A saxofonista Lakecia Benjamin tem vindo a afirmar-se com crescente força no panorama jazz internacional. E não apenas graças à intensa agenda de espectáculos que a traz agora a Portugal para uma apresentação no gnration, em Braga, já este domingo (3 de Novembro). Para lá dos concertos, tem-se envolvido em programas de curadoria de alguns festivais, apresentou-se no fantástico Tiny Desk Concert da NPR, foi nomeada para um Grammy… Sinais inequívocos de uma justa atenção que simplesmente recompensa uma imbatível ética de trabalho. Phoenix, o seu mais recente lançamento, é a mais visível materialização da sua particular visão artística.
Sobre esse trabalho escrevia no Expresso aquando da sua edição:
“Com produção a cargo da notável baterista Terri Lynn Carrington, Phoenix lista os contributos do pianista Victor Gould, do contrabaixista Ivan Taylor, do baterista EJ Strickland e do trompetista Josh Evans, que surgem na maior parte das faixas, e ainda, pontualmente, da percussionista brasileira Nêgah Santos, do trompetista Wallace Roney, Jr., da pianista e organista Anastassiya Petrova, do teclista Orange Rodriguez, do baixista Jamal Nichols, e, nas vozes, além da tutelar figura de Angela Davis, surgem ainda destacadas convidadas como a veterana cantora Dianne Reeves, a poeta e declamadora Sonia Sanchez e a cantora e produtora de hip hop Georgia Anne Muldrow. Há ainda que ressalvar as participações de duas verdadeiras lendas em papéis diferentes daqueles que lhes valeram os seus respectivos estatutos: a cantora Patrice Rushen que tanto brilhou nas décadas de 70 e 80 relembra-nos aqui que é também uma belíssima pianista de jazz; e o veteraníssimo saxofonista Wayne Shorter, membro do segundo grande quinteto de Miles Davis e fundador dos Weather Report, empresta a sua voz ao breve interlúdio ‘Supernova’. Questiona o decano prestes a festejar os seus 90 anos de idade: ‘Como é que um homem sabe sobre o que uma mulher está a pensar, a sentir? A vida quer criar…’
É, de facto, indiscutível que este novo álbum de Lakecia Benjamin celebra o poder criativo das mulheres e todas estas artistas surgem no alinhamento porque foi nelas que a saxofonista pensou ao escrever cada um dos temas: ‘Eu não conhecia nenhuma delas e tive que ser criativa quando as abordei: descobri onde elas vivem, arranjei os seus emails, combinei encontros no Zoom e em cada um dos casos tive que apresentar a minha ideia, defender a minha visão, explicar as minhas intenções, a história por trás do álbum, por trás da minha vontade de as incluir… E foi importante para mim que cada uma delas percebesse que não encarei isto como uma coisa pontual – tenho toda a intenção de manter estas relações, de as alimentar, porque eu tenho a sorte de estar viva ao mesmo tempo que elas’. É, precisamente, acerca de viver neste tempo que este álbum trata. O som que se escuta no arranque de Phoenix logo após o das sirenes é o de tiros. E é sobre esse cenário aural que Angela Davis nos relembra que ‘a esperança revolucionária permanece nas mulheres que foram abandonadas pela história. Não é assim que as coisas devem ser’, exclama a antiga prisioneira política. ‘Esta é a era das mulheres’. E esse é o mote seguido pelo alto de Lakecia Benjamin que em “Amerikkan Skin” parece insuflar ecos de oriente no seu discurso melódico enquanto sobrevoa uma vigorosa secção rítmica, combinando a sua visão de um jazz espiritual com uma pertinente dose de modernidade. Na conversa que manteve com o Expresso, Benjamin deu a entender que o que em Pursuance era visceralmente espiritual, em Phoenix é mais reflectidamente cerebral: ‘A Terri (Lynn Carrington) exigiu muito de mim. Normalmente gosto de arrumar as coisas em um ou dois takes, mas ela obrigou-me a dar o meu melhor, a ir para lá do momento, a regressar a cada peça e a ouvir o que tinha gravado antes, coisa que nunca fiz no passado por acreditar que a verdade vem do momento. Mas a verdade pode também vir da exploração.'”
Prova do quão transformativa é a experiência de palco, é o facto de Phoenix ter merecido, em Julho último, uma “reimaginação” ao vivo que teve direito a edição separada. É precisamente essa a possibilidade com que todas as pessoas que se deslocarem a Braga para presenciarem a apresentação de Lakecia no gnration se vão deparar: a de uma música em constante evolução, irremediavelmente atraída pelo futuro e decididamente comprometida com a vida.
Posso começar por lhe pedir que me fale dos músicos com quem está atualmente em digressão?
Desta vez, a formação é a seguinte: Dorian Phelps na bateria, Elias Bailey no baixo e Mike Key no piano.
Phoenix foi um êxito triunfante amplamente reconhecido na imprensa de jazz e não só. Agora que o disco já teve tempo para assentar, como é que vê o que ali fez?
Estou muito orgulhosa de tudo o que estamos a realizar continuamente. E estou grata por as minhas ideias, música e história estarem a ser escutadas e contadas em todo o mundo. Significa muito que esta música e a minha história tenham ressoado junto das pessoas e espero que continuem a fazê-lo.
A presença feminina no álbum com Patrice Rushen, Dianne Reeves, Sonia Sanchez, Angela Davis, Georgia Anne Muldrow, Terry Line Carrington, etc., é incrível e marca obviamente uma posição da sua parte. Estaremos perto do dia em que a questão feminina no jazz deixará de ser um problema motivo de debate por ser tão natural?
Na verdade, acho que essa é uma pergunta que se deve colocar aos homens do planeta Terra [risos].
Diria que as suas composições estão sempre a mudar de forma devido à experiência do palco?
Sempre que tocamos uma música ao vivo, ela ganha uma nova vida e personalidade. Portanto, elas estão constantemente a evoluir e a ser transformadas todas as noites para esse público em particular.
Viajar por todo o mundo, para um músico profissional como você, tem provavelmente tanto de bênção como de fardo. Como é que lida com as exigências da sua agenda?
Tento concentrar-me no meu bem-estar mental e na minha saúde física. Certifico-me de que estou com uma mentalidade saudável para saudar adequadamente o meu público e certifico-me de que estou fisicamente apta para aguentar os dias de viagem extenuantes. Para além disso, lembro-me apenas de estar grata por ter a oportunidade de expressar a minha mensagem e a minha música em todo o mundo.
Estava a verificar os seus créditos online e encontrei o seu nome ao lado dos de Marshall Allen e Noel Scott numa gravação ao vivo dos U2 no Apollo Theater, há uns anos atrás. Confesso que não sabia e isso apanhou-me de surpresa… O que é que recorda dessa experiência?
Sim, fui convidada pelos U2 para fazer parte da secção de metais e eles disseram-me que também tinham convidado toda a secção de metais da Sun Ra Arkestra! Os U2 queriam filmar um concerto intimista no Apollo Theater. É engraçado porque o Apollo é um teatro enorme no Harlem, em Nova Iorque, mas acho que para as estrelas do rock é íntimo [risos]. Nós fizemos o concerto e depois fomos todos para a after party e ficamos a noite toda com Marshall Allen, Bono e companhia! Nunca me vou esquecer disso.