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Fotografia: Filipa Aurélio
Publicado a: 16/12/2021

Duas mentes a projectarem-se na água.

KMRU & Polido no MAAT: pôr este rio em cima

Fotografia: Filipa Aurélio
Publicado a: 16/12/2021

Uma tarde solarenga em Dezembro é sempre bem-vinda, especialmente se calhar a um domingo, o sagrado dia do “Não Fazer Nada” (para quem pode). É uma óptima oportunidade para ir passear à beira-rio, visitar um museu, ouvir um concerto descontraído – ou, neste caso, tudo isso ao mesmo tempo, que foi o que o MAAT, em Lisboa, nos proporcionou no passado domingo. 

Através do Diálogos, um programa de música com a curadoria de Joana Seguro e Carin Abdulá que nos apresenta uma série de colaborações multi-artísticas numa resposta ao isolamento obrigatório que andamos a experienciar há quase dois anos, o queniano KMRU juntou-se ao português Polido para, juntos, emergirem numa exploração aquática pelos sons escondidos e ignorados do Rio Tejo. Os dois artistas sonoros, que partilham um ouvido apurado e uma atenção acutilante ao detalhe, mostraram-nos o resultado de um residência que vai de total encontro aos conceitos abordados por ambos: o estudo da memória, do arquivo, do sample enquanto criação de uma história por trás de cada projecto, da relação entre músico, ouvinte, o espaço, o momento, e o som. Afinal de contas, não havia outra forma deste projeto acontecer se não fosse nas margens deste rio, tornando-se, ao mesmo tempo, o próprio espaço a inspiração principal para a residência.

O concerto decorreu na Central, o edifício em tijolo anteriormente conhecido como Museu da Eletricidade, em frente de três janelas enormes com vista para o Tejo. Os músicos, de costas para estas, entraram em simultâneo com fumo a criar uma ligeira névoa na sala. Começávamos assim esta jornada digital por este rio acima, onde a paisagem sonora que o preenchia era recortada e modulada para se desdobrar nas mais diversas camadas, desde glitch a drones, misturando sons sintetizados que em nada se parecem com a sua fonte até texturas orgânicas e puras como vento e pássaros ou pratos de bateria e ambulâncias – apesar destes últimos aparecerem raramente. Em contraste com a luz brilhante e celestial que vinha pelas janelas, o que ouvíamos dentro da Central tinha uma energia dissonante e tensa, parecendo-se focar mais nas relações entre os diferentes timbres que criaram que nos tons destes, criando de certa forma uma própria paisagem sintética.

Essa noção de paisagem era fortalecida pelo constante andamento do concerto: não nos sentíamos presos dentro de um loop enquanto se desenvolviam ideias, como ouvimos muitas vezes na música de KMRU, mas sim a progredir constantemente e a deixar rapidamente sons para trás, que davam espaço para que outros novos aparecessem. A acrescentar a isso, era ainda possível vermos pelas janelas a vida do Tejo a acontecer, desde um enorme cruzeiro que preencheu o fundo todo durante um minuto ao fogo de artifício que vimos ser lançado na outra margem.

À medida que o sol se punha e a sala escurecia, as principais fontes de luz passaram a ser internas e o ambiente tenso foi tornando-se relativamente mais relaxante e contextualizado com a energia do espaço. As pessoas que se sentaram no chão estavam agora deitadas numa tranquila meditação de olhos fechados, enquanto Polido e KMRU terminavam a sua viagem, que não podia ter terminado senão com dois dos sons mais emblemáticos do rio: a água, que até agora não tinha sido utilizada (um excelente desafio bem concretizado pelos artistas), e a Ponte 25 de Abril, que fora já abordado anteriormente pelo lendário Bill Fontana numa das primeiras exposições a passarem pela Sala Oval do MAAT.

Terminado o concerto, o relaxamento dos nossos corpos não impediu palmas fervorosas de quem presenciou um momento tão único. Vimos, sentimos e ouvimos um elemento tão presente nas nossas vidas (que bem merecia esta ode) pelas mãos de um dos artistas experimentais mais cativantes no panorama nacional e um dos próximos grandes pesos pesados da música ambient exploratória do mundo. 

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