo esse terror do amor. Vai ser inteiro, estarei inteira com tudo que tenho levado. Um beijo!

 


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