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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/05/2024

Música que apela à mudança a caminho dos palcos nacionais.

Lætitia Sadier: “Precisamos de estar em sintonia se queremos construir um mundo novo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/05/2024

A breve — mas, ainda assim, séria — conversa mantida com Lætitia Sadier antes da sua passagem por Portugal foi algo difícil de resolver em termos logísticos, facto decorrente de se encontrar actualmente em digressão, naturalmente, mas também — e igualmente compreensível — desta coisa de troca de palavras breves em jeito de antecipação de concertos não ser, provavelmente, a sua actividade favorita. Ainda assim, Lætitia atende-nos com audível ânimo enquanto o seu tour bus avança por terras de Espanha, com a chamada a ser várias vezes cortada e logo depois retomada sempre com enorme simpatia e compreensão.

Ao longo de uma muito preenchida carreira que se estende já por mais de três décadas, Lætitia Sadier tem-se distinguido pela sua audácia na abordagem de questões complexas e pela sua inabalável defesa da auto-determinação e emancipação de formas conscientes e inconscientes de autoridade. Essa ideia foi a base sobre a qual co-fundou os sempre muito celebrados Stereolab. Sadier continuou esta trajetória com Monade e os seus trabalhos a solo, cada álbum servindo como uma crónica de uma muito pessoal viagem através do tempo, espaço e experiências colectivas.

Em Rooting For Love, Lætitia Sadier oferece uma narrativa íntima e ultra-cerebral sobre um mundo em fluxo permanente. Com arranjos intrincados, tanto do ponto-de-vista instrumental quanto vocal — há até recurso amplo ao colectivo The Choir —, Lætitia reforça a ideia de que é uma compositora de imaginativos recursos que entende de uma forma muito particular a delicada arte de construção de canções. É esse o trabalho que traz a Lisboa (ZDB, sábado, dia 1) e Braga (gnration, domingo, dia 2) com uma banda em modo concentrado com que aborda um reportório complexo e sofisticado. Comme il faut.



Está neste momento em Espanha, não é? Começo por lhe perguntar: como está a correr esta digressão?

Está a correr muito bem. Começámos em França e tem sido incrível. Encontro gente simpática em todo o lado, plateias entusiasmadas… Na noite passada estivemos em Barcelona. Estamos muito entusiasmados e as coisas estão a correr bastante bem. Na América do Norte toquei a solo. Na Europa ando a tocar com esta banda, o The Source Ensemble, o que é muito bom, pois o meu álbum Rooting For Love foi escrito para uma banda de quatro elementos em que todos tocam instrumentos e cantam, portanto formamos um coro de quatro vozes, em que todas interagem umas com as outras.

Sobre esse álbum, pode guiar-me um bocado pelo processo que a levou até à sua composição? O seu último disco, Find Me Finding You, tinha saído em 2017, entretanto houve a pandemia de COVID-19, as crises climáticas e toda esta série de conflitos à volta do mundo. Como é que tudo isto contribuiu para a criação deste trabalho?

Bem… Eu diria que o processo de criação deste disco já estava em curso ainda antes da pandemia, do Brexit e do mundo se estar a despedaçar. Nessa altura já estávamos a sentir algo de desastroso, algo com ecos de fim da civilização, uma espécie de grande colapso, de alguma forma. Nesse colapso há sempre pessoas que tentam tirar partido da situação, e é exactamente isso que se está a passar neste momento. Uns roubam e somos nós quem tem de pagar por isso. Conseguimos ver isso mesmo no grande sistema dos oligarcas, que estão a ficar cada vez mais ricos, enquanto que os trabalhadores vão sofrendo mais e mais, ficando cada vez mais pobres. Portanto, isto não é algo que surgiu do nada nos últimos 5 anos, mas sim algo que já estava em curso, só que agora parece que estamos a chegar ao fim da linha, pois a situação não pára de piorar. Além disso, também estamos a ter este confronto com o nosso planeta, que está numa situação muito instável, com actividades sísmicas, as erupções solares a bombardear-nos. O magnetismo da Terra está a mudar. Por isso, estamos numa fase drástica de transição, e as nossas acções são muito determinantes nessa equação. No álbum anterior, o meu pensamento estava nessa questão do fim da civilização, e eu acho que as pessoas agora aceitam melhor essa ideia, porque está muito mais palpável agora. Mas isso lança outras questões: O que é que fazemos agora? Caímos no desespero? Ou percebemos o quão poderosos conseguimos ser? Vamos precisar de todo esse poder para construir um mundo novo quando este desaparecer. Somos nós quem tem de plantar as sementes para um mundo novo, uma nova civilização.

É engraçado estar a falar sobre esse assunto, porque eu acabo de me mudar de uma zona costeira perto de Lisboa para uma localidade no interior, já bastante próxima da fronteira com Espanha. De alguma forma senti que precisava de fugir da “civilização”…

As pessoas tornaram-se mais egoistas?

Sem dúvida.

Isso nunca é bom para a nossa evolução. E nós temos que rever isso, porque deixa de ser sustentável. Chegámos a um momento em que vamos mesmo ter de cooperar uns com os outros, caso contrário isto tudo vai tornar-se tão caótico, ao ponto já nem sequer dar para gerar mais vida, como no Mad Max ou algo do género. E isto é um assunto muito antigo. Há décadas que andamos a ouvir aquele discurso de “habituem-se a isto, pois é a nossa nova realidade.” Eu acho que nós podíamos ter uma outra realidade, só que isso depende de nós como um todo, da nossa capacidade de criar essa realidade melhor.

Isso é bem verdade. Mencionou a ideia de cooperação. É precisamente assim que um coro funciona, e a forma como você utiliza o coro faz-nos lembrar como a comunidade tem um valor preciosíssimo, principalmente neste momento complicado que atravessamos.

Eu costumo dizer que isto é um álbum de propaganda [risos]. Sou eu a apontar diferentes narrativas que são bem mais positivas para a nossa vida do que aquelas que andam por aí, sempre tão negativas, destrutivas e sombrias, que apenas servem as forças com as quais eu não me sinto alinhada. Eu não concordo com isso e nem quero perder mais energia com elas, daí ter tomado esta decisão de mostrar a minha visão, que é possível de alcançar se nós assim o decidirmos enquanto colectivo. Só que o colectivo começa sempre pelo individual, e todos precisamos de estar em sintonia se queremos construir um mundo novo. Temos de nos curar, pois estamos muito inclinados em repetir os padrões que herdámos. Terminar com esta civilização traria algo positivo, pois ela tem estado a ser suportada pelos pilares do patriarcado. Seria bom se isso colapsasse, pois traria equilíbrio entre as forças masculinas e femininas.

Isso seria espantoso.

Fico muito feliz por concordar. É uma ideia que precisa de ser bastante trabalhada, mas eu consigo ver algum progresso. As pessoas já se começam a questionar e a trazer esse assunto para a discussão. E eu noto que tem havido uma ascensão do feminino, de mulheres que reclamam o seu poder, que formam irmandades em vez de se olharem como rivais. Existe esta narrativa antiga de que as mulheres são conflituosas e eu vejo isso a mudar, tanto ao meu redor como mesmo dentro de mim. Isso é muito positivo e cria uma força benéfica.

Ou seja, vê como algo eminente esse colapso da civilização, mas consegue ver também coisas boas a surgirem daí. Antes de se erguer, é preciso derrubar, é isso?

Sem dúvida. Porque qualquer colapso gera sementes para algo novo, portanto temos de nos focar nisso, apontar as nossas energias nessa direcção, mais do que ficar a chorar pelo colapso em si. Colapsos podem ser muito feios, especialmente nestes contextos de guerras.

Vamos mudar um pouco o tópico. Eu estava a ver todo o trabalho que tem feito fora do seu projecto a solo, e o seu nome tem aparecido ao lado de alguns artistas não tão expectáveis, diria eu. Desde o Tyler, The Creator aos Pearl & The Oysters ou a Vanishing Twin. O que eu gostava de saber é: quando o seu telefone toca com um desses convites, o que é que a leva a aceitá-los?

Eu não sei. As coisas são muito orgânicas. Não existe grande pensamento por detrás desse processo, é algo mais emocional. Se eu me sentir emocionalmente responsiva a um convite ou a uma oportunidade, então eu sigo esse instinto. Normalmente, o que dita a minha resposta é a música e a razão pela qual determinada pessoa quer colaborar comigo. Recentemente criei um grupo com duas amigas, a Marie Merlet (aka Iko Chérie) e a Blanca Regina, e se eu lhe dissesse como é que isto surgiu… Foi quase um milagre! Fez tudo tanto sentido. Temos feito música improvisada. Isto nasceu de algo misterioso, juntamente com um desejo que tínhamos em fazer algo juntas. De repente, aconteceu. Não houve aquela coisa de dizer que sim ou não. O Tyler, The Creator perguntou-me se eu escreveria uma parte para uma das suas canções e eu nem o conhecia assim tão bem, estava apenas consciente da constelação de músicos que ele tem à sua volta e que existe um certo aspecto niilista e cool na sua música. Então eu fui ver melhor, descobri que ele tem milhões de visualizações e que é um tipo que se enforca a si mesmo [risos]. Mas tudo bem. Ele enviou-me o tema e eu gostei. Ele disse-me: “Podes escrever o que quiseres.” E eu gostei logo da ideia [risos]. A coisa funcionou e ele pagou-me pelo trabalho, o que não foi mau. Mas não sei… Eu não me considero uma pessoa oportunista. A colaboração que eu mais guardo junto ao coração foi com o Giorgio Tuma, um compositor italiano que praticamente ninguém conhece [risos]. Fizemos música muito boa. Levo-o no coração. Muita gente me fala das colaborações com os Blur ou o Tyler, The Creator, mas elas não significaram tanto para mim quanto aquilo que fiz com o Giorgio Tuma.

Vou mesmo ter de ir procurar por essa colaboração depois de escutar a forma como a descreve. Termino esta entrevista com uma pergunta sobre Stereolab: existem planos para a banda num futuro previsível?

Não andamos a falar sobre nada neste momento.


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