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Publicado a: 26/05/2017

Língua Franca, o supergrupo de rap consciente que quer fazer a ponte definitiva entre o Brasil e Portugal

Publicado a: 26/05/2017

[ENTREVISTA] Alexandre Ribeiro e Rui Miguel Abreu [ILUSTRAÇÃO] Abel Justo

Um supergrupo separado pelo Atlântico e unido pela palavra: se tivéssemos que resumir o novo projecto de Emicida, Capicua, Rael e Valete, essa frase seria mais do que válida, certamente. Com o novo álbum disponível a partir de hoje, Língua Franca liga as diferentes formas de cantar, rimar e criar dos quatros rappers, todos ligados a uma consciência social e política que os distingue dos demais.

Para percebermos melhor o que move este colectivo que junta os quatro MCs e ainda os produtores Kassin, Nave e Fred, o Rimas e Batidas encontrou-se com os rappers portugueses no edifício da Sony Portugal para uma conversa sobre a génese do grupo, a Eurovisão e o Festival da Canção, a língua portuguesa e o Super Bock Super Rock.

 



Gostava de regressar aos primórdios de Língua Franca. Como é que surge o impulso para começar este projecto?

[Capicua] – Isto foi um projecto que foi uma iniciativa da Sony Portugal e da Sony Brasil, em parceira, que quiseram fazer um disco de rap luso-brasileiro para editar em simultâneo nos dois países, e que misturasse também produtores dos dois lados do Atlântico. Eles convidaram o Kassin, o Nave e o Fred Ferreira de Portugal e depois convidaram dois rappers brasileiros e depois rappers portugueses. Neste caso, o plantel foi o Emicida, Rael, Capicua e Valete.

O desafio era esse: Fazer um disco com beats daqueles produtores que misturasse um bocadinho os nossos raps, as nossas formas de falar em português e as nossas músicas. Fazer um disco de rap que, simultaneamente, tivesse letras interessantes e que fosse mais próximo daquilo que é o rap português, não é? O rap mais consciente, rap com conteúdo, mas que fosse musicalmente mais diverso, mais misturado, mais aberto a várias sonoridades. Isto foi um desafio interessante porque os três produtores juntam essas valências: o Nave é um beatmaker muito versátil, o Kassin é mais da MPB e o Fred faz um pouco de tudo, mas também tem a ligação ao hip hop. Acho que foi uma boa selecção.

O rap português tem uma musicalidade diferente do brasileiro. Porque é que acham que isso acontece e o que é que os separa?

[Valete] – É difícil definir o rap brasileiro, obviamente.

[Capicua] – É um continente.

[Valete] – Eu creio que nós até tivemos esse privilégio. O Emicida e o Rael são dois timoneiros de uma escola de rap no Brasil que se propõe a experimentar e a fundir mais. Eu acredito que isso está a criar escola no Brasil. Hoje, eles já têm um rap musicalmente mais arriscado e também têm um factor que aqui não nos condiciona tanto: eles têm muitos problemas com a questão da samplagem. Tens muitos produtores brasileiros a criar, a tocar, a conseguir trabalhar sem samples e acho que isso levou o rap brasileiro para outras direcções.

Estás a dizer que essa musicalidade também deriva da necessidade de contornar as apertadas regras de direitos de autor?

[Valete] – Isso aconteceu no nosso disco. Nós não pudemos ter samples. Eles têm realmente esse problema no Brasil.

Não será um problema, é mais uma circunstância…

[Valete] – Se calhar para alguns é mesmo um problema. O Nave adorava poder samplar e ele já teve problemas. Foi processado e foi condenado em alguns casos.

[Capicua] – O direito de autor [no Brasil] é um território muito blindado e não é fácil. Eles defendem muito a música brasileira e os catálogos. Estão sempre atentos. Por exemplo, eu vejo os Linda Martini: eles usaram um sample de Chico Buarque e tiveram que legalizar tudo. Tudo direitinho.

[Valete] – Eu creio que a esse nível é normal por ser um país maior, uma indústria mais desenvolvida e uma qualidade musical que é consensual em todo o mundo. Creio que também estão a arriscar mais e é um privilégio para nós ter o Emicida e o Rael, dois pioneiros dessa escola.

[Capicua] – Tem um bocado a ver também com o facto do Brasil ser essa mistura dos sons e essa coisa menos conservadora às vezes que nós temos aqui, de termos pudor de unir universos musicais. A mestiçagem é mesmo o ADN do Brasil, em todos os sentidos – em termos musicais e em termos do calão. A relação mais elástica com a língua portuguesa. A língua portuguesa parece que se transforma a cada semana. Há uma juventude na língua que não existe aqui e e acho que cá em portugal temos mais pudores em fazeres estes crossovers, estas misturas. Ficamos mais nas nossas caixinhas.

O Rael, que vem do reggae, que faz rap e canta, faz de tudo um pouco. O Emicida que também tem uma grande ligação ao samba, à MPB. São dois artistas que fazem muito essas misturas. No Brasil também há rap mais puro e duro, com menos infiltrações, como é normal. No Brasil há é menos pudor em fazer a mistura de tudo e nós aqui se calhar somos um bocadinho mais conservadores. Somos menos [pessoas] e acho que a escala facilita.

A música portuguesa tem menos vias comunicantes do que as que a cena brasileira estabeleceu entre diferentes géneros.

[Capicua] – Também é importante perceber o facto do hip hop em Portugal ter dado um salto em diversidade. Já tinha dado vários saltos em número, mas em diversidade foi nos últimos anos, esta coisa de existirem cada vez mais sub-géneros. Até existem outros géneros musicais que pegam no rap como linguagem, tal como os D.A.M.A e tantos outros.

Mas é uma coisa mais recente. Eu lembro-me que, por exemplo, eu, que cresci a ouvir hip hop do Porto e que sou da escola do Porto, olhava para o rap como um meio muito conservador. Lembro-me das primeiras festas de hip hop: se havia um refrão cantado, já era comercial, já era fake. Eu não sei como é que a gente aguentava uma noite inteira a ouvir aquele rap sem refrões com o mesmo loop durante horas. Aquilo era uma seca descomunal. Hoje nem aguentaria aquilo. Existia um conservadorismo… Procurar a pureza do rap, o que até não faz muito sentido porque o rap sempre foi a mistura. Mas pronto: há mais essa ideia de preservar a pureza estilística e acho que os brasileiros não têm essas “nóias”.

Achas que essa facilidade de misturar no rap brasileiro acabou por tornar mais harmonioso o processo de criação do disco?

[Capicua] – Sim. Eu, por exemplo, a trabalhar com o Kassin, o Fred ou o Nave. Eles também têm uma abordagem mais musical aos beats e eu estou um bocado viciada naquela tarola estaladiça, despida assim mesmo (faz o som da tarola). Sabes, aquela tarola de rap tuga. E eu sinto falta disso, mas por outro lado é bom fazer música com outras pessoas e fazer beats que se calhar não escolheria, se tivesse sozinha, e temas que não abordaria porque não me lembraria deles, e, porque alguém sugeriu, vou atrás.  Nos nossos discos individuais temos oportunidade de fazer coisas assim menos misturadas, não é? Por isso, foi um experiência para me abrir a outras sonoridades.

[Valete] – Acho que o espírito com que nós nos entregámos no estúdio foi muito fixe, até porque havia essa abertura, ok? Obviamente que há um estilo Capicua ou um estilo Valete mas havia uma abertura para tentar experimentar e fazer coisas diferentes.

Foi tudo muito bem liderado pelo Fred, ok? O Fred foi o elemento importante porque era um produtor que estava no estúdio. Há aqui um elemento que dá uma marca muito especial ao disco que é a questão do Kassin: o Kassin não é um filho do hip hop. Então ele interpretou tudo o que nós trouxemos para o disco e para a música e deu o registo dele que, para mim, é o que me soa mais diferente. Para mim, é o que faz deste disco uma coisa mais especial.

[Capicua] – Sim, sobretudo a pós-produção.

[Valete] – Já não me soa a uma cena tão típica e acho que tem muito a ver com a presença do Kassin no projecto.

[Capicua] – Mas eu acho que este é mesmo um disco do meio do caminho. Acho que musicalmente é mais brasuca, mas em termos líricos é mais hip hop tuga. A cena das letras – os refrões nem tanto – , mas as letras, o rap, os temas. Fala sobre a amizade, a morte, uma cena mais politico social, uma cena mais egotrip. Podia ser, em termos temáticos, um disco de hip hop tuga, sabes?

Isso é interessante. Vocês diriam que, liricamente, somos mais diversificados?

[Capicua] – É assim: eu acho que nos últimos anos eles deram um salto grande, mas até há bem poucos anos acho que o rap português, em termos líricos, era muito mais competitivo. Mais diversificado e mais competitivo. Agora ultimamente por acaso tenho andado a ouvir coisas mesmo fortes do Brasil, mas também acho que o português de Portugal dá mais jeito para fazer rap. Para cantar se calhar não, mas para fazer rap sim.

[Valete] – Eu creio que também tem muito a ver com a origem do rap no Brasil. Engraçado, nós falamos pouco nisso, mas o rap em Portugal tem origem na classe média. Ao contrário do que aconteceu em muitos países pelo resto do mundo, o rap em Portugal não veio necessariamente dos guetos. Obviamente houve rap nos guetos. Eu lembro-me de andar nos guetos e o pessoal que fazia rap nesses guetos, nessa estratificação social que havia nos guetos, não era o mesmo pessoal que estava na base da pirâmide. Eram as pessoas mais destacadas intelectualmente e economicamente nos guetos. Esse era o pessoal que fazia rap. Se tu pensares num General D, num Boss AC, num Nilton dos Líderes da Nova Mensagem, num D-Mars, isto são os pioneiros do hip hop tuga e eles não são pessoas que vêm do gueto.

[Capicua] – O Ace, o Mundo [Segundo] …

[Valete] – Mesmo o Sam The Kid, de Chelas. O Sam The Kid não está na base da pirâmide. Não está. Isto tem muito a ver com o que a gente leva. O rap no Brasil vem mesmo da favela, pelo menos a maior parte dele, então tinha uma matriz política muito vincada…

[Capicua] – Black Panther.

[Valete] – Era de favela e era negro. Era muito negro.

[Valete] – O que a Capicua está a dizer faz todo o sentido. A maior parte de nós via o rap como uma coisa lúdica: eu quero ser o melhor disto, eu quero ser um grande artista, eu quero ser um grande escritor. Para muitos rappers brasileiros, aquilo era denúncia.

[Capicua] – Sim, para eles era militante, para nós era game. Já era jogo.

[Valete] – Eles não estavam muito com essa preocupação de fazer aqui uma “ganda” rima ou grandes metáforas. Eles queriam relatar.

Daí então a utilização da palavra competição pela Capicua, enquanto lá era sobrevivência. 

[Valete] – Se calhar ao nível de conteúdo é mais rico. Nós com melhor forma, mais bonito na forma, mas eles com mais conteúdo.

[Capicua] – Sim, e até musicalmente éramos mais polidos. Os beats dos Racionais é mesmo bombo e tarola e força e megafone.

[Valete] – Estão a um nível na produção…

[Capicua] – Sim, hoje em dia já se nota que evoluíram musicalmente e também em termos líricos.

[Valete] – Tem a ver com a chegada do rap à classe média brasileira.

[Capicua] E a São Paulo, porque o epicentro foi do Rio [de Janeiro] para São Paulo. O Rashid, o Projota, o Emicida integram uma nova geração que têm “bué” talento. Fazem música com potencial mais pop, mantendo a raiz no hip hop puro e duro. Pessoal que vem da comunidade hip hop mas que chega ao mainstream e conquista.

Eu acho que no Brasil existe uma coisa que nós não temos aqui que é: o funk a competir com o hip hop. Ou seja, na favela – na comunidade negra – , o funk rouba muito espaço ao hip hop. Enquanto que aqui em Portugal nunca tivemos essa coisa. E se calhar em Angola também tens mais isso com o kuduro. Nós aqui, durante muitos anos, não tínhamos tanta mistura. Nós também tínhamos um circuito muito à parte. Ultimamente temo-nos aberto mais e temos tocado no circuito mainstream. Estamos a promover os nossos discos nos jornais normais, mas até há poucos anos, tirando Mind da Gap, Boss Ac, o Valete ou o Sam The Kid, ninguém chegava aí. Já não sou da primeira geração – se calhar sou da segunda geração do Porto – e para nós nunca foi uma possibilidade viver da música. Nunca nos passou pela cabeça. Nem nunca pusemos essa hipótese. Também vivíamos no nosso nicho e estávamos tranquilos, não havia tantas infiltrações e competíamos muito entre nós.

 



Vocês os dois do lado de cá do Atlântico e eles os dois lá do lado do Atlântico representam, juntos, uma espécie de elite hip hop das pessoas que trabalham a língua portuguesa. Uma espécie de guarda avançada. Se isto fosse um Master Chef em vez de um projecto hip hop, estes eram os 4 melhores cozinheiros que estão a fazer coisas com a língua?…

[Capicua] – Eu acho que é mais a cena de fazermos o rap consciente, que está tão démodé.

[Valete] – As motivações não sabemos bem… Recebemos o convite e não nos explicaram porque é que somos nós.

[Capicua] – Eu senti mais no sentido de termos a mesma relação com o rap.

[Valete] – Acho que as pessoas estão a sentir que há aqui uma geração que está a trazer um discurso fútil, e que se calhar já não há muitos rappers com esta matriz mais clássica, mais tradicional, que é uma matriz de criar também para transformar, para mudar a sociedade. A tua música não tem que ser necessariamente de intervenção. Mas tu tens um propósito contra-cultural. Para mim isso é o hip hop. O hip hop é uma contra-cultura. E é isso que se está a perder. O hip hop está a ficar muito pop. O hip hop está a ceder muito e creio que eu e a Capicua ainda representamos um bocado isso. Uma espécie de resistência, uma matriz clássica do MC e do rapper.

[Capicua] – Um rap que é música alternativa. E a ideia de fazeres rap com um sentido de responsabilidade. O MC como mentor. Eu aprendi isso com os Dealema. Essa postura do MC que é mentor em que há um sentido de missão. Não só de “incentivar os putos como mandam as leis”, como diz o Mundo, mas também de dar o exemplo de sentir que isto aqui nasceu para unir as pessoas, para fazer a festa, claro, mas também nasceu para transmitir mensagem. Eu não sou nada moralista, não estou a dizer que é a forma certa, mas é a forma com que eu acho que nós os quatro nos posicionamos dentro do rap e acho que isso temos em comum.

O cuidado com a língua portuguesa de cá. Não há essa coisa do “escrever melhor do que” é mais a cena de sentirmos uma língua portuguesa como uma bandeira. E nisso não podia estar mais contente com a crítica do Caetano [Veloso] porque ele é o porta-estandarte dessa legião de defensores da língua portuguesa. Acho que nesse aspecto também me identifico com este grupo de MCs, essa cena de usarmos a língua portuguesa como matéria-prima, mas – mais do que matéria-prima – uma identidade, não é? Somos lusófonos, mais do que somos anglo-saxónicos e o hip hop é anglo-saxónico. Eu prefiro rap em português, sempre disse isso. Se eu tiver que escolher entre rap americano e música em português que não é rap, eu escolho música portuguesa que não é rap. Eu gosto da língua portuguesa antes de gostar de música.

[Valete] – Eu estou dentro, obviamente que sou parcial, mas acho que a escolha foi feliz. Imagina que o Valete não está dentro. Emicida, Capicua e Rael acho que são escolhas felizes. Acho que o momento é urgente. Vou-te explicar porquê: agora lido com muitos jovens adolescentes. Se tu me perguntasses há 20 anos: “o que é que tu aprendes com o hip hop”? Se tu fores perguntar a um miúdo hoje o que é que ele aprende com o hip hop, o hip hop que ele ouve normalmente são coisas más.

E tu estás a dizer isto num momento em que, apesar de tudo, o Kendrick é o maior fenómeno americano do ano. 

[Valete] – O Kendrick [Lamar] também é a maior excepção de sempre. Nunca na história dos Estados Unidos tu tiveste o MC com o registo do Kendrick, que é um MC de rap consciente, rap positivo. Nunca com este tipo de sucesso. Nunca na história dos Estados Unidos.

[Capicua] – Verdade, o Talib Kweli ou o Common não chegaram ali.

[Valete] – Nunca a este nível. E se tu conheceres o cenário actual americano, nunca teve tão degradante liricamente e moralmente. O Kendrick é uma excepção das excepções. Não é referência para nada.O Kendrick não representa o hip hop americano, ok?

[Capicua] – Isto está a chegar a um ponto com tanto materialismo que isso dá a volta. É como o festival da Eurovisão: tu chegas ali e tens bailarinas, tens o Macaco Adriano, tem tudo e mais qualquer coisa. De repente, aparece um gajo com um microfone a cantar uma canção e tu: “wow”. Sabes, isso é o Kendrick. Tanto trap, tantas mamas na televisão, tanto bling e de repente aparece o Kendrick e o pessoal fica: “Isto é rap, meu”!

[Valete] É refrescante ouvir Kendrick. Levas tanto com Lil Yachty e aqueles gajos, mumble rappers… Para um miúdo de 16 anos é uma coisa bué diferente. “Este gajo está a falar de religião, é possível falar de religião no rap?”

[Capicua] – Tu já fizeste isso…

[Valete] – Bué miúdos não sabem. Um miúdo americano com 15 anos se calhar nunca ouviu um gajo a falar de religião no rap. O Kendrick vai motivar outros rappers. Agora é tentar perceber se a indústria vai querer reproduzir mais Kendricks.

Falou-se na Eurovisão e queria fazer aqui uma ponte para a vitória do Salvador Sobral. Num ano em que a RTP renova o Festival da Canção e se apresentaram alguns dos melhores compositores e letristas actualmente, é esquisito que não exista rap nessa selecção. Não estou a dizer que o rap tenha que estar em todo o lado, mas porque é que acham que isso não aconteceu?

[Capicua] – Acho que o rap normalmente não está associado à ideia de canção, no sentido mais clássico. Mas eu já escrevi fado que, por acaso, nem está assim tão longe do rap como se pensa. Acho que os fadistas têm a mesma relação com o poema que nós temos. Eles não dizem só a palavra, eles cospem-na com aquela emoção. Nesse sentido, eu acho que eles entendem perfeitamente o que nós fazemos. O amor pelas palavras é o que é o fado. A base instrumental é muito simples e eles é que transportam a emoção com as palavras.

Não sei porque é que não convidaram, mas não acharia estranho que numa próxima edição houvesse um rapper a concorrer e se calhar as pessoas iam votar. Nos próprios programas como o The Voice e X-Factor já aparecem às vezes uns rappers e acho que já há um bocadinho essa abertura.

Sim, mas referia-me ao facto de terem convidado pessoas específicas e parece que nem sequer pensaram em recrutar alguém no terreno do hip hop…

[Capicua] – Porque eu acho que, neste caso, o convite foi feito a compositores. Poderiam ter convidado um compositor de hip hop, imagina convidavam um DJ Ride e ele convidava-me para escrever a letra e a gente levava uma cantora. Isso podia acontecer. Não digo que não, mas sei lá. Não foi uma primeira escolha, mas provavelmente é uma segunda. Não acho difícil acontecer num curto prazo.

[Valete] – Acho que há portas que ainda estão naturalmente fechadas para o rap, mas que naturalmente também se vão abrir.

[Capicua] – O mais difícil já fizemos (risos). Agora o mais difícil é pôr mais mulheres a cantar rap. Isso é o mais difícil agora.

 



Vão-se apresentar como Língua Franca no Super Bock Super Rock. Como é que vai ser o formato do concerto?

[Valete] – O que nós estamos a dizer ao pessoal é que obviamente vai ser uma coisa especial porque é diferente. São cinco MCs que as pessoas nunca viram juntas no palco.

[Capicua] – Quatro MCs…

[Valete] – Existirá um quinto elemento que provavelmente será o Fred.

[Capicua] Eu queria muito que a Eva [RapDiva] tivesse entrado no Língua Franca. Lutei muito para que isso tivesse acontecido. Falhei.

[Valete] – A Capicua vale por dois (risos).

[Capicua] – Agora está-me a chamar gorda. Aqui e agora…

[Valete] – Vais ter cinco concertos num só. Vamos ter concerto de Língua Franca, vamos apresentar as nossas coisinhas também e os sons que temos uns com os outros: eu tenho um som com a Capicua…

[Capicua] – Sim, a ideia é fazer Língua Franca, as nossas canções, mas sempre misturados.

O que é que acham do restante cartaz para dia 14 de Julho? Vamos ter uma repetição da edição do ano passado? 

[Valete] – Eu tive o ano passado. Foi realmente um dia histórico. Foi um dia transformador. Foram muitos concertos clássicos.

[Capicua] – Foi uma emoção. Eu consegui meter cinco mulheres no palco.

[Valete] – Houve momentos muito clássicos. Para mim, foi a maior reunião de sempre da cultura hip hop. Havia pessoal a vir dos Açores para assistir ao concerto.

[Capicua] – Acho que quando o Kanye [West] e o Snoop Dogg foram ao Sudoeste também foi forte. Aquilo encheu.

[Valete] – Mas aqui se calhar mais hip hopiano porque o Kanye tem um público mais abrangente…

A comunicação em termos musicais entre os dois países fazia-se num sentido apenas. Nós sempre fomos importadores e não exportadores. Nos últimos anos, começámos a ouvir falar de cenários diferentes: o Caetano Veloso vai jantar com a Carminho, o Zambujo tem sucesso no Brasil e as coisas parece que começaram a inverter-se. Acham que Língua Franca pode ser um agente provocador de outros cruzamentos no futuro entre o hip hop brasileiro e o hip hop português?

[Capicua] – Eu acho que foi um bocado nessa onda de Portugal estar num momento prestigiante a nível internacional. Tens turismo, aquilo que se fala de Portugal lá fora já não é aquela ideia, que havia há poucos anos, de terrinha, que era meio rural, meio tipo Portugal dos Pequeninos, meio folclórico. Eles já têm uma ideia de Portugal como país moderno, com boa comida, boas cidades, boa música, cultura em geral. E acho que isso é uma perspectiva que existe no Brasil como existe no resto do mundo. Essa valorização parte com força da nossa própria auto-estima e acho que nós nos últimos anos reencontrámo-nos com a nossa música. Acredito mesmo nisso. E acho que hoje em dia estamos em condições para exportar sem o complexo de inferioridade que sempre houve e acho que também é importante o nosso reencontro com um fado com uma cara lavada, com uma modernidade, mas também com a música electrónica com Buraka Som Sistema, Marfox, essa coisa que já mostra Portugal como sendo uma mistura e não sendo aquela coisa só tradicional, folclórico mesmo. É um país que tem a Carminho como tem o Marfox e tal como tem rap.

Ou seja, a imagem que o Brasil tem de Portugal mudou de Roberto Leal para a Carminho…

[Capicua] – Mudámos para a Lisboa como uma cidade interessante e para Ricardo Pereira como bonitão da novela. Não é o gajo de bigode, barrigudo. Há uma cara nova para Portugal e essa cara também passa muito pelo contributo da música portuguesa. Acho que Língua Franca é mais uma pedra para construir uma ponte.

E qual é o capítulo seguinte? Vocês acreditam que vão ser convidados por outros artistas brasileiros?

[Capicua] – O capítulo seguinte é fazer isto com os PALOPS.

[Valete] – Concordando obviamente com vocês, se calhar queria dizer uma coisa aqui que não devia dizer como alguém que participou na Língua Franca. Mas é de coração. Eu tive no Brasil em 2014, ok? Eu tive no Brasil profundo, convivi com as pessoas e fui às favelas – passei um fim-de-semana numa favela na Brasilândia – e o que vocês estão a dizer, concordando, mas para mim é tudo periférico.

[Capicua] – É mais a elite, é o que estás a dizer.

[Valete] – É super-elite. Para mim, é super-elite. A forma como a massa portuguesa consumia certos artistas brasileiros, eu acredito que pode acontecer com alguns artistas portugueses se acontecer o que aconteceu em Língua Franca que foi haver uma motivação muito forte do Emicida, do Rael e do manager do Emicida para fazer este projecto. Têm que ser eles. Tem que ser o Caetano a dizer “eu quer fazer o projecto” e aí o Caetano, com o público dele gigante, vai dar a conhecer a Carminho.

Eu estive lá e quem é que conhece Buraka Som Sistema ? Ninguém. E isso vai sempre acontecer. Há uma elite intelectual e artística brasileira que se interessa por música em todo o mundo e eles vão conhecendo as referências de certos estilos musicais. Há o Rui [Miguel] Abreu do Brasil. Aliás, há vários. E eles conhecem Buraka, agora a mim interessa-me perceber que essa ponte pode acontecer como aconteceu com o Caetano, com o Roberto Carlos e vários artistas brasileiros. E eu acho que está aí a dificuldade. Isso só pode acontecer a partir da vontade genuína dos artistas brasileiros, como nós também tivemos do Emicida e do Rael.

[Capicua] – Eu acho que ele tem razão nessa cena. Não é possível se não houver parceira. Mas também acho que o facto de haver este desequilíbrio também é super normal quando eles são 200 milhões e nós somos metade de São Paulo (risos).

[Valete] – Há aqui uma língua que é comum, há uma história que é comum e a maior parte dos brasileiros com quem eu convivi não sabia qual era a capital de Lisboa. Quando eu fui para o Brasil, eu não tinha essa noção. Eu cheguei lá e eles só conheciam o Cristiano Ronaldo. Eu estou a falar da maior parte dos brasileiros – a minha sondagem vale o que vale – , mas eu senti isso na sondagem que fiz – que não foi assim tão curta. A maior parte dos brasileiros provavelmente não sabe qual é a capital de Portugal.

[Capicua] – Também estamos a pensar num país que tem tanta desigualdade, tanta miséria…

[Valete] – Eu não estou a culpar as pessoas. Se calhar há aqui um trabalho do nosso Ministério da Cultura por fazer, percebes?

[Capicua] – Mas eu também acredito que há um trabalho de justiça poética aqui porque cada vez eu ouço esta conversa penso assim: “meu, mas nós fomos colonizadores durante tempo e agora ficamos chateados porque ninguém nos liga.”

[Valete] – Não, não, não, nunca culpar as pessoas.

[Capicua] – É o karma histórico. Ainda bem que é assim porque se não fosse assim é que era mau sinal. Se nós continuássemos a conseguir ter um domínio cultural num país de 200 milhões era porque ainda estávamos a colonizá-los culturalmente.

[Valete] – Não, nem tanto ao mar nem tanto à terra.

[Capicua] – Não, claro, mas estou a dizer um domínio cultural. Eles são um país continental com 200 milhões .

[Valete] – Às vezes faz-se esta conversa e parece que há uma grande abertura para ouvir – e não há. Eu cheguei a mostrar rap espanhol a brasileiros e eles a dizerem-me: “esse rap tuga é muita bom”.

[Capicua] – Mas quando eu digo esta abertura, eu não estou a falar obviamente das massas. Estou a falar de quem faz opinião, de quem programa concertos, de quem escreve os jornais.

[Valete] –  Eu acredito que é possível as duas vias, mas um factor determinante para isso acontecer vão ter que ser os artistas e músicos brasileiros.

 


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