Faz por esta altura cerca de um ano e meio que Leo Middea editou Gente, quinto álbum a solo que assinala uma década de carreira do artista nascido no Rio de Janeiro. Por esta altura também, o músico e compositor carioca — que em sete anos de Lisboa ganhou vícios e virtudes de alfacinha — vai na recta final de uma digressão europeia que o trouxe de volta à sua última casa em Outubro passado. Na agenda, ainda lhe resta uma dupla passagem pela Suíça antes de regressar, mais uma vez, a Portugal (para tocar em Oliveira de Azeméis, dia 30 deste mês), para enfim terminar a romaria de 2024 em São Paulo, no Brasil. Estrada tem sido a casa de Middea ao longo de um ano em que tudo mudou na sua vida. E, pelo meio dessa estrada, foi com ele que nos cruzámos para descobrir de onde veio, antever para onde vai e perguntar pelo caminho que tem feito — sempre de casa às costas.
Sei que tens andado a tocar pela Europa nestes últimos tempos. Estiveste agora em Espanha, certo?
Estive, cheguei ontem de Múrcia.
Como está a correr a digressão?
Está sendo muito bom! Já tem um ano e meio que parece que os caminhos se abriram mais para o território europeu, para além de Portugal, o que está sendo maravilhoso porque eu consigo explorar muito mais as culturas, as cidades… E a expansão do meu trabalho de um modo geral, isso está sendo muito bom assim. Também senti que isso está acontecendo, sabe?
Presumo que tens tocado por sítios onde nunca tinhas tocado. Está a surpreender-te a adesão do público em sítios onde nunca tinhas ido?
Muito, muito! Porque são lugares… poh, eu nunca fui! Por exemplo, Praga, na República Checa, quatro sessões esgotadas. Munique, Heidenberg, Oxford, Brighton… Cidades que estão acontecendo salas esgotadas em lugares que eu nunca tinha pisado. Oxford, uma cidade que eu amei a energia, o lugar, as pessoas… Então, está acontecendo um movimento totalmente inesperado da minha parte, o que me dá mais vontade ainda de querer explorar os lugares, outras cidades, e entender até onde isso vai.
Nesses sítios onde a comunidade brasileira não deverá ser tão expressiva, como tens sentido o público? As pessoas que aparecem são mesmo desses sítios e, independentemente da língua, gostam da tua música?
Quase não tem brasileiro, o que também me surpreendeu no início. Por exemplo, no meu primeiro concerto em Madrid, estava a sala cheia e, aí, eu achei que estava cheia de brasileiros e portugueses porque as pessoas estavam cantando as músicas. E eu fiz, até, uma brincadeira no meio do show, pressupondo que aquelas pessoas eram, na sua maioria, de língua portuguesa. E, aí, não acharam graça da minha piada… [risos] Não lembro da piada exacta, mas a galera não achou graça. E, aí, eu pensei: “Bom, vou tirar a minha dúvida aqui: quem é brasileiro ou português ou fala português levanta a mão.” E ninguém levantou — duas pessoas levantaram a mão, de uma sala com cento e poucas pessoas. Isso me surpreendeu muito. Em Stuttgart, na Alemanha, por exemplo, acho que tinha três pessoas brasileiras. Acho que também é um ponto positivo, de alcançar aquela pessoa exacta, daquela cidade, daquela cultura, daquele país. O que me deixou ainda mais surpreso, principalmente pela força que existe na música para além do idioma. É muito especial isso, a pessoa se identificar com o ritmo, com a melodia da voz — isso me deixou extremamente surpreso e estou gostando desse processo.
Não sei se tens por hábito falar com as pessoas no fim dos concertos. Mas sentes que, independentemente de as pessoas não perceberem as letras, conseguem ligar-se à música, ou já começa a haver um público que não fala português e vai investigar as letras e o seu significado?
Eu acho que tem os dois. Sempre que acaba um concerto eu vou lá falar com todo o mundo, e há os dois casos: esse de a pessoa se identificar ritmicamente, o estilo percussivo que é a música brasileira; mas também tem as pessoas que me escutam para facilitar o aprendizado do português, sabe? Estudam as letras e assim… Mas acho que o caso que tenho mais notado é o primeiro, que as pessoas se identificam rítmica e melodicamente com as canções embora não saibam a letra.
Queria voltar um pouco atrás e perceber este início de carreira por Buenos Aires. Como é que aos 18 anos, com o teu primeiro disco editado, pegas na guitarra e vais em digressão para a Argentina?
Não sei como é que está hoje no Rio de Janeiro. Faz tempo que eu não falo com pessoas que estão começando no mundo da música nesse exacto momento. Mas há dez anos — falo por mim, na minha experiência individual — existia uma certa divisão na própria cidade, porque o Rio de Janeiro é muito grande. São seis milhões de habitantes, é muita gente. Então, tinha umas certas divisões naturais que acontecem. E eu sou da parte um pouco mais suburbana do Rio, o que, em termos musicais, outras coisas são populares — como o samba, o pagode, o funk… São maravilhosas, mas não é propriamente a MPB [Música Popular Brasileira], que é algo que eu faço e que sempre me identifiquei. Mas era um estilo que, popularmente, era mais ligado à zona Sul do Rio de Janeiro, que é mais o postal da cidade — Copacabana, Ipanema, Leblon… E aí existia essa divisão, de pessoas do subúrbio não conseguirem entrar nesse lugar do Rio de Janeiro. Então, para mim, havia uma certa dificuldade de tocar no Rio de Janeiro, porque na Taquara o meu estilo era muito diferente dali, e eu, por ser da Taquara, não conseguia tocar na zona Sul. Enviava vários e-mails, várias mensagens, e nada… Então, eu desabafei com uma amiga minha, que tinha conhecido em Buenos Aires — porque eu tinha ido de férias em Buenos Aires um ano antes —, e ela me apresentou um amigo dela músico. Escrevi para ele, e ele me passou contactos de uma casa de show. O e-mail que eu mandava para imensas casas do Rio de Janeiro foi o mesmo e-mail que eu mandei para essa casa de Buenos Aires, traduzido porcamente no Google Translate… [risos] E aí eles ouviram o material e disseram: “Você pode vir quando você quiser.” E eu pensei: “Bom, ir para lá só para essa casa de show não vai valer a pena, que é só um show para 50 horas de autocarro.” E aí, com essa casa, consegui outros contactos, e conclusão… fechei 28 concertos naquele período. Eu, com 18 anos. Aí, enfim, por falta de dinheiro, fui de autocarro, que são 52 horas do Rio para Buenos Aires. E lá em Buenos Aires foi quando eu comecei a minha carreira musical, fazendo o primeiro concerto da vida. Foi muito curioso: eu não conseguia tocar no Rio e tive de ir até Buenos Aires para fazer um concerto.
Mais tarde, vieste para Portugal, por volta de 2017… Ainda estás a viver cá?
Hoje eu vivo em Barcelona.
Como é que se deu esse encontro com Portugal no teu caso específico? Nós temos uma comunidade brasileira muito grande, desde logo pela língua em comum, mas no teu caso concreto porquê Portugal?
Então, essa porta que se abriu em Buenos Aires naquele período foi muito importante para mim, porque depois de Buenos Aires fui para São Paulo a convite de uma produtora e comecei a fazer o meu trabalho mais no Brasil. Mas Buenos Aires abriu a minha cabeça para esse lugar da multiculturalidade, de expandir o meu trabalho para os maiores lugares que conseguisse. E na minha cabeça fazia sentido experimentar Portugal, porque em Portugal se fala a mesma língua e está na Europa, podendo ser uma porta de entrada para um futuro de navegação para outros territórios. Escolhi Portugal por causa disso, mas a minha intenção não era de ter ficado sete anos, era de ter ficado alguns meses. E aí, fiquei um ano, detestei, pela situação de dificuldade — porque no Brasil já estava trabalhando, fazendo digressões e tudo mais, mas em Portugal não estava… Era aquela coisa: tocando na rua, mas ao mesmo tempo não era aquele tipo de lugar que eu queria apresentar as minhas músicas autorais. Então, estava tendo essa dificuldade. Só que aí, no momento em que tomei a decisão de ir embora para o Brasil, acabei me apaixonando por uma pessoa daqui, começou uma relação, já estava pagando Segurança Social, e aí já era… [risos] Depois a gente terminou e eu continuei aqui, e aí se passaram sete anos. Mas acho que foi propriamente por amor que eu fiquei. E o acto de eu ter ficado fez com que o meu sonho inicial se tivesse concretizado, a propósito da expansão territorial do meu trabalho.
Agora, olhando para trás, e já tendo passado por vários e diferentes países, como foi a tua experiência de ser um brasileiro a viver em Portugal? Começando desde logo pela língua-comum: isso, para ti, foi um factor de aproximação ou de discriminação?
Eu sempre fui muito bem recebido em Portugal, todo o tempo. Talvez por estar a vivenciar nesse meio da música, que talvez tenha a mente mais aberta, eu sempre passei bem no sentido de onde eu estava. Embora eu sentisse que as portas não eram tão abertas quanto para amigos músicos portugueses, também achava que fazia sentido. Obviamente, estou num país diferente do meu, e também se eu pensar no Brasil há mais portas abertas para quem é brasileiro. O acto de conquistar um espaço num lugar estrangeiro, você tem que batalhar. Mas é um processo que é longo independentemente do país que você estiver. Para mim, eu tive essa dificuldade no começo, mas nunca me deixei abalar. E eu via que estava colocando mais pessoas numa casa, sendo totalmente independente, do que as pessoas que tinham uma agência investindo dinheiro. Então, pensei: “Bom, em algum momento isso vai ser visto por alguém, e esse acto de alguém ver isso vai começar a me abrir mais portas.” Então, foi um acto de trabalhar para ser algo quase como inevitável de você não olhar, sabe? Ou seja, chegar a um ponto de: “Beleza, vamos ver o que esse cara está fazendo.” E não baixar a cabeça nessa coisa de vitimização sobre esse lugar cultural. E meio que dito e feito.
O que é que sete anos de Portugal mudaram em ti? Em que aspectos é que já te sentias um bocadinho mais português do que brasileiro?
Tudo, tudo! [Risos] Porque tudo muda… Ainda mais sete anos. E todas as perspectivas, sobretudo sobre o Brasil. Porque é mais fácil a gente ver certas coisas por uma visão de observador. Eu comecei a observar o Brasil mais fora do que de dentro, então comecei a sentir umas raízes brasileiras existentes dentro de mim muito mais fortes. E também, em relação à cultura portuguesa, você vai-se adaptando. Até os pequenos detalhes: por exemplo, no Rio, o horário é relativo; a hora que você marca é totalmente relativa sobre aquela intenção. Ou então você vê alguém na rua que conhece, mas não conhece tanto, e você fala de combinar de se ver — para um carioca aquilo significa nada, é um jeito simpático de dizer, não há compromisso. Cada um segue seu lado, você sabe que não vão marcar, e tudo certo. Mas quando eu cheguei aqui em Portugal, foi a primeira coisa que reparei: a primeira pessoa portuguesa que eu conheci, encontrei assim na rua, falei de marcar, e a pessoa me mandou mensagem. E foi aí que eu percebi que tinha essa coisa enraizada em mim. Então, isso que você falou de coisas que vão mudando é principalmente esses detalhes de diferenças culturais.
Já estás há quanto tempo em Barcelona?
Recém-chegado. Oficialmente, eu estou há três meses. Só que no ano passado fui muito para lá, para conhecer a cidade, entender se eu ia para lá mesmo. Mas tem três meses que eu estou oficialmente vivendo.
Se calhar ainda é muito recente, mas já sentes saudades de certas coisas da vida que já tinhas em Portugal ao fim de sete anos?
Tem algumas coisas, principalmente a língua portuguesa. O acto de ver as placas… porque dá um carinho no coração ver placas em português. Mas em termos de clima são muito parecidas as cidades. São cidades com sol, calor… Mas Lisboa se transformou, de certa forma, em minha casa — a minha concepção de casa. Como se fosse a segunda casa. E isso aqui é interessante: por eu estar fora de Portugal, sempre quando eu volto parece que estou voltando para um lugar que é casa, mas ao mesmo tempo não é mais… Tem essas conexões que ainda existem assim, que acho que fazem a diferença. E algumas saudades específicas: de comer um bitoque, aquelas coisas… [risos] Práticas do dia-a-dia também, o pastel de nata de fácil acesso, isso faz falta às vezes… [risos]
Consegues verbalizar esse sentimento de procurar conforto no desconhecido?
Para mim, o acto de sair do Brasil foi muito difícil. Embora eu quisesse explorar o desconhecido, novos lugares, novas culturas, o acto de sair foi muito difícil principalmente por não ter previsão de volta. Então, o processo dos primeiros meses foi muito difícil. A adaptação ao entendimento de que eu não estava em casa. Então, o sentimento de casa começou a ficar relativo também. Porque, ao mesmo tempo que eu comecei a não me sentir propriamente em casa no sentido mais tradicional da palavra, comecei a mudar esse sentimento para um de adaptação ao facto de não estar em casa. Portugal é a minha casa — mas não que Portugal seja mesmo a minha casa, é um lugar onde eu me adaptei e me sinto confortável de estar. Essa adaptação trouxe para mim essa coisa de considerar qualquer lugar como minha casa, mas que ao mesmo tempo nunca vai ser a minha casa. E quanto mais o tempo vai passando, talvez mais vontade eu tenho de sentir que um lugar é minha casa. Tem sempre uma dualidade. Você falava de explorar o desconhecido — eu acho isso maravilhoso, e quando eu era mais jovem, isso era um sonho muito grande. Hoje, eu acho que já tenho essa adaptação de estar no desconhecido, mas ao mesmo tempo surge uma necessidade de ter uma confirmação de que algum lugar é minha casa. Talvez o grande objectivo da viagem é a volta para casa, e isso vai ficando cada vez mais evidente.
Ou pelo menos sabermos que esse regresso existe.
Sim, sabermos que esse regresso existe. Então, no ano passado, como eu estava nessa transição entre Lisboa e Barcelona, eu não tive muita casa. E aquilo de ter um lugar de casa para ficar se tornou quase nulo, porque minhas coisas estavam na casa de amigos, não tinha um lugar fixo, até que chegou esse ponto de estar viajando mas precisar de um objectivo de volta, porque assim também não estava dando para mim mais. Foi nesse momento que tive que escolher algum lugar para morar de facto, e acabou sendo Barcelona — pelo menos, provisoriamente.
Isso em termos de identidade provoca em ti cada vez mais incerteza, ou quanto mais “casas” tens melhor te conheces a ti próprio?
Sim, eu acho que, de certa forma, essa coisa de quem eu sou, o que procuro é muito relativo também. Porque acho que essa busca está sempre existindo de uma forma que vai-se alterando. Por exemplo, eu quando cheguei a Portugal, estava procurando tocar em Portugal, rodar o país. Quando estava rodando o país, a minha procura foi de tocar noutro lugar. Agora estou começando tocar fora, e aí começa vindo a busca. Vai estar sempre rolando uma busca, e também acho que isso é importante, porque acho que faz o sentido da vida ser um pouco mais emocionante. E no momento que parar essa busca, é perigoso, sabe? Essas viagens que você está falando talvez contribuam, de certa forma.
E em relação à tua música, como é que sentes que Portugal te influenciou a nível criativo?
Talvez eu tenha amadurecido um pouco as letras, eu acho. Porque estando sozinho isso vai amadurecendo de várias formas. E eu acho que isso talvez tenha contribuído nas letras — um cuidado maior com as letras. Porque a música é uma reflexão directa do que a gente está vivenciando, mas no geral acho que são mudanças subtis. Com certeza, alguma coisa se altera, mesmo que a gente não tenha uma consciência mais lógica sobre aquilo. O acto de conhecer novos ritmos, ir numa casa de fados escutar aquela letra, o contexto daquela história. São pequenos detalhes assim, mas com certeza tem várias músicas que não existiriam se não estivesse em Portugal — como a música “Hello Goodbye”, por exemplo, que eu não menciono Portugal, mas falo “Aqui na Europa está chique demais” e vai-se desenvolvendo todo aquele verso… Então, acho que, directamente, com certeza, influencia de várias formas.
Mesmo o contacto com músicos portugueses — o Janeiro é um bom caso, mas hás-de ter tido outros —, que impacto teve na tua música?
O Janeiro foi a primeira pessoa que eu conheci como músico aqui em Portugal, e musicalmente talvez ele me tenha aberto os ouvidos para esse lado electrónico. Quando eu chamei ele para participar do meu terceiro disco, o Vicentina, na música “Romances”, eu já falei para o Janeiro: “Traz um pouco do seu lugar que está explorando de beats para essa música.” E essa exploração que eu vi dele tão perto também me deu curiosidade de explorar beats. Então, no disco Gente tem muito mais essa pegada electrónica. Acho que é isso que eu falei, os pequenos detalhes, essa observação.
Sobre a tua participação no Festival da Canção, agora que já passou algum tempo, como é que olhas para essa experiência — de tudo o que teve de bom e de mau?
Para mim foi muito importante, na verdade. O festival… nunca achei que eu ia poder participar, e é algo que eu acompanho desde a minha chegada. Então, ter ido para lá já foi algo muito especial, muito bonito, embora tenha rolado coisas positivas e coisas negativas. Tudo para mim foi positivo, embora tenha essa dualidade toda. Eu tinha consciência que essas expressões mais negativas, de xenofobia, iam acontecer, e eu já estava sendo psicologicamente preparado para aquilo. Só que é isso, no momento em que fui para a final aquilo ficou muito maior e ficou em evidência. Mas, mesmo assim, acho que isso foi positivo, porque o debate que rolou sobre aquilo foi muito importante, sabe? As pessoas verem que aquilo acontecia; que não era uma coisa pontual, que acontece com muitas pessoas. Até no post que eu fiz as pessoas iam comentando e falando e debatendo. Então, acho que isso foi muito importante, a existência desse debate.
E como é que te sentiste a lidar com essa parte mais mediática de se ser artista? Presumo que, pelo contexto da televisão e do próprio festival, tenha sido a tua primeira grande experiência nesse sentido.
Cara, eu gostei até… [risos] No sentido de poder sentir o meu trabalho mais presente, independentemente do que era. Estou há dez anos trabalhando com a música, e essa foi a vez que eu senti o meu trabalho mais explorado, no sentido de as pessoas conhecerem e tudo mais. Então, para mim, eu via aquilo como algo bom. Embora existam músicos e profissionais da arte no geral que não gostem tanto dessa parte mais mediática de estar em evidência, é inevitavelmente importante. Porque é o momento onde o seu trabalho vai estar, onde você vai poder mostrar o que você quer fazer. Então, para mim, ao mesmo tempo era algo que não era comum, mas acho que foi importante e gostei de ter pela primeira vez essa experiência.
Vi pelos teus mini-documentários que os primeiros discos que editaste cá foram feitos a muito custo. Agora que já estás uma fase de carreira diferente, mais estável e sustentável, como é que olhas para essa questão financeira? Era um entrave ao que querias fazer ou, no outro lado da moeda, manda agora na tua agenda de alimentar a máquina?
Isso é um sentimento novo para mim. Porque é isso que você falou: esses anos todos de dificuldade em vários sentidos — de tocar, a nível financeiro, tudo isso foi muito difícil… Então, com a mudança desse lugar veio o medo de voltar à estaca zero e, ao mesmo tempo, esse sentimento de não poder parar. Eu estou num momento que tenho de aceitar tudo o que vem. E não pára — eu estou mais em palco do que na minha cama [risos]. Está um ano louco, mas tenho que aproveitar. Para mim, de certa forma, também é um sonho o que está acontecendo. Mas também é isso: uma mudança muito nova na minha vida. Parando para pensar, há um ano e meio, em Junho do ano passado, eu estava pedindo dinheiro emprestado para conseguir pegar o metro, e um ano e meio depois eu estou com 100 shows na agenda. Tudo mudou em um ano e meio, e tem muitos medos envolvidos, mas é isso que você falou. Também estou tentando entender… [risos]
Como é que cada uma dessas duas realidades opostas afecta no processo de composição?
De viagem acaba por existir sempre menos tempo para compor. Isso acho que é um facto. Mas para mim o acto de fazer música é muito natural, muito orgânico — e muito necessário. Quase como um acto que você precisa de fazer como terapia. Eu preciso de dizer algo no papel que eu sinto que quero dizer, independentemente de estar rolando tudo isso que você falou. Sempre tem um momento que surge uma música na cabeça, uma necessidade de compor. Então, o acto da composição não se encerra assim. E agora eu estou no processo de criar um novo disco; estou separando as músicas e criando novos rascunhos, e a dificuldade está sendo quais as músicas escolher. O acto de compor não parou.
Então, nunca há esse medo do bloqueio criativo?
Não, tem… Eu acho que o bloqueio criativo existe sempre, mas a gente tem que se propor a vivenciar certas coisas. Ainda mais agora, que estou viajando para caraças, mas para mim o bloqueio criativo surge quando estou menos receptivo a certos estímulos e a observar as coisas com uma certa clareza — estar aberto mais sensivelmente. Tem momentos que acontece, mas não é da minha naturaleza… Já estou falando espanhol [risos].
Estás a celebrar dez anos de carreira numa fase em que, à boleia do álbum Gente, a tua música tem cada vez mais visibilidade. Como é que percepcionas esta fase que estás agora a passar e como lidas com a caracterização que te é feita de seres uma das novas vozes da MPB?
Não sei… é difícil falar sobre isso. Porque essa fase que eu estou é uma fase que eu também estou entendendo. Tudo na minha carreira sempre foi escadinha, sabe? São vários tipos de carreira: tem a pessoa que começa e já vai; que sobe num lugar muito alto e se mantém ali; que às vezes vai para um lugar muito alto e desce e já não consegue subir; e tem alguns que vão, cada ano é um pouquinho, cada disco é um pouquinho — o meu caso é esse. Então, sinto que estes dez anos são escadinhas que estão acontecendo, e é importante eu subir mais alguns desses degrauzinhos, para me trazer mais confiança como músico. E tem uma fase, que é a que eu acho que estou, que é o divisor de águas de quem eu era, quem estou sendo e quem eu posso ser. E essa expansão na Europa que você falou acho que é muito importante para eu notar isso, para eu entender qual escada subo agora — que quero tentar subir. Este está sendo o melhor momento da minha carreira nestes dez anos, e esse disco Gente contribuiu muito para isso — foi um disco que chegou a muito mais pessoas do que os outros, que as pessoas cantam mais nos concertos. Mas o que pode vir a acontecer não é tão nítido assim.
Mesmo não sendo muito nítido, qual é o próximo passo que tu gostarias de dar?
Para mim, acho que o próximo passo é eu me sentir um pouco mais fixado nesse lugar da indústria da música — da world music. Acho que é um caminho que estou percorrendo, mas acho que o próximo passo talvez seja isso: essa segurança. Porque eu hoje me vejo nessa posição segura, mas ao mesmo tempo, para eu me ver nessa situação segura, tenho que fazer pelo menos 17 concertos por mês. E não precisa de ser necessariamente assim sempre, ou seja, muito trabalho e pouca vida pessoal. E o próximo passo talvez seja isso: que a segurança venha de outras formas, não só de concertos. É um trabalho que a gente vai construindo. Estou muito feliz de onde eu estou agora, e é isso que a gente falou: eu cheguei numa busca que idealizei no início; agora, qual é a próxima?