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Lil Uzi Vert

Eternal Atake

Atlantic Records / 2020

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 26/03/2020

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“You Better Move”. Vão, por favor, ouvir “You Better Move” agora mesmo. Ouçam outra vez. Obrigado. Agora pensem: “Wtf?”. Não é?… Brandon Finessin, membro do colectivo de Filadélfia Working On Dying que colecciona boa parte dos créditos em Eternal Atake, samplou o jogo 3D Pinball, símbolo de uma época arcana e distante (segunda metade dos anos 90, caso vos tenham involuntariamente surgido imagens de pirâmides ou castelos nas vossas cabeças…) há muito ultrapassada desde que o profeta Steve Jobs transformou o mundo numa maçã (e, porra, juro que é mesmo verdade, enquanto escrevia isto as notificações do meu browser fizeram aparecer no canto superior direito do ecrã retina do meu Macbook – late 2013… – a informação de que há um novo iPad no mercado: o universo não é mesmo maravilhoso?). Há uns anos, a identidade geracional de, sei lá, um Jay-Z sublinhava-se com outro tipo de referências: em Blueprint (editado a 11 de Setembro de 2001…), por exemplo, um produtor como Kanye West dizia-nos quem era ao samplar KRS One (“Sound of da Police”) ou os Jackson 5 (“I Want You Back”), remetendo-nos para uma era em que seria inimaginável ver aviões a colidir contra arranha-céus. Daqui a 20 anos, quando alguém aqui no Rimas e Batidas (“I want to believe”…) regressar a este Eternal Atake, álbum da inequívoca confirmação do poder de Lil Uzi Vert, também fará alusão ao facto dos samples usados remeterem para um tempo sem pandemia COVID-19, era de inocência Windows pré-milenar em que ainda saíamos à rua sem estarmos ligados em tempo real ao resto do planeta. Desligados-mas-juntos por oposição ao ligados-mas-separados que hoje nos define. Por outro lado, escutando Lil Uzi Vert percebe-se que estamos perante uma nova espécie de artista: se Jigga foi moldado nas ruas de Brooklyn, com o flow afinado pela força que só a luta pela sobrevivência pode conferir, testado em cyphers de rua, debaixo de pontes, com o ruído do tráfego por pontuação rítmica e o som dos clássicos soul que se escutava, abafado, vindo de cada barbeiro ou café, já o do nativo de Francisville, Filadélfia, nascido em 1994, surgiu de forma inteiramente diferente. Em “You Better Move”, a memória de Lil Uzi estende-se até um tempo em que não tinha TV Cabo e via o programa para miúdos Zoom na televisão pública. A sobrevivência, no caso de Lil Uzi, passou por afinar o flow no intervalo das aulas, combinando os estímulos que ia recebendo de Mike Jones ou dos Ying and Yang Twins com o que a rádio Top 40 despejava sobre a sua geração, de Marilyn Manson aos Smash Mouth.

O ruído de jogos disponibilizados de origem com os sistemas operativos Windows é por isso mesmo compreensível: é um elo na cadeia de DNA cultural que define a geração de Lil Uzi Vert. E agora, ultrapassados os problemas que adiaram a edição do sucessor de Luv is Rage 2, o homem de “Free Uzi” volta a apresentar-se ao mundo, de mãos certamente lavadas, com um álbum conceptual em que apresenta uma vaga narrativa que mete abdução alienígena, cultos suicidas, e uma divisão tripartida apoiada em três “máscaras”: a de Baby Pluto, na primeira parte do álbum, a de Renji e a da própria persona Lil Uzi Vert, numa estonteante amálgama de referências a animação infantil, anime japonesa, jogos de computador e, pois claro, dinheiro, muito dinheiro, bens materiais das mais reputadas marcas e mulheres-troféu que depois viram destrói-corações e quebra-cabeças. O flow em tercinas, meio rimado, meio cantado, permanentemente adornado pela purpurina do auto-tune, com a colocação da voz pensada clinicamente, elevada por um sound design cromado a uma condição quase sobre-humana, como se o que escutamos fosse não um rapper de carne e osso, como Jay-Z (que tanto nervo volta a mostrar em A Written Testimony, ao lado de Jay Electronica, mas isso são outros 500…), mas um ser híbrido, meio-alien, meio figura animada, meio algoritmo de computador, meio visitante de outra dimensão, paralela, feita de outra matéria. Em “Celebration Station”, Lil Uzi começa por nos confessar que não pode dançar por causa das calças – “They from France”, diz-nos, como se França fosse um planeta muito distante de Filadélfia… – e depois dá-nos um banho de flow, acomodando uma subtil inflexão caribenha (Rihanna?…) e arredondando de forma absolutamente deliciosa os “rrs”, como se o sotaque fosse algo que se pudesse importar, como as tais calças de França que não dão para dançar. E para suportar tudo isto, os rapazes dos Working On Dying prepararam uma verdadeira excursão de contemporaneidade, como um passeio pela secção de luxo do mais exclusivo centro comercial do Dubai, só coisinhas brilhantes, caras e impossíveis, com samples de Ariana Grande, Travis Scott, Nardwuar, Tyler The Creator ou Backstreet Boys, marcas de um presente que quer ser futuro, de uma cultura distante: se França é outro planeta para quem vive em Filadélfia, o universo paralelo que Lil Uzi Vert pinta em Eternal Atake é o cintilar de um átomo na bola de cristal de um ser feito de luz vindo do futuro. Ou algo do género…

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