Ao contrário do que uma certa ideia que pairava poderia ter dado a entender, o que a dupla colaborativa norte-americana trouxe no passado sábado, 30 de Novembro, até à blackbox do gnration, em Braga, foi uma continuidade do que têm feito e os junta na arte há mais de trinta anos, em torno da sua própria obra de imagens coligidas e expressão sónica. A ligação concreta à estética autoral da luz e sombras da artista Lourdes Castro é por ora um campo de trabalho em perspetiva, mas pleno de validade e significado. Fica evidente que em muito a abordagem artística da canadiana Leah Singer e da madeirense Castro foram dois resultados com criações que caminharam paralelas no tempo e no espaço, sem contudo conhecerem a expressão do trabalho mutuamente. Um daqueles casos possíveis mas muito improváveis. Singer, quando soube da obra de Castro, ficou estupefacta, numa real tomada de consciência, quando os percursos de ambas estavam há muito marcados pela obra cheia de pontos de contacto, porém paralela. Foi Lee Ranaldo quem visitou Castro na Ilha da Madeira, em 2011, mas Singer foi mais tarde, já não a tempo de conhecer a artista — falecida em 2022 aos 91 anos.
Lee Ranaldo, figura incontornável do experimentalismo na música moderna e membro seminal dos históricos Sonic Youth, teve, no decurso da existência da banda (1981-2011), outras actividades artísticas, que perduram. Multifacetado, seja na escrita, na pintura e na própria música, Ranaldo cultiva a exploração sonora da guitarra até hoje, como o aprendido no tempo do ensemble de guitarras eléctricas de Glenn Branca, em plena no wave nova-iorquina que o levou a juntar-se à então recém formada banda de Kim Gordon e Thurston Moore — Sonic Youth. Mas passadas todas estas décadas, no palco do gnration, é como uma colheita frutos da sementeira de Branca em Ranaldo. Peça adiante há laivos vários de “The Ascension”, ligações a uma memória fonética, ao tema de fecho nesse registo homónimo de 1981 onde entrava também Ranaldo, num legado directo. Uma guitarra em palco a pairar — entre os braços do instrumentista e uma suspensão em nó de forca — às voltas no e pelo som emitido, muito às custas de tocar um instrumento tornado em muito de percussão. Em “Countre Jour” encontra-se um corpo performático dual. Vive-se das e para as imagens em díptico que são projectadas na tela e entre as imagens e o som da imagem da manipulação de uma guitarra.
Há as imagens que são a obra de Leah Singer, e que começam por ser as que captou em Central Park a nevar em pleno tempo pandémico. Um primeiro ciclo manipulado no tempo, a fazer nevar desde o chão, com os poucos transeuntes do parque às arrecuas. Singer tinha feito a cronologia da colaboração artística com Ranaldo na masterclass que leccionara naquela manhã de sábado, neste mesmo espaço do gnration. Recordando então que, nos finais dos anos oitenta, estas performances dos dois implicavam manipulação em dois projectores de fita, com lentes especiais capazes de aguentar a intensidade pretendida. A ideia de base mantém-na, mas agora na denominada contraluz, com “Contre Jour”, onde passou a ser utilizado um projector digital. A performance que teve a estreia em 2011, a que vão adicionando nuances e incorporando memórias do vivido noutras ocasiões na própria performance, é um lugar de tensão e mistério. Casos há em espaços — que não este — onde todos pisam o mesmo chão, tudo ao mesmo nível, excepto a guitarra a balançar num movimento que implica estar atento ao momento do desvio, evitando o embate. Nesse jogo decorre parte da acção de Ranaldo, entre o seu corpo e o corpo-objecto de trabalho sonoro — guitarra eléctrica, um modelo único das Jazzmasters, pejada de marcas e autocolantes. Nenhuma outra soa como tal. Para mais o som das cordas e da madeira pelas baquetas, quer com bolas de feltro, quer com bolas de borracha, quer sem elas ou tocada em arco de cerdas. Em balanço feito pêndulo de Foucault, oscila na liberdade dos movimentos, e relembra a rotação da Terra. Também em Sonic Youth houve um retomar de música pendular, com “Pendulum Music” de Steve Reich, registada na 4° entrada da série SYR – Musical Perspectives, em Goodbye 20th Century.
Na certeza, porém, que para Ronaldo e Singer interessa mais as interferências com a matéria que os automatismos, sejam eles dos pêndulos ou das máquinas. São experimentadores natos, vivem nessa busca autoral, tal com Lourdes Castro que nunca acreditou na palavra intenção — como recorda Singer na classe magistral da manhã. No sentido em que “a abordagem é intuitiva numa expressão experimental”. Começa por esse modo operatório — na arte do fazer, mas que um fazer de arte —, o percurso paralelo entre Singer e Castro, onde se insere, claro está também Ranaldo. Trabalhos de forma semelhante, “experimentar em vez de preconceber” como refere Lee adiante na masterclass. Lourdes Castro adoptou a sombra como um motivo de trabalho. “O que me atrai: a sombra não ocupar espaço e guardar a sua presença mesmo desligada do corpo que a projectou”, assim enumerado a predilecção nas palavras da artista. Toda a acção de “Contre Jour” se passa entre a projecção das imagens e a tela, precisamente para, na experimentação e no recortes imprevistos, haver essa luz da sombra na tela, do corpo da guitarra e do corpo do guitarrista e autor. Esse lugar sem espaço, cheio de presença e de absoluta dinâmica — nada estático. Há caminhos paralelos que falam por si no imediato, trazendo a perspectiva da obra de Castro a este lugar de palco, na obra de Singer. E quando Castro, em 1966, começa a trabalhar o novo material com “Sombras em Plexiglas” — o novo material chamado acrílico, pelo qual refere ter feito sair as sombras da sombra, dando-lhes cores, uma vida independente. Também neste palco, sobre as veias cromáticas projectadas surgem as sombras dos movimentos vindos do guitarrista uma vez mais a trazer essa vida independente sem ocupar espaço. Castro que na colaboração artística e na vida teve em Manuel Zimbro um cúmplice, e mesmo começado a abordar a ideia de teatro das sombras com o anterior companheiro René Bertholo, é com Zimbro que, de 1973 em diante, apresentaram vários espectáculos assentes no principio das cores e sombras atrás de uma tela. Resumia então Castro que: “Durante o espectáculo, eu sou a sombra e o Manuel é a luz”. Transitando para a dupla Singer & Ranaldo, encontramos papéis de um acção paralela em “Contre Jour”, sem hesitações. Mas durante a aula magistral mostram-nos outros sinais do tempo, num espaço comum experimental que liga a obra de Singer a Castro, quando ambas se dedicaram às marcas das silhuetas. “Sombras de L. e R. projectadas na parede, Rue des St. Pères, Paris, 1964”, mostra as silhuetas do casal à mesa suportada pela própria parede do lugar da refeição. Singer mostra um trabalho de silhuetas de um jovem casal cara-a-cara, de sua autoria, beijando-se ou noutras cumplicidades várias. Imagens essas que se retomam na projecção em palco, quando no lugar todas as luzes são sombras e a sombra projecta-se pela acção da música.
Dessa acção conjugada guardamos na memória esta imersiva experiência vinda de um som das sombras à contraluz, numa blackbox, uma vivência derradeira de corpos criativos que se tocam na lonjura sem nunca se terem encontrado — lançando sombras sonoras impermanentes, como na antevisão da imagem em movimento. Razão para que, de quando em vez, surgissem: “cinema” e “seeds”, como das poucas palavras “escutadas” no campo da visão.