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Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 03/11/2022

Um grupo que é tudo.

Lantana: “O nosso desejo é encontrar uma certa magia e podermos explorá-la”

Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 03/11/2022

O sexteto Lantana diverge de quase tudo o mais que encontramos no circuito português da música livremente improvisada. Seja pelo facto de ser constituído apenas por mulheres – e isso, infelizmente, ainda é invulgar num meio em que os grupos são geralmente masculinos – como por outras circunstâncias que lhes dão uma identidade muito própria.

O enviado da Rimas e Batidas foi ter com elas no final de um ensaio, mas ficou a perceber que até os ensaios de Lantana não são ensaios, mas reencontros com o seu som muito singular. Joana Guerra não pôde participar na conversa e Maria Radich só teve tempo para responder a uma pergunta antes de correr para apanhar um autocarro. Ficaram Maria do Mar, Helena Espvall, Carla Santana e Anna Piosik a desvendar o miolo do que são esta banda e o seu primeiro disco. Desfaçam já as vossas expectativas, porque tudo nelas diverge de normas, estereótipos e hábitos. Tocam no próximo sábado, dia 5 de Novembro, no TBA, pelas 19h30.



No final de um concerto de Lantana, há uns três anos, ouvi um músico homem questionar-vos sobre se não estariam a ser “separatistas”, por serem um grupo apenas de mulheres. Uma de vocês respondeu que sim, mas “na mesma medida em que a maior parte das formações são só de homens”. Esta tem sido uma questão recorrente no vosso percurso. Acham que a existência de Lantana mudou entretanto este tipo de mentalidade no circuito da música improvisada?

[Maria Radich] Não sei se alguma coisa mudou. Não tivemos o propósito de agitar as águas ou provocar alguma coisa de concreto. Houve a ideia original por parte da Maria do Mar e da Joana Guerra de juntar estas mulheres músicas, que em outros contextos já tinham tocado umas com as outras, mas nunca em sexteto, e tivemos, de facto, a noção de que poderíamos ser tomadas como um grupo feminista. A verdade é que não tivemos essa intenção. Se agitámos as águas, ainda bem, mas o nosso propósito não foi esse, apenas o de nos juntarmos para criar. Sabíamos que íamos levantar algumas questões, mas este é um grupo de mulheres que se juntaram da mesma forma com que se juntam grupos de homens. O objectivo foi apenas o de reunir mulheres com base em princípios como o da qualidade e do valor das participantes.

[Carla Santana] A reacção desse músico mostra apenas o que eu julgo que vem do passado. Durante gerações, as mentalidades estavam treinadas para entender que a música é algo de naturalmente masculino, mas acho que isso foi mudando. Estamos cá, sempre estivemos, e para nós não faz qualquer sentido. É um passado, mas ainda persiste. As mentalidades demoram a mudar.

[Maria do Mar] Eu lido com essa mentalidade todos os dias, pelo que para mim ainda é o presente. Sempre que tocamos vem essa questão ao de cima: “Ah, então vocês são feministas”. Nunca ninguém perguntou a um sexteto de homens se é separatista, e isso é irritante.

[Anna Piosik] No meu caso nunca pensei que esta fosse uma banda feminista ou sequer “feminina”. Pensei e penso apenas que é uma banda e que o que importa é apenas aquilo que cria. Nunca na minha vida gostei de rótulos, nem daquele posicionamento das bandas de homens como sendo de “bros”. O mundo ainda lida com questões biológicas básicas, como as hormonas, e isso é transposto até para a cultura e a arte. Ainda somos macacos, afinal. Não gosto que me coloquem num frame. A moldura pode até ser a do patriarcado, mas isso também é um carimbo. Prefiro ver o mundo como um espectro muito alargado, como um diamante que brilha em todas as suas faces.

Tenho lido algumas dissertações norte-americanas que defendem que, em termos processuais e outros especificamente técnicos ou de linguagem, há uma música masculina, uma música feminina e até uma música heterossexual e outra homossexual, dando exemplos de todos esses casos. Presumo que não concordam com este ponto de vista…

[Helena Espvall] Não vejo as coisas dessa maneira. Acho que a forma como se compõe ou se improvisa é muito pessoal, dependendo de quem se é e de como se é individualmente. Eu, por exemplo, sou uma pessoa um bocado weird. Sou introvertida e ao mesmo tempo muito social. Há alturas em que não páro de falar e outras em que não contribuo para nada numa conversa. E sou assim também na música: há umas vezes em que não tenho nada para acrescentar e outras em que toco demasiado. As pessoas deste grupo são muito diferentes entre si e tocam de modos muito distintos e o interessante é encontrarmos conexões entre nós quando improvisamos. Sim, somos todas mulheres, mas temos personalidades bastante diferentes.

[Maria do Mar] A música não tem género. Somos todas pessoas, cada uma ao seu jeito.

[Anna Piosik] Não me parece que teria bons resultados a experiência de o público ser vendado para adivinhar se algo foi tocado por um homem ou por uma mulher. Há músicas mulheres que tocam de formas muito agressivas. E músicos homens que podem ser delicados. E por que não?

[Helena Espvall] Podemos ser mais tímidas ou mais musculares, tipo “i’m going fucking crazy today”, mas nenhuma dessas coisas nos define. Lantana é uma diversidade de pessoas e mesmo dentro de cada pessoa há uma multiplicidade de emoções. Estou cansada de ouvir dizer que sou muito etérea ou de que sou uma fada esvoaçando e espalhando confetti. Então e as vezes em que sou mais agressiva e forte e afirmativa? Só conta o lado mais suave porque condiz com o facto de ser uma mulher?

[Carla Santana] São arquétipos que nos impõem apenas pela circunstância de sermos mulheres. Os arquétipos do feminino e do masculino. Mesmo que os aceitemos há momentos em que somos mais “femininas” e outras em que somos mais “masculinas”, porque toda a gente tem ambas essas características. E o que acontece então? Os arquétipos começam a desabar. Porque essas dualidades são falsas, há é uma mistura. Nós somos tudo.

[Anna Piosik] Tudo na nossa música é fluido. Não somos uma coisa ou outra. Somos tudo. A sociedade, ou a cultura dominante, procura impor-nos categorias. O que nós queremos é libertar-nos delas. Eu venho das Belas-Artes, não tive formação musical, logo o que faço com os sons parte de noções de plasticidade. Esta minha circunstância pessoal contradiz imediatamente as formatações musicais existentes. Se eu respeitasse as regras que vêm com a mudança de meio de expressão isso seria para mim uma perda grave. Uma tragédia.

[Helena Espvall] E há outra coisa que nos singulariza. A maior parte dos improvisadores em Portugal, e no mundo, vem do jazz e relaciona-se de uma maneira ou de outra com essa herança. Nós não. Viemos da clássica, do rock, da folk…

A invulgar configuração instrumental de Lantana faz-me perceber que os critérios utilizados para a constituição do grupo basearam-se nos nomes escolhidos e não nos instrumentos que tocam. As bandas da chamada improv normalmente constituem-se pela escolha do baterista, do contrabaixista, do pianista ou guitarrista, dos instrumentistas melódicos. Não foi assim convosco.

[Maria do Mar] As escolhas de instrumentistas realizadas por mim e pela Joana Guerra não foi a tradicional. Foi emocional. Queríamos tocar com estas pessoas, por afinidade musical e por afinidade pessoal. Não pensámos em instrumentos rítmicos, harmónicos e melódicos, como no jazz, mas em personalidades, aquelas com que gostámos de tocar em outros contextos e situações. Temos dois violoncelos na banda, mas isso nunca constituiu um problema. A Joana e a Helena são tão diferentes a tocar que é como se fossem dois instrumentos distintos.

E essa particularidade fez com que destruíssem as hierarquias instrumentais do costume. Efeito dominó.

[Maria do Mar] Fez com que a nossa música fosse horizontal.

[Anna Piosik] Mais do que isso, fez com que o grupo seja mais performativo. Há uma deep listening que está completamente distanciada da música criada por essas bandas mais convencionais em termos de instrumentação. A mim abriu-me os ouvidos e a mente. Sinto o mundo inteiro com Lantana. Sinto que a música é mais selvagem, e daí o nome da banda, que refere as flores selvagens, que nascem em todo o lado. E proporciona-nos uma grande liberdade, inclusive no sentido em que não suscitamos determinadas expectativas no público. As pessoas nunca sabem o que vai acontecer a seguir, nem nós. Há emoções nossas, individualizadas ou em conjunto, e há emoções em cada ouvinte ou partilhadas. É como se estivéssemos numa igreja, em que sabemos que as outras nos estão a apoiar, que há uma comunhão, mas também que temos espaço entre nós. Quando uma de nós introduz algo de bonito, logo a suportamos. É como viajar. Ou como uma droga.

As peças deste álbum parecem-me até ter algo de ritual. Surge naturalmente ou foi desde sempre uma premissa?

[Carla Santana] Só no sentido de que são rituais de liberdade. Quisemos que a gravação em estúdio fosse como se estivéssemos a fazer um concerto. Viver o momento e corresponder ao momento de cada uma. Termos uma atenção extrema e uns ouvidos gigantes. Haver uma enorme ligação entre nós para que algo de coeso nasça. O ritual não é uma finalidade, isso seria como perguntar a alguém por que é do modo como actua na sua relação com os outros. O nosso desejo é encontrar uma certa magia e podermos explorá-la. Partimos do silêncio e acabamos no silêncio. Pelo meio há o desconhecido. Abandonarmos quaisquer outra frequência que tenhamos e ocuparmos o lugar desse desconhecido.

[Maria do Mar] Tentando, nesse desconhecido, encontrar aquela magia que só a improvisação permite. Para nossa felicidade temos conseguido. Na música improvisada muitas vezes não se consegue, mas é esse o encanto desta música.

[Helena Espvall] Para mim, a magia da improvisação é podermos transcender-nos, a nós e às nossas limitações, e encontrarmo-nos num sítio que é quase sagrado. É tão simples e natural que explicar isto parece um pouco New Age. O ritual está lá, mas não foi prescrito. Adoro encontrar-me fora de mim mesma e em ligação com estas pessoas igualmente fora de si mesmas. É isso a liberdade e a magia. Voarmos como quando sucede com certas drogas, mas sem precisarmos delas.

[Anna Piosik] Essa liberdade do desconhecido começa para mim, artista plástica, logo que pego no trompete. Ainda cometo erros, mas sei que com Lantana posso fazê-lo. E repito-os depois propositadamente, até deixarem de ser erros, porque no grupo há lugar para as nossas fragilidades, as nossas falhas. É tão bonito, isso.

[Carla Santana] Quando estamos no momento, na realidade não estamos. As nossas consciências não estão lá e sim noutro sítio.

A vossa música é colectivista. Não há solos nem acompanhamento, há uma soma na horizontal, como já foi descrito nesta conversa. Por vezes há instrumentos que se destacam, mas não por muito tempo. Na história da música improvisada só oiço isso em formações como AMM, Musica Elettronica Viva, New Phonic Art, Taj Mahal Travellers e a linhagem que se formou a partir destes casos. Assim foi decidido ou apenas aconteceu logo na primeira vez?

[Carla Santana] Os nossos trajectos pessoais foram muito diversificados, já o dissemos. Julgo que em nenhuma de nós houve antes – antes de nos dedicarmos a esta corrente musical, entenda-se – uma prática de improvisação. Ou seja, não tínhamos nenhum background na área. O que tínhamos, talvez, de background comum era o respeitarmos os músicos com quem tocávamos e em darmos-lhes espaço para soarem. Para mim, só faz sentido assim: tocar colectivamente, sabendo quando intervir e quando não intervir numa situação musical. 

[Anna Piosik] Eu entendo a música, e sobretudo a música improvisada, como uma conversa como agora estamos a ter. É preciso ouvir os outros antes de intervir. Improvisar para mim é como viver a vida. Há circunstâncias em que devemos estar em silêncio e outras em que é necessário falar, esperando eu que, enquanto falo, haja silêncio das outras pessoas. A importância do silêncio na música é enorme.

Todas vocês passaram por projectos musicais hierárquicos. A Maria do Mar, por exemplo, tocou em orquestras sinfónicas…

[Maria do Mar] Sim, e o caminho que fiz até chegar aqui, a ser uma improvisadora, foi muito pensado. Não me sentia bem no invólucro clássico, preferia que a música que tocasse fosse mais como a vida, mais natural. E mais política, até. Pretendia tocar uma música que reflectisse de facto a minha vida, o meu dia-a-dia, o quotidiano em sociedade das pessoas em geral, e o certo é que a vida é uma constante improvisação. Eu toco a vida. A música improvisada permite-me isso. Tem a mesma fluidez que as nossas vidas. E fá-lo de um modo inconsciente. Julgo inclusivamente que é essa inconsciência, essa não deliberação prévia, que nos dá liberdade. Musical, e de vida. A música faz parte da vida, afinal. Fui desfazendo esse passado porque não me estava a fazer sentido.

[Anna Piosik] Na música clássica há o compositor e o maestro que te dizem como deves tocar. As pessoas são os instrumentos. O que interessa é o perfeccionismo das interpretações; o músico em si mesmo, a sua criatividade, não interessam. O músico intérprete é como um monge. O capuz tapa-lhe a cara. Há uma despersonalização de quem toca.

Em Elemental parece-me haver uma identidade de câmara que vai sendo constantemente contrariada. Isso deve-se apenas aos instrumentos de cordas ou esse jogo entre uma referência e a sua desmontagem foi deliberado?

[Anna Piosik] É a presença do violino e dos violoncelos que dá essa sensação. Não planeámos esse jogo que referes. Aconteceu apenas serem esses instrumentos que três de nós tocam. 

[Maria do Mar] Essa impressão pode surgir porque são instrumentos com uma determinada história, utilizados em envolvimentos – orquestras, grupos de câmara – que, ao longo do tempo, foram muito específicos em termos de idioma musical.

[Anna Piosik] Pois, não é possível fugir a esse feeling. É algo de metafísico já, são instrumentos com um longo passado e entendem-se como pertencendo necessariamente à música clássica. 

[Helena Espvall] Muita gente tem ainda o preconceito de que, se usas um violoncelo, tocas inevitavelmente as suites de Bach. Eu venho do rock e também toco guitarra, julgo até que melhor. E no entanto, ninguém me vem dizer que toco Segovia. Ao verem um violoncelo no palco ficam com determinadas expectativas que têm que ver com a música clássica. Esperam o som quente, redondo e com vibrato da clássica, mas não é assim que toco.

Em Lantana não encontro os clichés do jazz que ficaram em muita da música improvisada. No caso português, e não só, isso é especialmente evidente. Vocês vão noutra direcção e o paradigma jazz é tal na cena nacional que a vossa música surge em contramão. Concluo que também esta particularidade não é um propósito discutido…

[Maria do Mar] Não, mas todas nós gostamos de ouvir jazz. Só que não o estudámos.

[Anna Piosik] Às vezes aparece alguma coisa que possa ser encarada como jazz, mas depressa cai ao chão. E pode surgir como um “erro”, com todas as aspas. Se no jazz se repetir esse erro três vezes, é porque é jazz. Se for repetido seis vezes, é livre improvisação. Brinco, mas isso é bonito. Experimentamos tudo, não excluímos formatos musicais que não sejam os nossos. Esses pretensos “erros” permitem-nos ir para situações a que, de outro modo, provavelmente não chegaríamos. Estamos preparadas para tudo.

[Maria do Mar] Aliás, todas nós tocamos por vezes com músicos de jazz.

Há poucos anos, três das Lantana, Maria Radich, Joana Guerra e Maria do Mar, pertenceram a um grupo fronteado por Joelle Léandre que esteve em residência artística e fez dois concertos finais, um deles em Serralves. Até que ponto Lantana é uma consequência directa ou indirecta dessa circunstância?

[Maria do Mar] É uma consequência indirecta. Tanto eu como a Joana Guerra apreciámos muito essa experiência e fomos conversando sobre a ideia de formar uma banda fixa com outras mulheres. Aliás, já antes disso a Joana me tinha falado sobre essa possibilidade. A situação com a Joelle inspirou a formação de Lantana, mas já havia perspectivas nesse sentido da nossa parte. No festival Pequenas Notáveis, que programei, houve um concerto que reuniu 11 mulheres.

O que é a improvisação para vocês? Simplesmente um processo? Toda uma estética? Uma utopia, a de levar a pedra para o cimo do monte como no mito de Sísifo, com a pedra sempre a rolar para o ponto de início da subida, para se tentar outra vez e outra e outra, pelo facto de não ser possível improvisar totalmente, seja pelas limitações e características do instrumento, pelo tipo de aprendizagem que se teve, pelas condições acústicas de uma sala, pelo estado de espírito em que se está?

[Carla Santana] Para mim é essencialmente um processo. Um processo em que há um momento e depois outro momento e depois outro. Improvisar é sempre um começo, de algo que é inevitavelmente fresco e novo, diferente de outras improvisações anteriores. Não considero a improvisação como uma estética, é antes qualquer coisa que está aberta às estéticas mais diversas.

[Anna Piosik] Uma abertura também relativamente à noção de seriedade que algumas músicas têm, como a clássica, que se autodesigna como “séria”. Os compositores e os executantes têm altas expectativas sobre si mesmos, e esquecem-se de desfrutar a própria música. Na improvisação é como se fossemos destemidos astronautas, sem receio do que possamos encontrar no espaço. Temos de interagir com qualquer som que nos chegue e de lhe dar resposta. É como conversar com animais. Eu comunico com o meu gato por meio de onomatopeias, e ele responde-me. A adesão a uma estética delimita-nos, mas se essa estética não tiver regras definidas, por que não encará-la assim? A única coisa que temos como certa é o facto de todos os instrumentos reverberarem nos nossos corpos. Somos fisicamente afectados pela música, que não apenas mentalmente. E isso assusta algumas pessoas.

[Maria do Mar] É sermos astronautas aqui mesmo, na Terra, sabendo que os nossos actos são improvisados, uns sendo certos, outros errados. Para mim, não há qualquer diferença entre a música e a vida: estou continuamente a improvisar, no palco e fora dele. Ainda agora quase que entornava a chávena de chá da Carla. Há pouco, atravessei a rua sem ser na passadeira, só porque me apeteceu. É a forma de expressão que tem mais que ver com a maneira como ajo perante as coisas que me vão aparecendo. Não sabemos o que nos vai acontecer amanhã ou daqui a um minuto. Estamos permanentemente com pelo menos um pé fora das normas sociais ou das leis. A vantagem da improvisação musical é que não há polícias à espreita. Tudo é bem-vindo, tudo.

Elemental tem muito de atmosférico, de construção de ambientes, e também é muito narrativo. Imaginamos algo visualmente, como no “cinema entre as orelhas” da acusmática, da música electroacústica. Com certeza vão dizer-me de novo que não foi propositado…

[Carla Santana] Aconteceu desta maneira, e só percebemos que a música que criámos em estúdio era assim tão visual depois de ouvir a gravação.

[Helena Espvall] Quando toco, tenho às vezes mais imagens na minha cabeça do que propriamente música. A nossa imaginação visual pode ser um enquadramento para a música que resulta.

[Anna Piosik] No meu caso sinto que está uma história a desenrolar-se.

[Carla Santana] E eu vim para a música improvisada para não ter de lidar com palavras, com argumentos conceptuais. Depois, em retrospectiva, é que me interessam as palavras.

[Maria do Mar] Essas atmosferas tão imediatamente instaladas podem igualmente dever-se aos anos que temos a tocar em conjunto e à circunstância de conhecermos bem os sons umas das outras e de como os conjugarmos. Nada é programado, mas vamos ter a esses sítios, a essas paisagens, de forma muito intuitiva. Não forçamos absolutamente nada.

[Helena Espvall] Raramente faço alguma coisa com intenção. O que sucede, sucede, e pronto. E já fiz muita música para cinema, seja improvisando ou seguindo pautas muito estruturadas. Tocar uma música que seja imagética é algo de bastante natural em mim.

Fiquei com a impressão de que neste disco se está a percorrer a história do experimentalismo, e não só, desmontando as referências e juntando os pedaços resultantes noutras formas. Também não é programático, isto?

[Carla Santana] Tudo o que acontece com Lantana resulta das referências musicais, e outras, de cada uma. São memórias não conscientes e, nesse aspecto, são inevitáveis.

[Maria do Mar] Todas nós temos as nossas bagagens e os nossos percursos. Umas vezes estamos mais conscientes de umas coisas, e tudo bem, e em outras ocasiões essas memórias, ou partes delas, aparecem simplesmente porque as vivemos, e não há qualquer problema nisso.

[Anna Piosik] Por vezes apetece-me ser um pouco troll e encaixar uma cover nas improvisações. Há qualquer coisa de infantil em mim que me impele a fazer coisas dessas, deixando as minhas parceiras confusas relativamente ao que devem tocar a seguir. Gosto de criar estes paradoxos, estas incongruências. Mas ainda não o fiz com Lantana, atenção.

[Helena Espvall] Eu sou completamente o oposto. Detesto citações. Gosto quando há coisas que vão contra o resto do que está a ser tocado, como introduzir uma melodia ou um padrão rítmico quando tudo o mais é abstracto, mas quando aparecem quotes de canções populares, que todos conhecem, fico com os dentes a ranger. 

[Anna Piosik] Esta minha tentação pelo trolling vem de sentir que também a música improvisada se leva demasiado a sério, como na clássica. Devia ser mais teatral, mais festiva, mais subversiva.

[Helena Espvall] Obrigada, Rui, por nos pores a falar sobre estas coisas, o que normalmente não fazemos. Assim ficamos mais cientes do que esperar de cada uma.

Na improvisação colectiva há duas tendências. Aquela que nada discute antecipadamente e em que não há ensaios e outra em que se debate tudo e ensaia-se com frequência, mesmo que os concertos ou as gravações sejam diferentes do que se ensaiou. Ora, vocês não discutem, mas ensaiam. Mesmo neste aspecto não correspondem a padrões, certo?

[Carla Santana] Nós ensaiamos quando estamos muito tempo sem tocar juntas, e apenas para recuperarmos o feeling de grupo. A última vez que actuámos como Lantana foi o ano passado. Não é para prepararmos um concerto que venha aí, como este no TBA dia 5, mas para reencontrarmos o nosso Som, para nos reencontrarmos como entidade colectiva.

[Maria do Mar] Formalmente, o que fizemos hoje, antes de chegares, não foi um ensaio. Foi um reencontro, motivado pela saída de Elemental e da sua apresentação ao vivo. Mesmo que a música que tocámos hoje seja totalmente alheia à que está no disco e à que soará no sábado. Connosco, nunca poderia ser igual. É podermos voltar a ser tudo, como disse há bocado a Carla. Para podermos ser tudo outra vez, juntas.


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