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Fotografia: Juliano Mattos
Publicado a: 20/04/2023

No M.Ou.Co. e no Cinema Trindade.

Letrux em concerto e documentário: remédio, terapia e naufragar

Fotografia: Juliano Mattos
Publicado a: 20/04/2023

Letícia é hoje Letrux mas também já foi, não há muitos anos atrás, membro de Letuce. Estabeleceu estilos e modos de estar enquanto também corria atrás do seu “eu” artista, atriz, poetisa e, pelo caminho conturbado da existência, acabou a ser invocada como uma das vozes mais proeminentes do Rio de Janeiro. 

No passado Sábado, 15 de Abril, Letrux subiu ao palco do M.Ou.Co. para apresentar um formato de concerto mais intimista. Ainda que tudo em si grite transparência do ser, todo este momento performativo serviu como um mural de fotografias penduradas na “parede da memória”, para sempre lacradas em si, para sempre impulsionadoras de estórias que não ficaram perdidas no tempo. Para quem viu os concertos da multifacetada artista em Portugal no passado Verão, a diferença da linha, ainda mais intimista, fez-se notar. 

Letícia Moraes, carioca de alma antiga com Sol em Capricórnio. Subiu ao palco vestida de branco, praticamente incorporada da mesma energia com que fez Bethânia da última vez que esta esteve em Portugal para, com o mesmo cariz profundo, visitar momentos icónicos da sua obra musical e invocar aqueles que foram os artistas que mais impactaram a sua carreira.

A tour com exibição do documentário Viver é um Frenesi, do realizador Marco Debellian, conta com datas em Portugal e Espanha, e anuncia-se já praticamente esgotada (corram para agarrar os últimos bilhetes onde quer que eles existam) — irá decorrer durante esta e a próxima semana, dias nos quais se fará sentir o primeiro eclipse do ano (motivo do qual até podíamos tornar explicação à sinergia que se fez sentir). O lugar criado neste novo formato de concerto serve de amostra do seu clima mais interior, manifestamente gritante e louvável pelo hedonismo e pelo luto transformado em vida. Durante o espetáculo, o M.Ou.Co. ouviu canções de alguns dos nomes mais importantes da música brasileira e (spoiler alert), se não tivesse encerrado com uma canção de Caetano Veloso (não digo qual é, vá), poderíamos dizer que a escolha mais pessoal da artista tinha sido feita de mãos dadas com referências femininas tão importantes na cultura pop. Desta forma, Letrux construiu dentro de uma das mais recentes salas de espetáculo do Porto um oásis de pura carne humana interligada por lugares que só a consciência pode atingir. Ora sentada ao piano, ora com Kelly a tocar piano, ou no colo de Arthur depois de um duo inédito, a telepatia sincrónica com que comunicavam tornaram as todas estas partilhas possíveis e imaginárias. Este lugar familiar que nos é apresentado é desde cedo anunciado: “a gente já esteve aqui” — o começo do espetáculo fez-se um serão fractal onde o caos organiza o necessário para voltarmos ao mesmo lugar de sempre.

Dentro de alguns dos covers que Letrux escolheu fazer durante o concerto, aquele que esclarece toda a ligação da artista com o seu misticismo próprio foi de Marina Lima que, pouco depois da interpretação de Fiona Apple, surgiu para celebrar a morte da sua prima – acontecida há dois portais atrás. Relacionado com a importância de Viver é um Frenesi, prometido antes — porém desenvolvido depois — do confinamento, a imaculada teimosia capricorniana traz neste documentário um confronto entre o presente e o passado, iluminados pelo deslumbre do que pode vir — quantos de nós sabiam que, além de toda a sua carreira, existia uma Clowndia guardada em Letícia?

Durante o filme assistido no Cinema Trindade um dia depois, a artista contempla as gravações de vídeo feitas pelo seu tio durante a sua adolescência, e mergulha por dentro daquilo que poderá ter sido a sua primeira experiência com o luto numa idade tão fértil como a juventude. Numa homenagem prestada à prima Marina, Letrux conta-nos como foi crescer em São Pedro da Aldeia, ao lado de alguém tão determinante para a sua construção pessoal como artista e, depois da sua perda, como a sua maior inspiração. Desta forma, vemos ser desconstruído por completo o afastamento daquilo que é artista – divindade – humano, unindo por completo quem está diante de si, seja em que formato for. Há segredos que ficam por contar mas, ainda assim, no Sábado sentimos que conhecíamos um lado intangível de Letícia Moraes.

Apesar destas descrições poderem provocar a sensação de que o concerto e documentário foram absolutamente perfeitos e incorrigíveis, em palco Letrux teve alguns problemas técnicos e, infelizmente, contou com vários comentários por parte do público que podiam ter trazido alguma amargura ao clima. É fundamental reconhecermos a exposição de um artista que opta por um formato intimista, e é essencial respeitar o pequeno limite que irá sempre existir. Claro está que a sua força não sofreu abalos sísmicos e, acarinhada por um público que gritou letra a letra em cada tema, todos estes momentos partilhados foram um esplendor de magnetismo.


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