Kieran Hebden é um mestre da música eletrónica. Como Four Tet, assinou nas últimas duas décadas vários trabalhos que definiram géneros e abriram caminhos. Muitos. Pause, Rounds e Everything Ecstatic saíram entre 2001 e 2005. Bastavam. Depois há Pink e New Energy, ambos discos que, não fossem eles deste homem, haveriam de se destacar em qualquer discografia. Kieran é profícuo. Lança de dois em dois anos. E nunca são maus discos. Já é assim há quase 30 anos. Mestre.
Já este ano editou o álbum Three, mas isso é conversa para outros sítios. A alguns não basta uma discografia sólida num género de música, é preciso infectar e deixar-se aprisionar noutros universos. Arriscar. Quando assina em nome próprio, Kieran vai para outros mundos. Foi assim quando colaborou com Steve Reid entre 2006 e 2008. Editaram três discos possivelmente desiguais, mas ainda assim relevantes. O primeiro destes, gravado de rajada ao longo de um dia, sem overdubs, é particularmente feliz. Chama-se The Exchange Session Vol. 1. Há também uma obra em trio ao vivo, destes dois com Mats Gustafsson, onde o jazz se encontra com a electrónica como em mais nenhum projecto. Chama-se Live At The South Bank, é de 2011. Menos de um ano depois deste concerto, Steve Reid faleceu.
Curiosamente, há um conjunto de três maxis de música de dança em que colabora com Burial e Thom Yorke, onde Kieran Hebden assina como Four Tet. Supõem-se que a fronteira se perdeu na pista de um clube… Mas lá está, isso é conversa para outros sítios.
Em 2023 sai um single de Kieran Hebden com William Tyler, o guitarrista e compositor dos Lambchop e dos Silver Jews. Tyler é um músico de “country”. Com muitas aspas porque também é da folk. E do indie rock. Jamais da pop. Desse single, “Darkness, Darkness” é a banda sonora perfeita para um western futurista filmado por David Lynch. Tem uma voz feminina entre a Motown e o James Bond e tem a guitarra de Tyler em modo psicadélico. Já “No Services” começa atmosférico, quase nu, e nunca daí sai. Sem desprimor, soa a exercício de contenção a pensar em lado B.
E eis quando então, no último mês de Setembro, sai um novo disco deste par, 41 Longfield Street Late ‘80s. Temos uma morada e um período específico na vida de ambos. Começa com “If I Had a Boat” de Lyle Lovett. O original é uma xaropada country-chunga, muito comum nos tais anos 80. Lê-se que ambos, quando jovens, ouviram muitas vezes este tema com os seus pais. Ninguém merece. Mas tem piada terem transformado os seus três penosos minutos num belo exercício atmosférico de 11 minutos. Todo o LP, aliás, é marcado por este som ambiental. Já quando gravava com Steve Reid, Kieran soava a um certo Eno, mais na sonoridade que no detalhe. E William Tyler não é Harold Budd, é mais pés na terra, mais rural e menos minimalista. Em 2025 não lhe reconhecemos os Lambchop, mas facilmente o ouvimos no palco country de uma feira na América profunda. É doce a sua viola.
41 Longfield Street Late ‘80s é um disco que quase não se dá por ele. Não está aqui para se impor, não quer incomodar. Quando ouvido ao longe parece plano, mas no microscópio as texturas de Kieran são de muitas camadas. Layers e layers de clips trabalhados exaustivamente. É a árdua labuta de quem almeja soar natural porque o aparentemente imperceptível assim o exige. Por volta dos 8 minutos da primeira faixa, Kieran toca e quase nem se nota. Ou melhor, temos que estar atentos para perceber que estão lá os seus fraseados.
“Spider Ballad” é o único momento Four Tet neste álbum. Começa com a batida lá ao fundo, depois, já na nossa cara, convida o pézinho a bater. Tyler está irreconhecível. Onde é que começa a guitarra e acaba a máquina?! Sabemos que isso não interessa, mas deixa a pensar. Esta honrosa exceção maquinal pede remistura na Tresor ou na Kompakt. Tem qualquer coisa de techno, não ouvem?
Depois de um interlúdio chega “When It Rains”, e é Tyler com um cheirinho de Hebden. Há barulhinhos ocasionais e produção cuidada, mas é a guitarra quem mais ordena. Apostamos que é Hebden quem naquele último minuto desmultiplica Tyler. Já “Timber” começa monotemático mas desenvolve-se num dedilhar aprazível. Há uma delicadeza no modo subtil como Tyler vai e vem que amacia o espírito.
Depois de mais um interlúdio em homage aos gloriosos dias da rádio — lembrem-se que estamos em finais dos anos 80 — entra “Secret City”. Primeiro as texturas de Hebden, depois o tema na viola de Tyler. Tudo simpático. Se calhar é demasiado redondo para alguns, mas deixamo-nos ir. Em oito minutos que passam a voar, distinguimos os efeitos de um nas cordas do outro. Não analisar em demasia permite viajar e ver onde nos levam. Hebden e Tyler fazem-nos chegar seguros, sem atropelos nem arrepios. Thanks for the ride, folks.