pub

Fotografia: Kriol Jazz
Publicado a: 10/04/2024

Diferentes grooves desaguaram na cidade da Praia ao longo de 3 dias.

Kriol Jazz’24: escutar o mundo além fronteiras

Fotografia: Kriol Jazz
Publicado a: 10/04/2024

Num dos depoimentos que se podem escutar na Fundação Amílcar Cabral, na cidade da Praia, Iva Cabral, a historiadora e filha do dirigente da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, insiste na ideia de que em Cabo Verde, como em geral no continente africano, as manifestações culturais e musicais não podem ser compreendidas sem se entender também o contexto histórico e político em que nasceram, no qual se desenvolveram e no qual se expressaram. “A cultura é um dos filhos da história”, afirma a investigadora, embora seja também um instrumento da sua construção. No caso do continente africano, o desenho que as potências coloniais europeias impuseram ao território por razões relacionadas com os seus próprios interesses económicos e estratégicos definiu largamente as fronteiras com que se haveriam de erguer os futuros Estados-nação pós-independências, influenciando linhas de demarcação entre “países”, “povos” ou “regiões”. Só que a cultura do continente, e em particular a sua música, para além de refletir a construção desses imaginários nacionais, igualmente os desafiou, procurando outro tipo vínculos históricos, culturais e espirituais, formados para lá das fronteiras e que sempre imaginaram outros mundos possíveis.



[DO VÍNCULO DE SALIF KEÏTA À IMAGINAÇÃO DE STEVE COLEMAN]

Um dos hinos maiores dessa procura foi “Yamore, tema que em 2002 juntou o Salif Keïta e Cesária Évora, o Mali e Cabo Verde, num encontro que perdurará bem para lá da vida dos seus intérpretes, e que se tornou expressão de um lugar espiritual partilhado pela música. Socorrendo-nos das palavras cantadas por Cesária, falamos de um lugar que só pode ser imaginado graças à fé de que um dia o amor viverá sem medo e com confiança, num tempo mais luminoso, onde o olhar das crianças poderá de novo brilhar de inocência. A força desse vínculo cantado, tão atual à época como nos dias que correm, parece ser uma das explicações para que a presença de Salif Keïta tenha sido o ponto alto da edição de 2024 do Kriol Jazz, que aconteceu na cidade de Praia, em Cabo Verde, entre os dias 4 e 6 de Abril. 

O músico subiu ao palco com uma atitude soberana e de vestes douradas, perante uma plateia expectante e que não terá saído defraudada de um concerto com uma excelente qualidade de som e erguido por uma magnífica banda de 12 elementos, sempre empenhada em sustentar a sua voz quente e envolvente. Apesar dos 74 anos de idade imporem alguma contenção, continua a haver em Salif Keïta uma ideia de espessura sonora, fibrosa e preenchida que o seu timbre procura sempre servir, como se fosse mais um dos múltiplos recursos melódicos da sua cuidadosa orquestração. Uma ideia que se traduz num som vinculado a uma tradição reinterpretada em virtuosos solos de kora, n’gonie ou bolon, no inebriante ritmo dos djembes, mas que se mantém profundamente contemporâneo, num balanço elétrico ancorado em linhas de baixo vibrantes e numa cadência rítmica profundamente influente em muitas abordagens que hoje conquistam o mundo da pop a partir de vários países africanos. 

De resto, não há músico que não se destaque na formação de Keïta, onde há lugar para todos brilharem, embora o protagonismo individual seja sempre parte de um todo, numa clara recusa em utilizar os solos como mera demonstração do virtuosismo, do barroquismo ou da excecionalidade dos solistas. Ao inverso, Salif Keïta parece mais empenhado em guiar-nos para um gesto coletivo para o qual todos os músicos confluem, inclusive o próprio cantor, que mesmo quando ocupa o centro da cena, nunca monopoliza complemente o protagonismo. 

Seduzidos pela viagem, restou-nos seguir as paragens por vários momentos da sua longa discografia, numa narrativa alimentada por uma secção rítmica magnetizante, por linhas melódicas profundamente sentimentais e por uma interpretação vocal que não perdeu a clareza e a emoção numa numa hora e meia de concerto imaculado e que quase se dirigiu à transcendência. Dizemos “quase” porque o longo percurso de Salif Keïta também se reflete no olhar do público que parecia estar mais aliciado pela ideia de um mito a ser contemplado, que pela vivência plena da música que este dirigia. A idade e a sua história também trazem destas coisas, mesmo para alguém que passou o concerto empenhado em partilhar o protagonismo, passando despercebido em vários momentos, nomeadamente no final do alinhamento, onde a entrada de uma bailarina demasiado entusiasmada com a sua própria performance quase fez com que o cantor se perdesse na confusão, comprometendo o culminar de uma narrativa sonora tão cuidadosamente construída. Felizmente não foi caso para tanto e o abraço de despedida ao músico não ficou comprometido, agraciado com um longo e sentido aplauso do público e com a oferta de uma t-shirt de Cesária Évora, que o músico diz ter sido a artista com mais inteligência musical com que se cruzou na vida.  

Quem também trouxe um sentido elogio à música como espaço coletivo foi o saxofonista Steve Coleman que em nenhum momento se procurou destacar do quarteto que juntou para alimentar uma sonoridade empenhada em não seguir rótulos, géneros ou fronteiras estilísticas. Pelo contrário, a irreverência do trompetista Jonathan Finlayso, o groove do baixista Rich Brown e a liberdade do baterista Sean Rickman, destacaram-se acima do próprio Coleman, que parecia mais empenhado em garantir um espaço de tranquilidade onde a improvisação pudesse florescer livre e despreocupada. E a tranquilidade foi total, já que o coletivo fez a música que quis, e como quis, mesmo com parte do público em debandada e pouco disponível, depois do grande momento de Salif Keïta, para se entregar a uma proposta sonora que implicava uma comprometida entrega ao som e ao seu potencial imaginativo. 

Fez-se, ainda assim, e apesar do contexto, uma muito prazerosa viagem nas filas da frente do palco, onde se pôde escutar, e com um som mais uma vez irrepreensível, o balanço dramático destes músicos metódicos, mas ao mesmo tempo destinados a não em seguir regras, fixar estilos ou cumprir expectativas. Tratou-se, acima de tudo, de uma evocação da música ao vivo como um instrumento de liberdade, ainda que dentro de uma estrutura a partir da qual se tentou explorar uma imaginação que só podia ser vivida naquele momento e naquele lugar, numa partilha efémera e sentida da sua viagem. Não foram muitos, é certo, mas alguns dos presentes terão levantado um pouco os pés do chão. 



[DA VERTIGEM DE HERMETO PASCOAL À DESPEDIDA ELÉTRICA DE SANTROFI]

No derradeiro dia da edição de 2024 do Kriol Jazz, a 6 de abril, todas as atenções se dirigiram para Hermeto Pascoal, uma lenda e um mito da música contemporânea feita a partir do Hemisfério Sul e que atraiu um número considerável de pessoas a um festival nada barato para o custo de vida local. Longamente agraciado mal entrou em palco, Hermeto sorriu cumplicemente para a plateia e dirigiu-se para a direita do palco, onde se sentou tranquilamente enquanto a banda preparava o ataque que se seguiria. E foi sentado que esteve na maior parte do concerto já que, infelizmente, ainda não se conseguiu inventar um milagre para prolongar as capacidades físicas de quem, aos 87 anos de vida, celebra uns impressionantes 74 anos de carreira.

Ao longo do concerto, Hermeto não esconde a fragilidade, preferindo deixar o protagonismo para os músicos que o acompanham, e só em momentos espaçados avança firme para curtas, mas preciosas incursões ao teclado. Para lá desses momentos, o mestre prefere ocupar um outro papel na orquestração, transfigurando-se numa espécie de maestro espiritual, olhando atento os músicos, dando-lhes gás, fogo e confiança para que juntos possam fazer as suas composições levantar voo.

Quanto aos instrumentistas, o seu brilho é total, com momentos realmente impressionantes, vertiginosos e que nunca perderam o prazer efémero de uma desbunda sonora onde florescem os solos inflamados dos sopros de Jota P., a rítmica diabólica de Ajurinã Zwarg, as deambulações alucinantes do baixo de Itiberê Zwarg, a consistência e as investidas pulsantes de André Marques no piano, e claro, a versatilidade de Fábio Pascoal, mestre da percussão, capaz de com tudo produzir ritmos, do ferrinho ao pandeiro, dos apitos aos pilões, e até com uma vaca e um porco de borracha.  

Com Hermeto ao leme, tudo pode ser música, em todo o lugar e a qualquer momento. Há nestas composições uma radical recusa do cânone, do standard, do conforto do expectável, para a contrapelo apostar tudo na liberdade da vertigem. Trata-se, acima de tudo, de uma corrida eufórica e tranquila em busca de um som total, que vem de cima e de baixo, da frente e dos lados, da eletricidade e da organicidade, das madeiras e das peles, das vibrações e dos sopros, tudo junto, misturado e organizado por um teclado carregado de um psicadelismo paradoxalmente terno e alucinante. Com uma intensidade permanente, o músico abraçou-se a uma banda que não tem medo da queda, e onde todos confiam na segurança do “Bruxo”, que telepaticamente guia a jornada e que parecia menos entusiasmado com a demonstração da sua técnica livre e desprendida, do que com o prazer de ver as suas composições voar nas mãos da turma que convocou para junto de si. 

Num périplo em que o jazz se apresenta intoxicado de tropicalismo, e com explicitas referências à música popular brasileira, há também neste som um ideal cósmico e transcendente que Hermeto ajudou a construir desde a segunda metade do século passado, que trespassou furiosamente as américas com um sentido de liberdade em profunda oposição ao autoritarismo com que a realpolitik esventrou as veias abertas do Sul Global. Dos anos 50 para cá, perderam-se muitas lutas, ganharam-se outras tantas, mas o que é certo é que o capitalismo sónico nunca conseguiu domar verdadeiramente as suas margens, muito menos neutralizar a dissidência sonora que se reflete nesta música tocada olhos nos olhos e que se continua a afirmar como um gesto coletivo capaz de unir o corpo e a mente, a materialidade e espiritualidade, o duradouro e o efémero, o lugar do encontro e o prazer da partida. Hermeto já não vai para novo, mas continua cheio de vida. Que o povo lhe continue a dar a bênção para que, até ao fim dos tempos, nos continue a ajudar a seremos mais livres. 

Quem depois do concerto de Hermeto Pascoal abandou o recinto, e ainda foram bastantes, não sabe que perdeu um dos melhores concertos do festival e que tinha tudo para dar origem a uma euforia coletiva, não fosse o largo espaço entre as pessoas impedir a partilha de algum suor. Tirando na frente do palco, claro, onde se concentrou quem sabia o que se iria seguir. Falamos de Santrofi, do Ghana, um dos projetos coletivos mais influentes do país e que hoje percorre o mundo com a sua inventiva abordagem ao highlife e ao afrobeat. 

Ocupando o palco com ganas de não deixar nenhuma espinha por estremecer, o coletivo liderado por Emmanuel Ofori foi irrepreensível na energia contagiante com que interpelou o público que decidiu ficar até ao fim e seguramente não se arrependeu. O grupo soube gerir o tempo e o ritmo de um concerto bem planeado, mas não menos genuíno, numa entrega total entre os músicos que procuraram sempre um canal de comunicação com quem os escutava. Trazendo sobretudo o reportório de Alewa, um dos grandes discos 2020, foram incansáveis de início ao fim, garantindo uma despedia vibrante e eletrizante, que colocou toda a gente a dançar e a projetar um ansiado regresso à cidade da Praia no ano 2025. Até já!


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos