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Publicado a: 11/05/2022

Diferente do resto? Talvez não seja assim tanto.

Kendrick Lamar: sim, afinal, ele é fóbico

Publicado a: 11/05/2022

Está prestes a chegar um novo disco de Kendrick Lamar e as expectativas são muitas, e justificadas. Para além da qualidade a que nos habituou, ao longo dos anos, há um argumento que vem sendo repetido a seu favor por quem lamenta o carácter misógino, machista, homofóbico e violento de uma grande parte do hip hop: as rimas não são grunhas, ao contrário do que é demasiado de esperar, e parecem – pelo menos à superfície – não ser preconceituosas.

Quando o casamento gay foi legalizado nos Estados Unidos, durante a presidência de Barack Obama, a imprensa musical perguntou ao rapper o que achava desse evento histórico, dele esperando uma resposta diferente daquela que outros poderiam dar. E ela foi, de facto, diferente: que “as pessoas deviam poder fazer aquilo que as torne felizes”. A declaração caiu bem junto da comunidade LGBTQ, pois vinha de um homem cis-heterossexual que reivindica mudanças profundas na sociedade, o mesmo tipo de mudanças interseccionais que, em parte, o próprio movimento queer defende e promove. Por essa mesma altura, um chat da net lançou uma pergunta muito concreta: “Há por aí gays que sejam fãs de Kendrick Lamar?”. Muitas foram as respostas surgidas com um “Eu! Eu!”.

O problema é que, se Lamar deu a crer que o amor homossexual não o incomoda (se bem que com expressões como “I don’t give a fuck” ou “I can’t help the way you was born if you was gay”, que não são propriamente as de um aliado), uma coisa ficou bastante clara no tema “DNA.”, do álbum DAMN.: transfóbico ele é de certeza, com tudo o mais, misoginia e homofobia, a vir de arrasto. Repare-se na letra: “Bitch, your hormones prolly switch inside your DNA/ Problem is, all that sucker shit inside your DNA/ Daddy prolly snitched, heritage inside your DNA/ Backbone don’t exist, born outside a jellyfish, I gauge/ See, my pedigree most definitely don’t tolerate the front/ (…)/ Tell me somethin’/ You mothafuckas can’t tell me nothin’ / I’d rather die than to listen to you/ My DNA not for imitation/ Your DNA an abomination.”

Para que a interpretação do texto não pudesse ser outra que não a intencionada, está lá o termo “switch”, que designa os “homens efeminados”. Aquelxs que Lamar contesta com outra palavra de peso, “snitch’n”, aplicada a gente “sem coluna vertebral”, ou seja, sem o devido orgulho por serem… bom… machos.

Assim como Kendrick Lamar denuncia a diferença de salários entre caucasianos e pessoas racializadas, a brutalidade policial, os bairros de low income que são autênticos guetos em que o crack comanda ou as injustiças sofridas pela população afro-americana, temos então este outro tema bem menos progressista: o dos rapazes que, segundo ele e com a sua agressiva objecção e asco, “imitam” as raparigas. Segundo um ensaio académico de O’neil Van Horn (Drew University), vem-lhe este lado da sua formação religiosa. Lamar é assumidamente cristão e a tese Promiscuous πόρναι, Bad Bitches, and Misogynistic Masculinities: A Queer, Imperial-Critical Analysis of Revelation and Rap desmonta as referências do seu To Pimp a Butterfly nas Revelações. E se nesta parte da Bíblia é particularmente gritante o menosprezo das mulheres, também fica evidente na misoginia com que o MC trata a figura de Lucy.

No disco em causa Lucy é o diminutivo de Lucífer e a luta de Lamar contra o “império capitalista e imoral” representado pela segunda Babilónia que são os Estados Unidos da América passa pela sua pessoal resistência (enquanto profeta solitário que declama para todos e ninguém) aos encantos de uma figura feminina que, God forbides, recorre a comportamentos “masculinos” (vulgo, de poder e influência). Aliás, nas líricas do álbum Lucy é tanto tratada com pronomes she e he (por exemplo: “They say if you scared, go to church/ But remember, he knows the bible too”). Havendo uma perspectiva queer, este bending de género até poderia ser curioso, mas são outros os propósitos.

E não, Kendrick Lamar não estava sequer a criticar o pouco antimercantilismo do hip hop queer, circuito em que abundam artistas tão negociante$ quanto os do (agora) neoliberalíssimo hip hop straight, e com carreiras paralelas em áreas económicas que envolvem muito dinheiro, como Le1f (empresário da indústria do disco), Cakes da Killa (especialista em, pois, Fashion Studies), Big Freedia (decoração de interiores), Cazwell (modelo de moda), RoXXXan (marketing e merchandising lifestyle) e Will Sheridan (manager de moda), entre outres. Curiosamente, alguns destes nomes estão a questionar por estes dias o adjectivo “queer” para o que fazem, argumentando que os limita. Do ponto de vista de uma efectiva queerness anti-sistema, mais de esperar seria que colocassem o Capital em causa, mas assim não acontece.

Não é, portanto, o marketplace babilónico dito queer que Lamar procura atingir, o que, de resto, seria interessante de ouvir num tema como “For Sale”. Afinal, anos antes já tinha ele rappado estas linhas: “So just to get a dollar, will I sell my soul?/ I look the devil in the eye and tell him, hell no”.

Temos, pois, que Lucy tenta seduzir Lamar enquanto divindade masculina e isso – a performance em drag – é totalmente inaceitável para o autor, ainda que tenha sido ele a imaginá-la. A personagem pode parecer queer, mas apenas se a história fosse contada do seu lado, isto é, de uma perspectiva de subversão das construções culturais de feminilidade (e de masculinidade). Segundo ele, a intimidade sexual decorrente só poderia conduzir à morte, juntando-o aos outros “reis da Terra” que foram “intoxicados” pelo “vinho da fornicação”. Sexo com um homem, mesmo com aparência de mulher (ou ainda mais, porque a “mulher” é sempre o Outro nesta lógica, um Outro que ameaça destruir a Norma hetero-masculina), para Lamar como para o Cristianismo, é igual a sexo com o demónio.

Um homem feminino, ou uma mulher com maneirismos considerados masculinos (Lucífer enquanto drag king), é neste quadro um ser antinómico, um ser que contém em si, na norma que devia reproduzir, o seu próprio “adversário”. Uma abominação, como Lamar declamou. Não o fez como um insulto directo, diferentemente de tantos outros, mas fê-lo com nuances ainda mais pensadas do que as da “cultura de rua”, e isso é provavelmente ainda mais grave. Se Lamar é um rapper de denúncia e protesto com fama de colocar tudo em causa, eis que há disrupções da ordem que ele não admite.

Kendrick Lamar não é, afinal, o fixolas que muitos ouvidores mais apressados pensavam que era, entre os quais um grande número de gays. O seu pensamento antiqueer está bem construído e defende-se com o Livro Sagrado, uma estratégia que julgaríamos exclusiva da direita conservadora. E sim, pode-se ser anticapitalista, anti-racista e antiqueer em simultâneo, como fica demonstrado.

A ver o que o novo disco nos traz de fóbico a este respeito, mas não tenhamos grandes esperanças.


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