LP / Digital

Kyle Kidd

Soothsayer

American Dreams Records / 2022

Texto de Rui Eduardo Paes

Publicado a: 16/08/2022

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Sim, há uma espiritualidade queer, como em Portugal sabemos pelo caso da performer Rafaela Jacinto. Ou seja, uma experienciação da fé e da queerness que de tão entrelaçada surge como algo de indistinguível. No caso de Kyle Kidd a construção do seu amor-próprio, da sua auto-estima, por meio de uma identificação não-binária (aceita todos os pronomes, neutro, feminino e masculino), tem sido vivida por uma auto-análise que é também uma questionação do cosmos e de um absoluto divino que está enraizado na história da religião afro-americana, no gospel baptista, nos espirituais.

É isso que o álbum de estreia de Kyle Kidd nos anuncia, e da melhor maneira. Soothsayer é soul, é funk, é house e é techno com base percussiva africanista, estruturas repetitivas, muita electrónica, mas também instrumentos como a guitarra, o violino, a harpa, a flauta, o trombone e o trompete. E uma voz que encanta, daquelas que podemos ouvir sentades na sala, a dançar numa discoteca ou com fones na praia. O mix é de extremo bom gosto, com bons arranjos e uma óptima produção de estúdio. E se a música nos faz mexer ou concentrar-nos nos seus muitos recursos, as letras elevam-nos, dizem-nos coisas que também sentimos, também com ela partilhamos, e transportam-nos para o mundo que gostaríamos que este fosse e teima em não ser.

O álbum contém canções mais picadas e rítmicas (por exemplo, “TMS” e “Glass Dance”) e baladas sonhadoras (como a excelente “Inside My Love”, que vai direitinha para o olimpo da melhor soul para dançar agarradinhe com quem amamos). Tanto umas como as outras são de uma leveza, de uma vulnerabilidade que nos surpreende a cada momento. Nada se impõe, é como se aderíssemos de um modo muito simples e natural aos temas, deixando-nos ir com estes. Uma favorita minha é “Dreama”, mais suavemente arrebatadora do que alguma coisa que tenha vindo já da dream pop.

E a voz, a belíssima voz de Kyle Kidd. Uma voz que, neste disco, ela/e/x diz que “começou por batalhar com a necessidade de ser definida” pelas suas “velhas cicatrizes”, mas para concluir que “cada momento de conquista” é, no resultado que agora podemos ouvir, “uma iniciação” ao seu “porvir”. Precisamente aquilo que uma pessoa LGBTIA+ mais deseja para si, uma redenção queer. Tornou-se no meu disco de Verão, numa ferramenta para ser-eu-comigo-e-com-o-universo. Algo de profundo e a convidar-nos para um mergulho no nosso interior e em tudo o que nos rodeia, portanto, mas de uma forma doce e prazenteira.


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