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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/12/2023

Trabalhar sobre a imprevisibilidade.

Leila Bordreuil, “o esqueleto de uma atmosfera”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/12/2023

A programação do Madeiradig, ao longo das suas dezanove edições, tem dado a conhecer o trabalho de um conjunto de músicos com uma linguagem autoral bastante forte. O que se poderão considerar, de uma certa forma pouco aprofundada, como pesquisadores sonoros. Só memorando a edição de 2022 — Bob Ostertag, Ravon Chacon e Silvia Tarozzi & Deborah Walker. Poderemos, facilmente acrescentar a esta lista o nome de Leila Bordreuil. Antes do seu concerto na edição deste ano do festival, e de a mesma ir arranjar um sintetizador, aproveitámos para conhecer melhor o seu percurso, as diferentes colaborações que manteve e mantém com músicos de áreas tão distintas com o free jazz, noise ou techno, mas igualmente as inquietações sobre a relação do espaço com o som e o seu reflexo na composição. Lugar para o indeterminado. A consciência da pequenez humana.



[O VIOLONCELO]

“Comecei a estudar violoncelo quando era muito nova. Tinha sete anos. A decisão foi minha. Vi alguém a tocar viola de gamba na televisão. Falei com os meus pais. E, eles disseram – ‘talvez fosse melhor começar pelo violoncelo’. 25 anos depois nunca toquei viola de gamba. Estudei no conservatório durante 10 anos. Estudos muito clássicos. Mudei-me para os E.U.A., porque queria seguir os estudos no campo da música eletroacústica. Nessa altura, comecei a ter problemas com as minhas mãos. Tremiam. Não conseguia tocar o violoncelo de uma forma clássica. A minha professora da altura ‘convidou-me a sair’. Encontrei outro professor, Alex Waterman, que me incentivou a tocar. Mesmo com o problema nas mãos, ele foi-me introduzindo às técnicas estendidas. Talvez a minha incapacidade fosse uma força, uma vez que era única. Foi a partir deste momento que comecei a tocar o violoncelo de uma forma mais experimental.

Inicialmente associei o violoncelo com a música electrónica. Quando era mais nova, usei também sintetizadores, o Ableton [Live] e coisas desse género. Na altura, aborrecia-me utilizar as máquinas, não como agora que as adoro. Estava mais interessada nos processos e em algo mais manual. Além disso, uma vez que tocava o violoncelo há tantos anos, interessava-me tocar ‘música electrónica’ com o violoncelo. Nos inícios dos meus vinte, enquanto estudante, não me permitia comprar todos os pedais que queria. Assim, comecei a comprar instrumentos estragados no eBay. Gosto muito destes instrumentos partidos, porque têm como que uma espécie de vida própria. Estão partidos pelo passado que tiveram e por isso são únicos. Comecei por comprar muitos amplificadores por 5 euros. Utilizava esses amplificadores juntamente com os microfones de contacto que construía, com os pedais de distorção. Progressivamente fui comprado material que já não estava partido, mas mantendo a estética que tinha e desenvolvia. Ainda hoje, muito do material que utilizo, foi-me dado e encontra-se partido. Na última semana, estava a tocar em Ravena [Itália] com um leitor de cassetes e um sintetizador, ambos foram dados e ambos estavam meio partidos. Sou uma improvisadora e gosto de improvisar. O que mais me fascina é que estas máquinas estragadas me surpreendem e me surpreendem em concerto. Frequentemente, fazem coisas que não consigo realmente controlar. Improviso com elas. Como solista, torna o exercício mais entusiasmante.”

[MARINA ROSENFELD]

“A Marina foi realmente muito importante para mim. Estudei com muitas pessoas, mas penso que tenho de destacar a Marina. De certa forma, mudou a minha vida. Ela acreditou em mim. Estava longe de casa. Responder a esta questão é muito pessoal. Fez-me descobrir muita música, também. Desde muito nova deu-me a conhecer Eliane Radigue, por exemplo, também Gerard Grisey. Estes dois compositores foram a maior influência na minha música. A Marina deu-me a conhecer ambos. Pessoalmente, foi uma professora que sempre me quis conhecer e aos meus interesses e disse — ‘é isto que tens de fazer’. Quando comecei a universidade não sabia quem ela era.”

[OS ESPECTRALISTAS]

“Nessa altura, estava muito interessada na corrente de espectralistas franceses. Gostava tanto, que cheguei a pensar abandonar a música enquanto instrumentista e tornar-me numa investigadora. E a Marina, mais uma vez, disse-me — ‘Será o maior erro da tua vida’. Foi nessa altura que conheci o Zach Rowden, contrabaixista com que já colaborei. Zach estava fascinado pelos espectralistas romenos. Isso foi algo que nos uniu. Zach tinha uma relação muito próxima com o Iancu Dumitrescu. Quando eu e o Zach estávamos em tournée tivemos a oportunidade de trabalhar com o Iancu. Passámos dois dias a ensaiar com ele. Foi nesse momento que entendi a sua forma de pensar, a música espectral e donde vinha. Conhecia a música espectral de uma forma muito académica — rejeição das dodecafonias, por exemplo. O espectralismno em Iancu é muito mais fenomenológico e muito relacionado com a percepção do músico. Ele vê o som de uma forma muito universal e filosófica. A forma como faz as notações é extremamente interessante, pois parece muito difícil. Era uma página a negro. Passei-me e disse — ‘Zach, como vamos tocar isto. Isto é impossível’. Ele respondeu – ‘Não é esse o ponto. Isto é muito fácil. Isto é o esqueleto de uma atmosfera, das emoções, das intenções.’ A partir daqui, do entendimento desta intenção, é necessário tocar a peça sendo fiel à intenção e não exactamente ao que está escrito na pauta. Considero uma excelente perspectiva. Uma celebração da liberdade e nada pretensioso. A ideia de que se trabalhou tão afincadamente em todos os detalhes e dá-los aos músicos e depois eles não trabalharem estes pequenos detalhes. A peça era constituída por 7 pautas. Começámos a ensaiar e o Iancu mudava constantemente a ordem. ‘Tocas a 3, depois a 1, 2, 7, 5, a 6 e a 4’, dizia. Vinha até nós e — ‘Mudei de ideias’. E alterava a ordem. Considero isso tão extraordinário que alguém possa não ser tão picuinhas em relação à sua arte. Muitos compositores têm a abordagem contrária — ‘Passei tanto tempo a trabalhar sobre isto, então terá de ser tocada assim.’ Iancu, pelo contrário, tinha uma atitude muito punk. Iancu passou muito tempo em volta da composição, mas quando chegava aos ensaios era a libertação dos sentimentos diários. Mexeu muito comigo. Algumas vezes, eu trabalhava bastante sobre determinado tema, preparava o concerto em determinado ponto específico e chegava ao palco e — ‘hoje não é o meu dia!’ Abandonava o que tinha preparado espontaneamente. Por ter ensaiado tanto ou por ter composto tão afincadamente, no final, o trabalho ainda continua lá. São os parâmetros invisíveis de um concerto de improvisação. A ideia principal é: a vida é um conjunto de variáveis incontroláveis e aleatórias. Somos muito pequenos, não temos a compreensão da totalidade. Então porque que é que criamos estas estruturas autoritárias? Porquê impô-las a nós mesmos? Porquê tocar alguma coisa feliz, quando estamos de luto? Sou uma pessoa muito antiautoritária. Tenho tendências anarquistas na vida e na minha forma de trabalhar. Penso que se nota na música que faço. Iancu Demitrescu e o espectralismo ajudaram-me a ver — isto é o universo, isto é a sala, isto é a colaboração, a atmosfesra desta noite. Então, porquê ficar agarrado a esta coisa que criaste num determinado momento, num espaço específico?”

[UM CAMPO DE COLABORAÇÕES ABERTO]

“Numa era de capitalismo e no contexto actual da indústria musical, cultiva-se muito esta ideia de que nunca se será bem-sucedido se não se for uma marca. Há que ser uma pessoa que faz algo determinado. Estas colaborações múltiplas, com múltiplos projectos e géneros, podem aparentemente ser vistas como uma tendência suicida. Encontro inspiração nas outras pessoas. Colaborar com elas, empurram-me para outros contextos e aprendo muito. Gosto muito da colaboração que tenho actualmente com a Laurel Halo. É outro universo. Para além da música ser mais tonal. É desafiante, porque tive de aprender muitas coisas, que antes não sabia e não fazia. Gosto muito de free jazz, noise. Então, porque não experimentar tudo?

Em relação à colaboração com Bookworms, está relacionado com o facto de ter crescido no sul de França. Na minha cidade natal [Aix-en-Provence], a única coisa excitante a acontecer eram as festas techno. Bons DJs, bons artistas, pessoas a romper os limites. Havia verdadeiramente uma comunidade muito dinâmica. Ainda tentei fazer techno, mas fazê-lo sem máquinas é quase impossível. Curiosamente foi o techno que me ‘trouxe’ até à música electroacústica. Como tal, senti-me tão motivada em colaborar com Bookworms. Conhecia o trabalho dele muito antes de me ter mudado para Nova Iorque. Para ele, penso que foi exactamente o oposto, o colaborar com alguém que não era DJ ou da área do techno. Queria muito explorar este outro lado. Começámos a trabalhar juntos e ainda tocámos algumas vezes. Ele processava o meu violoncelo através do sintetizador. Era bastante drony. Entretanto dá-se o COVID…”

[A RELAÇÃO COM OS FILMES]

“Sou uma nerd quando se trata de ver filmes. Tenho uma relação muito próxima com o Bayley Sweitzer. Foi ele que me levou para o universo dos filmes, em todos os seus diferentes ângulos. Ele realiza filmes com uma índole claramente política e até mesmo radical. Fiz muitas das bandas sonoras para os filmes dele e também para outros realizadores. Ao contrário de outras pessoas, o que gosto quando componho uma banda sonora é a relação estreita que se estabelece com as imagens. Tem de se seguir as imagens. Temos de nos deixar ir. Libertar-nos da nossa personalidade musical, no sentido de servir o filme. Há algo de humildade neste exercício. Novamente, é algo que te tira do teu campo de trabalho tradicional. Air Rights é um filme em colaboração entre mim e o Bayley. Foi para além da música. Filmámos juntos. Filmei alguns planos com o apoio do Bayley, obviamente. Fiz a banda sonora, mas foi ele que a editou.”

[UMA CERTA VISÃO POLÍTICA — not an elegy]

“Não és a primeira pessoa a mencionar que a minha música é política. Faço música sem letras. E o noise é completamente abstracto. Questiono-me, como é que a minha música é política? Gosto muito de trabalhar em comunidade. Trabalhei em espaços DIY durante anos. Em relação ao not an elegy [2021], tem muito esse lado urbano, de espaço utilizado diariamente por muitas pessoas. Fiz muitos trabalhos na estação de metro. Gosto muito do som que se consegue extrair. A apresentação do not an elegy fi-la numa estação de metro. Toquei com o Tamio Shiraishi, que foi uma grande inspiração para este álbum. Aliás, o primeiro tema chama-se ‘For Tamio’. Pensei que ninguém viesse. Limitei-me a enviar mensagens a alguns amigos. No final, estavam 40 pessoas à espera para o concerto, juntamente com as ratazanas, com uma luz praticamente inexistente. Algumas vezes tens de tocar segundo as imposições da industria musical, mas é muito importante para mim, e uma vez que vivo em Nova Iorque, contribuir para a construção de uma determinada scene. Não me interessam tanto as condições. Posso tocar num apartamento, no metro, num túnel. O mesmo não acontece noutras cidades. Aí quero que as condições sejam as melhores.”

[MADEIRADIG E OS PRÓXIMOS PROJECTOS]

“Este set tem violoncelo, um gravador de 4 pistas, sintetizadores modulares antigos, um Frac rack, mais precisamente um dos inícios do século de que gosto bastante, e alguns pedais. Não processo o violoncelo através dos pedais. Como referi anteriormente, os instrumentos não funcionam na perfeição. Estou muito dependente do equipamento, pois há este desconhecimento de como funcionará. Sinceramente não sei o que poderá acontecer.

Vou lançar um álbum, a ser editado pela Superior Viaduct, que ainda demorou algum tempo a ser produzido. Estou na fase de edição. Este álbum será maioritariamente com feedbacks. Coloquei um amplificador num piano de cauda, um pedal. Queria um determinado reverb, harmonias. Tornou-se um processo de certa forma insano. Foi o tipo de som mais rude que consegui até agora. O som é de tal forma violento que foi difícil trabalhar. Foi um processo longo. Espero sinceramente poder apresentá-lo ao vivo, porque estou mesmo contente com o som. Movo lentamente o violoncelo, o piano está bastante afastado. Torna-se uma atmosfera louca e totalmente desconectada dos meus movimentos. Há uma espiritualidade — o desconhecido do universo e o quanto ínfimo somos. Com o feedback há também muito mistério envolvido. O piano ainda é menos controlado. Interessa-me dar esse espaço para que, de certa forma, o universo toque a sua música. Simultaneamente, tenho trabalhado com um trio de piano e contrabaixo. As peças são acústicas e sem pauta. São sons muito calmos, em que os espectadores não conseguem ouvir, mas que os músicos repetem durante um período muito longo. Cria uma espécie de ondas sonoras na sala. Estes pequenos sons, ao longo dos minutos, criam coros, melodias, sendo que os músicos não têm controle nesta parte. Em vez da espacialização da minha música, num contexto multicanal, de coreografar o som no espaço, interessa-me mais como o próprio espaço cria a música. É a direcção que quero seguir. Mais espiritual, até num sentido niilista — sem deuses, sem mestres, sem verdades absolutas. É a continuação natural do que estou a fazer — deixar o espaço para a imprevisibilidade e trabalhar com isso. É a versão extrema do que estou a fazer. E funciona. Talvez demore dez anos a alcançar o que quero, mas resultou!”


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