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Fotografia: anELogico
Publicado a: 23/09/2021

Bem-vindos à Tinderland.

Kenny Berg: “A mudança nunca é boa ou má. É o que é”

Fotografia: anELogico
Publicado a: 23/09/2021

Desde a música à roupa, existe uma palavra que junta todo o estilo do Kenny Berg: experimental. E se o SoundCloud Rap Made in Portugal tiver um hall of fame, então de certeza que há um lugar reservado para o Kenny. A personalidade versátil com que aborda cada batida, desde o trap pesado e agressivo a bangers como “Virgil” ou, em último caso, os seus trabalhos a bater o hyperpop, descrevem um artista capaz de desafiar cada música com cadências surpreendentes. E, ao mesmo tempo, complementa essa personagem com uma linha de roupa que não se afasta do seu chapéu com bonecos do Toy Story ou da sua bolsa da Milu — e uma peça da scheme não pode faltar na colecção.

Em Maio passado, o artista apresentou o seu disco Tinderland no Núcleo A70, em Lisboa, acompanhado por Dianna Excel, DRVGジラ, Drati e Nigiri Ice. Uma festa dentro das limitações, mas, mesmo assim, não deixaram de existir garrafas a voar, moshpits possíveis e muita gente a cantar as letras, fossem as dele ou daqueles que o ladeavam em palco. O concerto foi produzido pela Au Largo, produtora com olho para a vanguarda e que já o havia programado juntamente com Chico da Tina e oseias. em 2019, num espectáculo que decorreu no Titanic Sur Mer.

Em ano de lançamento de novo álbum e participações em projectos de João Não & Lil Noon (“Danceteria Love“) e trispyhell (“SENTADO NO MICROONDAS“), Berg (com quem conversámos após essa actuação nos Anjos) assume-se como umas das vozes mais intrigantes de um underground nacional que não pára de se manifestar de formas curiosas.



Estavas nervoso?

No geral, antes dos shows fico sempre um bocado marado. Tanto na cena de meio ansioso como na cena de qualquer cena falhar. É sempre mix porque nunca depende de mim, não é aquele show em que vou estar a cantar e o pessoal vai estar a ouvir ou não sei quê. Tenho de sentir que as pessoas que lá estão vão também fazer a sua parte, gosto de uma cena interactiva. Mas as cenas correm sempre como estava à espera. E este foi um exemplo disso, gosto sempre quando o pessoal levanta as cadeiras e faz grande mosh e assim. Toda a energia que acaba por se juntar ali é completamente diferente.

Sim, deve ter sido incrível ver o pessoal a vibrar tanto contigo.

Gosto que exista sempre esse quebrar de barreiras, em que o pessoal é confrontado com essas coisas. Já tive concertos em que chamei toda a gente para o palco e era só seguranças a tentar tirar o pessoal de lá. Essas cenas dão-me muito gozo, gosto de ver essas cenas a acontecer. Gosto de ver esse choque. Quando estou a dar um concerto entro num estado mental em que só me apetece partir a casa toda, é muito diferente.

O concerto juntou muita gente em palco, DRVGジラ, Nigiri, Drati, a Dianna. A composição do concerto acaba por ser complexa, de escolas diferentes…

São todas diferentes mas interligam-se todas. O meu estilo de música é muito diferente do dos outros, mas complementamo-nos todos uns aos outros. Sei lá, é isso que eu procuro… nunca gostei de estar rodeado de pessoas que fazem o mesmo que eu. Nunca fui muito desse género, nem de ficar numa cena e estabilizar aí, tenho sempre a necessidade de mudar e experimentar outras coisas. Gosto dessa dinâmica, trazer pessoal ao concerto, com as suas energias e não ser uma cena repetitiva de fazer só trap ou o que quer que seja…

Achas que ser sempre o mesmo género musical acaba por cansar?

Depende um bocado. Por exemplo, houve uma festa no Damas em Janeiro de 2020 organizada pela Dianna, que trouxe pessoal que era trap, mas o trap está tão ramificado e diversificado que havia gente que era mais emo, pessoal que era mais plug, eu, o Drati. E essa cena é o que eu gosto de ver, gosto de estilos diferentes todos numa festa. Estar só a ouvir o pessoal que está aí a bater, que acaba por ser tudo do mesmo (embora, dando o valor a toda a gente que está a fazer cenas)… eu prefiro muito mais ir a uma festa ou um set e tanto ouvir os clássicos como sons que não conheço do que ir um sítio ouvir os sons que já ouvi milhares de vezes. Mas isso depende muito do concerto que vais ouvir.

Neste caso, falamos da apresentação do Tinderland… Fala-me acerca desse disco.

Esse disco surgiu quase ao mesmo tempo que comecei a lançar sons para a net…

Com a “Virgil”, não é?

Não, a “Virgil” foi o primeiro som que lancei para o YouTube, no SoundCloud já tinha lançado as “Folhas” e a “Bali”. Lancei aí e depois passei rápido para o YouTube para juntar as imagens e o vídeo ao som. A cena do Tinderland foi… tenho uma obsessão por marcas de trabalho, não como as cenas da Nike ou essas marcas assim, mas aquelas como o Continente, ou BES, ninguém anda com essas roupas na rua. Eu tenho essa obsessão, gosto muito disso, tenho imensa roupa desse género. A cena do Tinderland foi um bocado como isso, eu ando sempre de Timberlands e fiz esse trocadilho, na altura também estava a bater aí o Tinder… [risos]. Conscientemente não tinha assim grande significado, mas com o tempo foi adquirindo, no que toca ao mundo da música, tu vais dando match com estilos e com colaborações, e nas redes sociais, etc., acaba por bater certo.

O Tinderland é a compilação desses sons, desde a “Virgil” e assim até aqui. Foi uma ideia ambiciosa, mas levei até ao fim… Também entretanto meteu-se a pandemia pelo meio e pronto… Dei uma pausa porque gosto que Kenny Berg seja associado a festa. E como as coisas estão a voltar ao normal acabei por lançar o disco. Também já tenho mais um projecto aí para sair… Cantei alguns temas no show, cenas mais para dançar. 

Sim, notou-se no concerto, assim com um espírito mais a roçar a rave…

Sim, eu também não curto de meter cenas em caixas.

Voltando atrás, ao assunto das marcas: Kenny Berg tem a ver com a marca?

Não sei se tem a ver, mas rapidamente associei a isso. A cena de Kenny Berg é muito de… sei lá, eu trabalho com artes plásticas e andar nos copos e aí a pintar cenas na rua é o que define a cena de “Bergar”. Então, ali nos finais de 2018, início de 2019, comecei a experimentar cenas de trap. O Canha e o Keslley andavam a experimentar umas cenas, e eu também, que costumava andar com pessoas ligadas à música. Tudo surgiu meio que naturalmente, criámos ali uma cena, estávamos mais atentos à cultura, à música, e a cena floriu.

A cena de Kenny foi… eu no início queria chamar-me Tommy Berg, mas faltava qualquer coisa. Eu gosto mesmo da personagem Kenny do South Park, a pessoa que ninguém percebe mas diz cenas a sério e, como ele está sempre a morrer, sempre a voltar, sinto uma certa analogia com aquilo que eu faço. Isso rolou até agora: apesar de ter passado por cenas mais experimentais, também tive uma fase mais comercial, mas a minha cena é estar mesmo a fazer sons, estar a fazer acontecer.

Como descreverias a cena no Porto? Falaste do CANHA, do Keslley, e acho que tens alguma ligação com a scheme, assim como também foste das primeiras pessoas que eu vi a ter render 3D nos vídeos em Portugal.

Sim, os vídeos do Irish [Favério]… Comecei a ir a festas de trap porque me divertia imenso, ia lá e ouvia aqueles sons do Designer dos Migos, etc., festas da Capri, XXIII, era quase tudo cenas no Maus Hábitos.Houve uma altura em que havia uma festa que era na Cave 45. Ainda por cima o Porto é pequeno, é uma cena assim um bocado complicada… mas houve aí uma altura em que apareceu o pessoal da Think Music, YUZI, Sippin[purpp] e assim… e notou-se que a cena começou a crescer um bocado. Mais festas do género… mas acaba sempre por vir da malta de Lisboa. Na altura ainda não conhecia o Ice [Burz], que já está na cena do trap há bue tempo… e, sinceramente, no Porto ele era um dos poucos que via a fazer cenas.

Passado um tempo, sinto um bocado que foi a partir do nosso grupo que começaram a acontecer mais cenas. Depois também conheci o Irish e a cena dele com a scheme, do CANHA, e a partir daí fomos gerando o nosso colectivo, que na altura até estava composto, era eu, o Tó, o Irish, o CANHA, o Keslley, o SISI BYAS. Depois fui conhecendo mais pessoal como o tripsy, o lil noon, João Não… essa malta. Sinto que a cena evoluiu imenso nos últimos tempos… sei lá, a cena acontece naturalmente, não é fácil visualizar a cena a ver de fora.

Pois, percebo, porque na verdade fazes parte da cena…

Sinto-me um bocado à parte da cena do trap, caba por ser alternativo, dentro do underground, mas com isso vem sempre uma liberdade de trazer originalidade à cena. Sinto que o pessoal me dá reconhecimento apesar de não estar a bater milhão, e de repente encontro-me em salas onde está pessoal a bater o círculo mais comercial. Gosto de poder ir aqui e ali e isso não ser uma barreira.

Como é que olhas para a influência do SoundCloud no teu trabalho?

O SoundCloud é o meu lugar favorito, estou muito mais preparado para aquilo. O YouTube, por exemplo, puxa-te mais para um cenário em que tens de fazer vídeo. Quando eu lancei “As folhas já não caem“, por exemplo, senti que me aproximei imenso da comunidade, deu para sentir o love. Agora sinto que o SoundCloud está a voltar de novo, com toda esta cena do hyperpop e trap todo experimental, technos e assim. E eu quero estar presente nisso. Também acho que o pessoal está mais aberto para explorar.

Dirias que o SoundCloud é o espaço para experimentar?

Sim, acaba por ser um bocado a tua zona de teste e para construires a tua fanbase.

E sobre o pessoal com quem estiveste no concerto no Anjos?

Nos últimos dois anos conheci imenso pessoal através da música, e o DRVGジラ foi um deles, fiz com ele há pouco tempo a “RIP Milu”, e tenho outra faixa para lançar depois do disco editado por ele.

Tentas manter o teu círculo sempre por perto?

Claro, é muito importante e difícil também. O pessoal vai naturalmente seguindo por outros caminhos, e para mim também é difícil, sendo um gajo que tem algum reconhecimento, mas mantendo-me no limbo entre comercial e underground é sempre possível manter a família ali perto. Por exemplo, sempre que tenho concerto em Lisboa tento trazer o meu pessoal. E passar por essa cena todos juntos é sempre boa experiência. Mas o tempo passa e o pessoal quer fazer outras cenas ou sei lá, todos têm trabalho a fazer, vai-se entendendo. E com o último ano de pandemia o afastamento foi quase que inevitável. Sei lá, há pouco falávamos do Porto, mas também é pequeno, e é bom estares sempre a descobrir. Conta-se com uma mão o número de pessoas com quem podes trabalhar. Consegues quase perceber a dinâmica do Porto num ano. Às vezes só é mais difícil estares atento ao pessoal novo que aparece. Mas é o facto de ter estado sempre no Porto que me fez sentir esta necessidade de mudar. Por exemplo, imagina, estudei numa escola, bazei, fui para outro spot, conheci pessoas novas, e repeti. Tenho essa necessidade de conhecer pessoas e trabalhar com novas pessoas e sair da minha zona de conforto.

Achas isso importante?

Sinto que sou muito assim. Sinto que gosto de descobrir coisas e explorá-las com intensidade, e às vezes com tanta que fico um bocado farto. Por exemplo, neste disco, sinto que já estou a trabalhar nisto há tanto tempo que há sons que já estou um bocado farto. Tenho sempre essa cena de querer explorar.

Ao longo da tua música, sinto que usas muitos elementos da cultura pop na criação da tua música, de onde é que esse processo parte?

Sinto que o meu próprio processo acaba por ser lixado para mim. Sai sempre do vir brincar, ter um beat e mandar umas dicas engraçadas. Essas cenas mais catchy, pop, rimas que ficam na cabeça, e depois misturar com algumas coisas que quero dizer, mas acho que no geral as minhas letras acabam por ser desconstrução e apropriação de letras mais comerciais e cenas que o pessoal está sempre a dizer no trap e tentar dar a volta a isso e dar-lhes outros significados. Mas a cena do hype do trap também é uma cena que sempre me fascinou, a cena de um som conseguir-te levar para cima. É isso, eu tenho sons muito depressivos, mas a forma como os canto acaba por ser de uma cena pop mesmo energética, e o Tinderland acaba por ser uma viagem entre uma cena contente e feliz e uma cena também depressiva. Toda essa energia de de repente estás em cima, de repente estás em baixo… Acaba por ser o que é a cena da cultura do trap, tem pessoal que acha que o trap é só Xanax e cenas depressivas, mas tem toda uma energia de ir acima e abaixo que faz sentido, como quase tudo na vida.

Todas as cenas têm a parte boa e má, não há bem sem mal e é um bocado isso que tento trazer para as minhas letras. Eu sinto que sou um gajo mais depressivo do que o que aparento ser em termos de estética e personagem, mas não quero estar a cantar sobre… sei lá, imagina, se um gajo já está triste, não quero estar a pôr outras pessoas tristes. Para mim, Kenny Berg foi criar ali um momento em que sinto que bué pessoas conseguem estar a curtir. E sempre tive bué feedback nos shows que pessoal que nem está dentro da cena manda mensagem a dizer que nem sequer ouve trap mas que gostou da energia, e que sentiu que toda a gente estava a curtir. Sei lá sair da rotina de merda e criar ali uma fuga e uma rutura para estar fixe e haver um momento de diversão e descontração. Para mim, um concerto de Kenny Berg é como ires apanhar uma bebedeira. É como estares num dia mau e só queres ir esvaziar a cabeça e estares com o teu pessoal. É um bocado a energia que me influencia a fazer isto e a continuar a fazê-lo…

E o meu processo…. sobre a criação… não faço a mínima… [risos]. São coisas que acontecem, dicas que vão aparecendo, cenas que vou vendo, cenas que vou pensando. Sei lá, a “Virgil” foi um bocado por aí, estar a explorar a cena da cultura pop, a cena do Virgil Abloh… “ela quer virgil, eu não abloh” e foi isso… Eu tinha uma mala do Tintin, que comprei numa loja de segunda mão, e sei lá, foi mala do tintin e let’s go. Nunca foi uma cena muito planeada.

Gostava de saber quais são as tuas influências, o que é que te levou a começar com Kenny Berg.

Desde novo que ouço hip hop, depois comecei a ir a concertos de punk, depois cenas eletrónicas experimentais, synths e etc., e finalmente comecei a ter mais interesse em raves, cenas techno, também em contextos mais experimentais, pessoal a passar discos… E depois comecei a curtir trap. Sempre foi um bocado hip hop, depois vou ali a uma cena, depois vou ali a outra cena [a falar géneros], e sempre quis bué fazer alguma coisa… participar em projectos com a malta. Sempre senti que nunca dei tudo aquilo que podia dar, sentia que tinha coisas para dizer, mas que tinham de ser num projecto individual. Tenho a minha equipa, a minha malta, mas também preciso daquele foco, atenção, em que digo aquilo que quero transmitir. Comecei a experimentar trap, era uma cena que me divertia, que me fazia não pensar muito. Agora estou a explorar uma cena de trap/rave, electrónica, mais pesada, mesmo porque quero pegar nestas coisas que peguei no trap e levar para a cena mais de festas de techno e electrónica do que trap, até porque vou a mais festas de techno e musica eletrónica do que de trap. Por exemplo, a primeira vez que cantei foi numa rave, debaixo de uma ponte, no Porto. Ya, assim uma cena assim ilegal… Só tinha um som, fui lá cantar “As folhas…”. E é um bocado essa cena que quero misturar, que quero fazer, não gosto nada de guardar as coisas em caixas. Quando quero fazer uma cena rave tento trazer um lado mais hardcore, mais violento à cena. Eu quero que a música divirta e não seja só porrada, mas nos shows curto de dar porrada.

O teu show foi um bocado isso… Como é que foi passar estes dois últimos anos com a pandemia a acontecer?

O que ando a fazer: eu trabalho com artes plásticas e estou a acabar agora o curso. Com essas coisas de pandemia foi só mesmo acabar a cena do disco, mas tenho estado a trabalhar mais na cena de arte plástica, à volta de pintura e assim. E também foi um bocado isso, se não há shows, vou fazer uma exposição, trazer o pessoal e metê-los todos a pintar lá. Isso para mim é muito importante, partilhar cenas com pessoas, senão fico só na minha cabecinha e não é o melhor sítio. Então tem sido isso. No outro dia estivemos aí a gravar o videoclipe para uma cena que estou a fazer. Gravámos numa das exposições. 

Podemos saber o título?

Sim, é para a “Bergaboy”, um som que é para curtir. Estivemos a gravar lá na minha exposição, à volta das pinturas, é isso tudo que quero ligar, todo esse universo é difícil de articular e transformar numa cena que faça sentido para ti e para os outros, e é um bocado isso que tenho estado a trabalhar. A cena está sempre a  mudar, e a mudança nunca é boa ou má, é o que é. E espero bem não estar no mesmo sítio em que estou a falar contigo daqui a dois anos. Se estiver, liga-me e dá-me duas chapadas.


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