LP / Digital

Kyron

Dreaming Eden

Belbury Music / 2023

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 14/06/2023

pub

De forma mais ou menos discreta, João Branco Kyron tem-se afirmado como uma das mais criativas e prolificas mentes da electrónica que por cá se move fora das pistas de dança. O músico que fundou os Hipnótica e se aventurou a solo como O Maquinista provou ter muitas vidas artísticas quando ajudou a transformar os Beautify Junkyards num caso sério da nossa pop mais exploratória e fantasiosa, logrando até alojar a parte mais recente da discografia desse projecto num dos mais respeitados selos internacionais da cena hauntológica – a britânica Ghost Box. A isso acrescem ainda edições a solo nas também britânicas Miracle Pond e Library of the Occult e um álbum em dupla com António Watts (companheiro dos Beautify Junkyards) – assinado como Hidden Horse – na lisboeta Holuzam. Tudo isso até 2022. Já este ano, Kyron lançou mais um projecto em nome próprio, Dreaming Eden, desta vez na Belbury Music (selo satélite da Ghost Box).

Pode dizer-se que pouco ou nada se altera no mapa de referências mais directas de João Branco: Dreaming Eden prossegue a aturada investigação dos campos em que a electrónica pioneira, o esoterismo hauntológico, a espiritualidade kosmiche e a fantasia e funcionalidade da library music se cruzam. Com produção esparsa, com forte investimento em melodias que soam sempre como se tivessem sido resgatadas a uma qualquer memória televisiva perdida dos anos 80, o álbum tem uma textura orgulhosamente analógica, toda ela plena de grão magnético, combinando pulsares rítmicos pós-kraftwerkianos com camadas harmónicas difusas que parecem sampladas de velhos documentários com bandas sonoras criadas a partir de manipulação de sons concretos em fita pelo Radiophonic Workshop.

Explica-nos Kyron que a inspiração para a aura onírica deste trabalho veio da leitura de A Dream of Wessex, uma novela dos anos 70 (pois claro…) assinada por Christopher Priest em que se abordava a então nascente noção de realidade virtual. Claro que nada data tão bem o passado, como reza o adágio, quanto as suas projecções do futuro. E imaginar como seria 1984 a partir de 1949 ou 1999 a partir de 1973 pode agora parecer, da confortável posição que ocupamos neste estranho presente, um pouco ingénuo ou, lá está, datado. Mas há igualmente nessas distópicas ou utópicas fantasias algo de profundamente humano, no sentido em que cada uma dessas projecções procurava lidar com pesadelos e sonhos gerados pela aproximação a uma velocidade cada vez maior do inevitável futuro – como aliás tão bem explicou Alvin Tofler em Future Shock.

Dream of Wessex inspirou então Kyron a criar esta espécie de banda sonora para o invisível filme que projectou na sua imaginação e o resultado é uma música de lisérgica suspensão que nos enleia num torpor hipnótico que tem o condão de realmente nos transportar para uma dimensão alternativa. Para tanto basta fechar os olhos e abrir a mente. Esse paraíso perdido encontra-se facilmente na dolente música criada por Kyron com as mesmas ferramentas electrónicas que em tempos serviram para criar música para futuros mais ou menos improváveis feitos de quintas dimensões e luas a vaguearem pelo espaço profundo. Talvez os velhos sintetizadores sejam máquinas de viajar no tempo capazes até de nos levarem até eras e lugares que nunca existiram realmente. Só nos nossos mais rebuscados sonhos.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos