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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/05/2025

LIBRA: “Este álbum serve para me lembrar a mim e às outras mulheres que somos uma força criadora brutal”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/05/2025

LIBRA já nos tinha avisado de que não vinha apenas cantar, mas reivindicar um lugar que também era seu — e de todas as mulheres que o quisessem ocupar. Em “Spells e “Use Your Pain Wisely” anunciou-se como uma mulher em missão, alguém que, ao recusar o silêncio, fez da palavra um lugar de enunciação, resistência e emancipação espiritual. Agora, com Everyone’s First Breath, o seu álbum de estreia, cumpre-se aquilo que antes se pressentia: a entrada firme no centro da cena, com um disco que é ao mesmo tempo nascimento e reescrita, manifesto e vulnerabilidade, espelho íntimo e grito emancipado.

A cantora e rapper quis construir um álbum político — e foi isso que aconteceu quando, no processo de escrita, descobriu que, ao contar a sua própria história, estava também a contar a de muitas outras mulheres. “I’m all women whose stories have been put on hold”, canta em “Purity”, o terceiro single que acompanha o lançamento do álbum, num gesto de assumida provocação à moral conservadora e ao ideal de pureza que a sustenta.  

Nesta entrevista percorremos a sua jornada, partindo das coordenadas musicais que a moldaram, passando pelos primeiros passos na música, pelas dificuldades do caminho e pela força redentora que sente quando vê pessoas emocionadas ao escutarem as suas palavras. Como na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 2023 — um concerto lotado, uma ovação de pé e um gesto colectivo que anunciava que aquele não era o fim, mas o princípio de qualquer algo muito maior. 

Foi lá que nos encontrámos para falar sobre um álbum gerado em nove meses, mas com o peso emocional de uma vida inteira. Everyone’s First Breath é uma meditação sobre o que significa nascer mulher num mundo dominado por homens pouco habituados a verem o seu poder e privilégio postos em causa. Um álbum que é autobiográfico e colectivo. Forte e vulnerável. De luzes e sombras. De fantasmas e saltos de fé. Onde se fala sem receios da dor, mas sem lhe dar o último verso. Um álbum onde escreve o que tantas vezes ficou por contar: “My heroes are female / Always survive / Always rise / I wish your stories had been written”, ouve-se no fim. E foram, aqui e agora. Todas elas, as que vieram antes, e as que ainda chegarão, estão a ouvir. E a sorrir, orgulhosas.



Queria começar pelo álbum, mas gostava que recuássemos um pouco na história. Na primeira música – “The Moment I Was Born” – partilhas parte da tua narrativa de vida e de algumas decisões difíceis que tiveste de tomar para aqui chegares. E, na verdade, ouvindo o álbum, fiquei com a sensação de que, apesar de ter sido feito em nove meses, parece que foi sendo escrito ao longo de uma vida inteira. Olhando em retrospectiva, como é que começa toda esta história?

Onde é que tudo isto começa? Vou tentar… [risos]. Eu canto desde que me lembro. Comecei a cantar com a minha avó materna, porque ela também cantava em família e entre amigas. Ela sempre teve esse gosto, e eu, desde miúda, ouvia música em casa dela – sobretudo bossa nova e mornas.

Ela é angolana, não é?

Sim, é angolana, mas ouvia muita música brasileira e francesa. Eu não cresci tanto com a música francesa, mas muito com bossa nova, MPB, e também com morna, por causa do meu avô, que era cabo-verdiano. Cresci muito em casa da minha avó, que vivia no andar de baixo, e as maiores influências vêm do lado dela. Comecei a cantar precisamente música brasileira, e foi ela quem insistiu para que eu entrasse no conservatório. Dizia que, desde bebé, eu não gritava nem chorava, só cantava [risos]. Ela sempre quis que tivéssemos uma educação muito completa. Não que achasse que eu devia ser cantora ou pianista, mas era entusiasta da cultura. Entretanto, os meus avós paternos, que tinham mais poder de compra, ofereceram-me um piano acústico. Estive quatro ou cinco anos no conservatório a estudar piano clássico, e foi aí que tudo começou. Depois, deixei o conservatório porque estava cansada da música clássica e queria muito acompanhar-me a cantar. Saí e, até à faculdade, ainda tive uma banda, mais num registo pop e R&B.

A música que circulava em tua casa era sobretudo do Brasil e de Cabo Verde, mas começaste a cantar pop e R&B. Como é que se dá o vínculo a esses géneros?

Acho que foi por causa da escola. Passávamos muito tempo na minha escola e ouvia-se muita música africana – kuduro e kizomba principalmente – mas também muito R&B. Depois fui exposta ao hip hop e fiquei completamente apaixonada. Entretanto, deixei de seguir música porque me assustaram muito, dizendo que ninguém conseguia fazer vida da música. Acabei por ir estudar farmácia.

E como é que a música reaparece?

No segundo ano do curso percebi que aquilo não era para mim e descobri um bar em Coimbra com open mics às quartas-feiras. Foi aí que recomecei a cantar. Nesse open mic percebi que isto podia ser possível, porque, pela primeira vez, as pessoas ouviam-me e emocionavam-se com o que eu fazia. Isto foi no início de 2017. Depois, regressei a Lisboa e fui estudar para o Hot Clube. Já tinha decidido que queria fazer música e tinha começado a escrever. Nessa altura já compunha ao piano, mas não conseguia escrever letras. Tentei muito em português, mas não conseguia. Acabou por se abrir uma nova possibilidade quando comecei a escrever em inglês. Não sei porquê, mas começou a resultar. Estive seis meses no Hot Clube, mas saí porque me disseram que tinha muitos tiques de Alicia Keys e que tinha de me assemelhar mais aos standards. Acabei por sair e, no final de 2018, comecei a gravar música. Depois veio a pandemia, já tinha algumas músicas gravadas e senti que precisava de as lançar.

Começaste apenas por partilhar as músicas online ou já tinhas um plano pensado?

Eu sentia que precisava de lançar. Tinha uma ânsia gigante porque já estávamos a trabalhar há algum tempo nas músicas. Mas não houve um plano. Foi começar a tentar, embora sentisse que era um bom momento, porque estávamos na pandemia e as pessoas precisavam de coisas novas. Tínhamos ido para casa em Março e eu lancei a primeira música em Junho. Lancei dois singles ainda durante a pandemia, e o terceiro já saiu com videoclipe. Depois disso, lancei o EP.

E como foram as reações a esses primeiros singles? Imagino que nessa altura quase ninguém conhecesse o nome LIBRA.

Sim, ninguém conhecia, mas resultaram bem. Os dois primeiros singles geraram algum buzz dentro da comunidade que já conhecia mais ou menos o meu trabalho ou que estava à minha volta. Depois, com o terceiro single — que é “Black Triangle” e veio com o primeiro videoclipe — já começámos a ter algum impacto. Lancei o meu EP no final de 2021 e em 2022 ainda lancei o single Land of the Brave”. Depois dessa fase, separei-me da equipa com quem trabalhava.

Começou aí uma nova fase do teu percurso?

Completamente. Foi uma altura muito difícil, cheguei a pensar em desistir, mas depois apareceu a oportunidade de fazer um concerto na Gulbenkian, nos Jardins de Verão. A partir daí tudo mudou.

Foi um dos concertos mais falados desse ano, com o anfiteatro ao ar livre completamente a abarrotar de gente.

Sim. É engraçado perceber como num momento estás quase a querer desistir e de repente tens uma oportunidade e tudo muda. Eu falo muito disso no álbum. Voltando à tua pergunta inicial, se calhar tens razão quando dizes que parece que o álbum não foi escrito em nove meses, mas ao longo de muito mais tempo. Eu construí esse concerto sozinha, quase sem conhecimentos de produção, e correu muito bem. Veio imensa gente, o auditório ficou cheio, as pessoas cantaram comigo, e acabou com uma ovação de pé. A partir daí as coisas começaram a fluir. Nesse ano de 2023, tive mais concertos com produção própria e, entretanto, recebi uma proposta que me permitiu deixar o meu day job e dedicar-me só à música. Em 2024 escrevi este disco, mas no final do dia, como disseste, este álbum é um bocado o aglomerar de todo este percurso. Foi escrito naquele tempo, porque foi quando finalmente tive tempo para reflectir e sentir tudo, mas representa muito toda esta história. 

Neste álbum partilhas muita intimidade e histórias impactantes, mas também abordas fantasmas e armadilhas que viveste. Ao mesmo tempo, é um disco com um lado de fé, de esperança e superação. Começando pelo título — Everyone’s First Breath — sentiste que sintetizava bem o gesto que o álbum representa?

Everyone’s First Breath remete precisamente para esse momento em que nascemos e respiramos pela primeira vez. A frase não foi pensada, inicialmente, para ser o título. Fazia parte da letra da “Purity”. Eu queria que este fosse um álbum político — ou seja, não queria que fosse apenas sobre mim. Claro que falo da minha perspectiva enquanto indivíduo, mas queria comentar o que se passa no mundo, usar a minha voz para dar a minha visão. Não que a minha visão seja a mais certa, mas é mais uma perspectiva. Haverá pessoas que se vão identificar e outras que não. Quem acompanhou o meu processo de spiritual awakening percebe de onde vem esta visão mais crítica e política. Quando comecei a escrever, o álbum tornou-se não só sobre justiça social, mas também sobre a condição de ser mulher — de vir ao mundo enquanto mulher neste tempo. Não foi algo programado ou esquemático, e só me apercebi disso quando acabei o álbum. Estas músicas contam a minha história, sim, mas sobretudo a minha história enquanto mulher nos diversos espaços que ocupei — no trabalho corporativo, na indústria musical, na família, nas relações, na espiritualidade. Quis que o título representasse isso.

Então, quando começaste a escrever as músicas, ainda não tinhas essa narrativa pensada?

A única coisa que eu tinha pensado era que queria que fossem 13 músicas, porque é um número bastante místico e muito ligado ao que é espiritual e pagão. Mas as músicas foram surgindo. Quis experimentar muito e, à medida que as músicas iam fazendo sentido, eu ia escrevendo — os temas, de alguma forma, vieram ter comigo. A The Moment I Was Born surgiu porque eu estava no processo de me desvincular da empresa onde trabalhava e comecei a relatar esse processo.

Nessa música abordas inclusivamente o medo de ser livre.

Sim. Nós vamos ficando em determinados lugares mesmo quando queremos sair — porque a família diz que é um bom salário, ou porque nos vamos adaptando, e, por muito desconforto que sintamos, acabamos por normalizá-lo. Mas as coisas foram acontecendo. Voltando ao título, quando escrevi a “Purity” percebi que o álbum ia ser sobre isto. Seria um álbum para me lembrar a mim e às outras mulheres de que somos uma força criadora brutal e que isso nos tem sido retirado por todas as religiões modernas. Costumo dizer que, se Deus se assemelhasse a algo, teria de ser a uma mulher.

Esse é, aliás, o título de um dos últimos álbuns da Elza Soares: Deus é Mulher.

Lá está. Se a ideia de Deus é a de algo que criou tudo, então tem de ser mulher. Eu queria que este álbum representasse isso e nos viesse lembrar que nós somos um milagre. Nós conseguimos conectar o céu e a terra, porque conseguimos trazer vida. E queria que todos se lembrassem que nós só estamos aqui porque houve uma mulher que enfrentou a dor do parto e teve a força para nos trazer até aqui. É daí que vem o nome do álbum. 

Há aqui um paradoxo interessante em que trabalhas: por um lado, reforças a ideia da mulher como força criadora da vida; por outro, relatas como a sociedade constrange essa força criadora, confinando-a, por exemplo, ao papel de mãe ou de cuidadora. Como se o acto de procriar esgotasse, em si mesmo, as possibilidades de existência e de criação das mulheres.

Sim. E não só isso. Parece que esse acto se torna uma prisão noutras áreas da vida porque, quando és mãe, ficas com menos tempo para a tua carreira, e há até milhares de mulheres despedidas quando engravidam. Por outro lado, já nem vemos esse acto de trazer um ser ao mundo como especial. Primeiro dizem-te “tens que fazer”, porque se não nem és levada a sério enquanto mulher. Mas, se o fazes, és castigada pela sociedade. É muito estranho para mim. 

O álbum parte da tua história, mas dizias antes que não querias que fosse apenas isso — querias falar do mundo, partilhar a tua perspectiva sobre a realidade. Pensando na escrita, que desafios encontraste na procura desse equilíbrio entre falares da tua história e ao mesmo tempo de experiências que se podem também conectar com as histórias e experiências de outras pessoas?

Não foi premeditado transformar a minha história para que os outros se identificassem. O que aconteceu foi que eu percebi que a minha história era muito parecida com a de muitas, muitas mulheres. Quando falo de spiritual awakening, é porque me comecei a conectar à espiritualidade de forma muito mais profunda — e isso trouxe muitas conversas, principalmente com outras mulheres. Nesse processo eu percebi que esta história não era só minha, é uma história de todas nós. Ser mulher neste mundo é lidar com uma série de limitações e pré-definições de comportamento.



E de expectativas.

Sim. A forma como somos educadas e olhamos o mundo é muito semelhante entre nós. Não tive dificuldade em adaptar a escrita — porque não adaptei. Apenas contei exactamente aquilo que eu sentia. Eu lidei com os mesmos problemas de muitas outras mulheres com quem falei. 

Falavas disso na “Purity”: “I’m the woman whose story’s never been told / Actually, I’m all women whose stories have been put on hold”.

Exactamente. É esse entendimento de que não sou só eu. É algo colectivo. E há até músicas, como a “Trouble of the World”, em que a história que deu origem à música não é minha, mas de uma amiga. A música é sobre ela, sobre mim, sobre todas as mulheres. Ao longo do álbum passo literalmente a assumir todas essas histórias que partilhamos. 

Outra ideia que atravessa o álbum é a ideia de “pureza”. Neste terceiro single do álbum, a “Purity”, procuras justamente desconstruir esse ideal que ainda está muito presente, inclusive em letras de rappers que se dizem conscientes, e que nas letras dividem constantemente as mulheres entre “puras” e “impuras”. Porque é que foi importante para ti desconstruir essa ideia?

Isso está muito presente na “Purity”, sim. A música surge dessa revolta com a ideia de que a mulher, para ser digna, tem de ser pura. Comportar-se de determinada maneira, vestir-se de determinada forma, falar com determinados modos. Isso sempre me fez confusão — até porque tive uma educação muito conservadora. Se eu fosse assediada, a culpa era minha. Se no trabalho alguém dissesse algo impróprio, a culpa era minha por ter falado de determinada forma ou por ter ido de saia curta. Isso sempre me perturbou. Essa música surgiu para questionar porque é que ainda somos julgadas pela aparência, quando nos homens ninguém se preocupa se estão mais ou menos vestidos, se têm borbulhas, se o cabelo está bem ou mal cortado. O nosso valor desaparece se não nos apresentarmos e comportarmos como os outros esperam. Na “Purity” falo até de um episódio em que fui cantar à televisão e começaram a ligar-me a dizer que parecia grávida, que não devia ter usado aquela roupa, ou que não devia ter usado tranças porque tenho um cabelo bonito.

Tudo menos da arte que ali foste apresentar. 

Exacto. E os primeiros telefonemas foram da minha própria família, de mulheres da minha família: “Cantaste muito bem, mas…”. Parece que estamos sempre presas à imagem. A “Purity” encerra o álbum precisamente por isso. No fim, resume-se tudo a isto: a forma como a mulher é considerada um ser de segunda categoria. Lembra-te de que nós nem sequer aparecemos na história. A história que nos ensinam na escola nem sequer nos inclui. Em 2025 isso ainda é realidade. A mulher sempre foi usada como medida da pureza das sociedades — até nos discursos coloniais. O videoclipe da “Purity”, que sai com o álbum, trabalha com essa ideia. Estou quase nua da cintura para cima para provocar esse discurso da pureza. Mas tu percebes que é provocativo. Usamos cores muito associadas a esse ideal de “pureza”, como os brancos e os cremes, temos pouca roupa, mas não tens movimentos que de forma alguma possam sexualizar os nossos corpos. O movimento é muito mais estático, como uma instalação artística, para provocar esta sociedade conservadora. Estudei muito sobre witchcraft e percebi esse paralelo com a emancipação feminina. Os visuals querem mesmo provocar, para que se fale sobre isto. Quero ver quem é que vai conseguir sexualizar o meu corpo nesse vídeo, com essa letra e com essa apresentação. O que é que acontece quando tu te apresentas desta forma, colocas cores consideradas “puras”, não te movimentas de forma sexualizada e todo o teu storytelling é inteligente? Quero mesmo perceber o que vai acontecer.

Indo agora à “Nikes On My Feet”, nessa música falas de identidade e de uma experiência comum a muitas famílias que vieram de África nos anos 70 e que incutiram às gerações seguintes um certo afastamento dessa sua ancestralidade africana. Como é se deu a redescoberta dessas tuas raízes e como é que elas se reflectem hoje na artista e mulher que és?

Sempre foi uma questão sensível para mim. Eu nasci com a pele muito clara, mas o cabelo sempre denunciou essas minhas raízes. Em casa, tratavam-me como branca, mas na rua não. Isso cria um problema de identidade. Quem não tem mistura étnica não entende exactamente isto. É importante saber quem somos e onde nos encaixamos, especialmente quando ainda há tanto discurso de ódio. Sempre procurei saber mais sobre a minha ancestralidade e ouvi muitas histórias do lado africano — aliás, conheço melhor essa parte da minha história do que a parte portuguesa. Cresci com a minha avó materna, que é angolana. A minha mãe é angolana, o meu pai é português, mas, do lado da minha mãe, as raízes vêm também de Cabo Verde. Fui educada como “branca”, mas sempre reconheci essa minha história africana. Mesmo em família comíamos cachupa e usávamos palavras como jindungo em vez de piri-piri, jinguba em vez de amendoim. As fotos e as histórias de infância e de família da minha mãe, da minha tia, da minha avó e do meu avô eram todas de Angola e Cabo Verde. Não conhecia esses sítios, mas sentia que lhes pertencia. Quando comecei a ir a Cabo Verde, percebi que também era o meu lugar — aliás, sentia-me mais em casa lá do que em Portugal, que é o sítio onde eu cresci. Lá tratam-me como crioula, ponto.

Mas sentes-te mais em casa lá do que cá?

Sim, mas é algo espiritual. Eles consideram-me uma crioula que emigrou, não uma portuguesa com ascendência cabo-verdiana. E cá sempre me perguntaram de onde era — nunca assumiram que eu era portuguesa. Não fui habituada a comer pratos típicos portugueses nem a ouvir música portuguesa. Cresci na Rinchoa, que é um misto de culturas brutal. A minha família queria que eu me assumisse como portuguesa branca. Not possible.

Mas consideras-te portuguesa?

Claro que sim. Nasci e cresci cá, sou portuguesa — mas sou uma portuguesa com mistura étnica. Não sou africana — o pouco que conheço é Cabo Verde. Mas incluo-me na comunidade afrodescendente em Portugal, foi essa comunidade que me acolheu. Só nesse momento é que comecei a perceber quem era. Não me identifico muito com a forma portuguesa urbana de estar — em meios pequenos é diferente, mas na cidade não tens a porta aberta para todos. Eu cresci com essa abertura, sempre com gente em casa, uma coisa muito africana.

Mesmo o conceito de família alargada.

Completamente. Tenho muitos primos que não são primos no sentido familiar tradicional. Isso causa algum desconforto na minha família africana, porque para eles continuo a ser branca. São traumas passados. A “Nikes On My Feet” fala de tudo isto. A letra não é leve, mas a musicalidade é leve. De certa forma é o meu salto de fé. É um bocado como digo no refrão: “Nikes on my feet / I got the drip / To run the world back home”.

Rimando também com orgulho: “That’s why I go back to my roots / Every once in a while / To eat the forbidden fruit / Speak to ancestors and smile / About our conquers and battles / Bottles and castles / African pride is a threat / But I will never forget”. 

Sim. Parece que o orgulho e essa união das pessoas negras e afrodescendentes é sempre vista como uma ameaça. De certa forma essa música é uma conclusão desse processo. Mas mais importante ainda foi o contacto com a comunidade artística negra em Portugal. Foram essas pessoas que me disseram: “Tu és uma de nós”. Na “Land of the Brave”, em 2022, foi a primeira vez que escrevi a falar “nós” enquanto afrodescendentes. Antes disso, nem me via como parte do “nós”. A “Nikes On My Feet” é a conclusão: sou mixed, sou afrodescendente, uma portuguesa afrodescendente, e está tudo bem com isso.

Outro tema que queria abordar tem a ver com os fantasmas que habitam algumas músicas, especialmente “Lost in the Ghosts”. É uma música sobre os desafios de estar numa indústria organizada segundo uma economia política assente nos números dos streams, nas estatísticas, nas redes, o que pode ser profundamente castrador para o próprio processo artístico. No rap feito em Portugal, há uma grande presença de egotrip e lençóis de letras sobre sucesso, dinheiro, marcas, views, números. Porque é que para ti foi importante falares também de fantasmas, de auto questionamentos e de momentos de maior dúvida e vulnerabilidade?

É importante porque é disso que eu sinto falta quando ouço música. Para mim, a arte tem de fazer questionar. Não me interessa ler um livro, ver um filme, ouvir uma música ou ir a uma exposição que não me façam pensar. Como consumidora de arte, faz-me todo o sentido que tu te questiones através da tua própria arte. É o questionamento que nos faz avançar. Eu sinto que nunca tenho respostas fixas para dar — quanto mais exploro, mais perguntas tenho. Mas essas questões fazem-me falar comigo própria, com outras pessoas, e ajudam-nos a crescer enquanto indivíduos e enquanto sociedade. A “Lost in the Ghosts” também não foi planeada. Escrevi-a porque precisava. Estava numa fase de dúvida sobre o porquê de estar a fazer isto. O primeiro verso foi escrito antes mesmo de começar o processo do álbum. Questionava-me muito: porquê esta necessidade de alcançar um público grande, de ter reconhecimento dos media, quando o simples acto de escrever é, por si só, tão bonito e terapêutico?

Na última entrevista que fizemos falavas mesmo da escrita como um acto espiritual.

Sem dúvida. Esse questionamento está presente, mas ao mesmo tempo sinto que sou um canal. E se sou um canal espiritual, então a mensagem tem de ser entregue a alguém — não pode ficar só no meu caderno. Com a “Lost in the Ghosts”, perguntei-me até onde posso ir, de forma saudável, para fazer essa entrega. Sem ser consumida pela ânsia de chegar a muita gente. Sem ser corrompida no processo.

É um equilíbrio difícil?

Muito difícil. Principalmente quando começas a viver disto. Há prazos, métricas, expectativas. A minha forma de lidar com isso é só pensar nessas coisas depois de escrever a música. Agora que já escrevi, estou nessa fase — mas também é difícil. Pensar constantemente em conteúdo, promoção, esgotar concertos… Eu não queria pensar em nada disso. “Lost in the Ghosts” é muito sobre esse confronto com fantasmas que me puxam para baixo a nível energético, que me fazem pensar em coisas mundanas, quando a arte, para mim, é espiritual. Às vezes é estranho isto de estar a monetizar algo que para mim é tão puro. Mas se sinto que a minha missão é levar a mensagem a muita gente, então não posso evitar essas questões. Se quero espalhar a mensagem, preciso que as pessoas me ouçam. Nada disto faz sentido se ninguém ouvir.

Quando falámos da “Spells”, tinhas curiosidade sobre a reacção a essa nova fase. Agora que o álbum vai sair, sentes que já tens uma noção mais clara do espaço que conquistaste no rap?

A “Spells” foi uma surpresa. Não é uma música minimamente comercial e, mesmo assim, entrou em playlists de várias rádios — incluindo a Antena 3, onde chegou ao top nacional. Não esperava nada disso. É a prova de que devemos construir com base no que realmente sentimos. Quanto ao rap, sinto que sou rapper e estou confiante com o que fiz neste álbum. Agora, quanto ao resto da indústria, não sei bem. Acho que preciso de que o álbum saia para perceber qual será a reacção.

Na última conversa que tivemos também falaste desta ideia de que o rap feito por mulheres é muitas visto como se fosse uma liga à parte, uma espécie de gueto. Sentes que este álbum pode furar essa barreira e contribuir para este movimento de afirmação do rap feito por mulheres em Portugal?

Acho que sim, pela própria mensagem do álbum, que aborda directamente isso. Por outro lado, recuso-me a falar em “rap feminino” — e ainda bem que trazes esse tema. Os media têm um papel importante aqui. São os próprios media que insistem nessa categorização — “rap feminino”, “rapper com abordagem feminina”… Sinto que o meu álbum é diferente na sonoridade e na escrita e queria que assim fosse. Quando as pessoas pensam em rappers mulheres, pensam logo na Cardi B ou na Megan Thee Stallion — que fazem um rap com uma abordagem muito parecida à dos homens que têm um discurso mega machista e misógino, mas virado para o feminino.  Na época da Lil’ Kim, percebo que esse discurso em torno do sexo fosse empoderador. Hoje, já foi tão feito que não acho que seja aquilo de que precisamos. Claro que têm toda a liberdade de o fazer — mas precisamos de mais diversidade. Quando pensam em rappers mulheres, é logo esse imaginário que vem. E fazem falta outras abordagens. Não consigo fazer futurologia, mas tenho esperança de contribuir para essa mudança.

Vais apresentar o álbum ao vivo no Musicbox a 8 de Maio. O que podes antecipar em termos de formato de apresentação?

Vamos ter uma formação diferente — quatro pessoas em palco. Vai ser mesmo um concerto de rap. Vou tocar o álbum de início ao fim, num formato muito fluido. Vai ser como entrar dentro do álbum para te deixares levar pelas histórias. Depois desta apresentação, gostava muito de fazer uma tour em Portugal e na Europa. Um álbum dá muito trabalho. Quero mesmo vivê-lo e aproveitá-lo.

Para terminar, voltemos de novo atrás no tempo. Sai hoje o teu álbum de estreia, escrito integralmente por ti. O que dirias à jovem Sónia adolescente que começou todo este caminho?

Diria para ela seguir sempre aquilo que sente. Essa pessoa que eu era sempre foi muito impulsiva — e foi isso que me trouxe até aqui. Ainda é cedo no caminho que quero fazer, mas acredito que tudo acontece como tem de acontecer. E que, dentro da sabedoria que tinha na altura, essa jovem fez o melhor que sabia. Não lhe dava grandes dicas porque quando dás dicas as pessoas mudam o caminho delas. Cometi erros, atrasei a minha entrada no mundo artístico, mas se aconteceu desta forma é porque tinha de ser assim. Eu não ia escrever como escrevo hoje se não tivesse vivido aquilo que vivi. Acho que só lhe dizia apenas uma coisa: “Use Your Pain Wisely”!


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