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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/05/2022

Engenharia musical reversa.

Lance Ferguson: “Rare Groove Spectrum é lançar uma luz sobre óptima música que possa estar a ser negligenciada”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/05/2022

Lance Ferguson compreende aquilo que distingue um bom groove de um groove fantástico. Para além disso, o músico nascido na Nova Zelândia e estabelecido em Melbourne, Austrália, consegue ainda entender a melhor forma de ampliar essa rara qualidade — tem um entendimento de tal nível que decidiu prová-lo numa série intitulada Rare Groove Spectrum.

Depois de lançar o primeiro volume em 2019, recebendo o merecido reconhecimento por isso mesmo, Ferguson soltou mais uma fornada de “live re-edits” em Janeiro passado, abordando temas originais de Marcos Valle, Azymuth e, entre outros, Pat Metheny. O segundo esforço foi razão mais do que suficiente para enviarmos umas questões a este Groove Digga.



Antes de mais, agradeço-te por teres tirado um pouco do teu tempo para me responderes a algumas questões. Permite-me começar por te perguntar sobre os teus últimos dois anos. A tua música serve diferentes propósitos, estou certo, mas um deles é fazer-nos atirar para a pista de dança, seja ela onde for — num clube, na nossa sala de estar, numa festa de rua. Como sabes, a dança foi interrompiada nestes últimos dois anos, pelo menos de forma comunitária. Como é que lidaste com isso?

Os confinamentos foram muito desafiantes, a todos os níveis, para todos aqueles que estavam envolvidos, e a cena musical, obviamente, levou uma grande pancada. Um dos principais papéis da música na sociedade é o de catalisar a proximidade entre as pessoas — em actos de celebração, rituais, interacções sociais e muito mais. Quando isto se tornou impossível, nós sentimos certamente essa perda. Por muito que eu goste de trabalhar e fazer música num ambiente de estúdio, eu aprendi (através da abstenção) que tocar ao vivo é vitalmente importante para a minha própria experiência e desfruto da música.

Imagino que sejas alguém muito ocupado, dado o que fazes não apenas com The Bamboos mas também com Menagerie, o DJing, as edições de discos, etc. Como é que sabes qual é o chapéu que vais usar em determinado momento? “Hum, agora apetece-me fazer um novo disco a solo”. É apenas uma questão de gestão de agendas ou sentes mesmo uma urgência para seguir uma rota muito específica em determinados momentos?

Foco-me, geralmente, num projecto de cada vez e tento imergir durante aquele período. Se eu tiver uma ideia para uma canção que não encaixa propriamente no projecto com que estou naquela altura, vai ser adicionada a uma pasta com novas ideias que podem vir a caber dentro de outra coisa qualquer no futuro. Isto funciona bem porque tens sempre algumas ideias paradas em pastas, que a qualquer momento podes usar como trampolim. Às vezes há múltiplos projectos a acontecer em simultâneo, devido aos calendários das outras pessoas. Por isso, tu tens de estar apto e ser flexível. No final do dia, é tudo sobre encontrar aquela faísca de entusiasmo musical que te faz querer empurrar a cena e finalizar algo.

Fala-me sobre a série Rare Groove Spectrum. Já passaram três anos desde o capítulo inaugural. Lembras-te de como é que esse primeiro volume foi recebido? A selecção do material era incrível…

O primeiro volume correu muito bem e uma daquelas canções, uma versão da “Brazilian
Rhyme”, dos Earth, Wind & Fire, chegou a conseguir bastante tempo de antena em rádios do Reino Unido, como a Jazz FM e a BBC Radio 6 Music. A nossa editora, Freestyle Records, está sediada em Londres e eu tenho vindo a lançar muito material por eles há já quase duas décadas. Através dos canais de relações públicas deles, eles sabem como levar a música a cair nas mãos certas, daí o disco ter tido bastante apoio da rádio e dos DJs de clubes que estão mais dentro deste som.

O que é necessário que uma música original tenha para que te apeteça dar umas voltas com ela e reinterpretá-la? Dirias que existem características comuns a todo o material que juntaste nestes dois volumes de Rare Groove Spectrum?

Não existe nenhum critério definido, mas algumas delas são das minha canções favoritas, outras são canções que eu sempre imaginei escutar remisturadas ou retrabalhadas. Devo enfatizar que não sou assim tão audaz ao ponto de achar que posso “melhorar” estas belas peças de música — as versões originais são, muitas das vezes, obras-primas clássicas e há até quem possa argumentar quanto à controvérsia que é pensar sequer regravar versões desses mesmos temas! Em vez disso, eu vejo-o como uma oportunidade de estudá-las e de aprender como é que as coisas foram gravadas, como é que diferentes sons foram atingidos, quase que a arriscar na “engenharia reversa” para perceber o que é que faz com que determinada instância de uma música seja aquilo que ela é. No fundo, é tudo sobre lançar uma luz sobre óptima música que possa estar a ser negligenciada.

Mencionas tratar as tuas reinvenções como re-edits. Os re-edits são aquilo que os DJs costumam fazer para maximizar nas pistas de dança as melhores partes de um tema. É com esse ângulo que tu abordas este material?

Eu imagino-as como aquilo que eu gosto de chamar de “live re-edits”. A história da arte dos re-edits dos DJs está bem documentada, através de mestres como Danny Krivit, Theo Parrish e Greg Wilson, dando ênfase a determinados elementos da uma faixa clássica ou a remover/estender certas secções, por vezes reinventando por completo o tema. Aquilo que nós estamos a tentar fazer aqui é ter essa mesma abordagem, mas a regravar tudo em estúdio, a partir do zero. Às vezes estamos a tentar replicar o forma sónica de algo (como na “Hot Dog”), outras vezes (como na “Sueno Con Mexico”) somos nós a tentar pegar em coisas mais melosas, downtempo, e a tentar transformá-las em algo que possa funcionar na pista de dança.

O que podes dizer-me sobre as canções que decidiste reinterpretar desta vez? Vais do Rio de Janeiro a Nova Iorque, do smooth jazz brasileiro à disco. Há muito terreno que percorres por aqui…

Há uma ligeira influência tropical neste volume, e de coisas que poderiam caber na caixa da música balear. Quis, ainda assim, ter a certeza de que ia haver algum funk durante a mistura, daí o próximo 7″ vir a ter versões de músicas de Mandrill e Pucho & His Latin Soul Brothers.

Tens muitos dos teus amigos dos The Bamboos, Menagerie, etc., contigo no estúdio. Consegues descrever-me aquilo que é uma sessão típica vossa, ao nível do processo e da atmosfera? Entregas pautas com os novos arranjos ou o método é mais orgânico do que isso?

Estes álbuns são gravados ao lado do meu engenheiro e colaborador de longa data, o John Castle. Ele gravou todo o material dos The Bamboos e de Menagerie, por isso temos uma relação sólida e um modo de operar em estúdio muito eficiente, que adquirimos ao longo dos últimos 20 anos. Geralmente, nós gravamos a secção rítmica primeiro e, depois, fazemos overdubs com sopros e as partes extra de guitarra a seguir. Isto é apenas o resultado das limitações de trabalharmos num estúdio pequeno e do desejo de nos podermos focar realmente em cada parte do puzzle, até ao mais ínfimo detalhe, à medida que avançamos. Este álbum foi gravado entre dois confinamentos e eu consegui compô-lo e editá-lo em casa ao longo de vários meses.

Melbourne atravessa uma fase fantástica, não é? Consegues guiar-me pelo ecossistema musical da cidade? Há por aí muitos clubes, estúdios, editoras e lojas de discos?

Agora que as coisas regressam gradualmente ao normal, a cena musical está a ganhar vida novamente. Estão de volta os espectáculos ao vivo e os festivais, e existe esta genuína sensação de alívio e entusiasmo depois de tanto tempo parados. Muitos músicos puderam trabalhar na música a partir dos seus estúdios caseiros ao longo dos últimos dois anos, por isso estou à espera de uma grande dose de lançamentos a nível local. Alguns desses artistas que eu acompanho são Surprise Chef, Tamil Rogeon, The Putbacks e Karate Boogaloo.

De certo modo, parece que o jazz nunca foi tão popular como é hoje: vemos novas coisas a surgir — da América, Reino Unido, Austrália e por aí em diante — nos alinhamentos dos festivais que não costumavam programar este tipo de música. Porque é que achas que isto está a acontecer agora?

Houve um determinado momento em que apareceu uma nova geração de músicos mais jovens e fãs de música que descobriram a magia da música improvisada, do jazz, das suas harmonias e da sua colisão com os ritmos contemporâneos. Regressando aos 80s, a primeira vez que eu ouvi o Thrust, do Herbie Hancock, deixou-me completamente arrebatado. À medida que as coisas avançaram para os 90s, lembro-me de ficar largamente entusiasmado pelo facto daquele “som” se estar a infiltrar no hip hop, no drum & bass, na house music e, mais tarde, em cenas como o broken beat, etc. Com esta geração actual, parece que existe novamente essa vontade de tocar instrumentos ao vivo. Creio ser um dos períodos mais interessantes desde há já um longo tempo e estou constantemente impressionado com aquilo que os jovens músicos estão a criar.


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