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Publicado a: 01/07/2015

Kendrick Lamar: menino prodígio

Publicado a: 01/07/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

Kendrick Lamar Duckworth nasceu em 1987, a 17 de Junho. Quando o pequeno Kendrick estava a aprender a gatinhar, Jay-Z, com 18 anos, já se movimentava nas rodas de freestyle de Brooklyn à procura de fazer um nome; Notorious B.I.G., com apenas 15 anos, já vendia drogas nas ruas de Nova Iorque ao mesmo tempo que procurava um escape nas rimas; e Dr Dre, com 22 anos, já tinha deixado para trás a sua World Class Wreckin Cru’ e criado os N.W.A.. Quando Kendrick completou 10 anos, Eminem estreou-se com Slim Shady EP. E quando atingiu a maioridade, em 2005, The Game, outro notável nativo de Los Angeles, apresentou ao mundo o seu Documentary. Mas, por esta altura, K-Dot já não era apenas um espectador: Training Day, editada no mesmo ano, era já a sua segunda mixtape, depois de uma estreia auspiciosa com Youngest Head Nigga In Charge. Kendrick Lamar pode, de facto, ter nascido em plena era hip hop, mas é mais do que óbvio que se recusou a ser um mero observador e até um simples participante: To Pimp a Butterfly, o seu novo álbum, eleva a fasquia estabelecida com good kid, m.A.A.d. city em 2012 e ameaça, sozinho, transformar as regras do jogo.

A ascensão de Kendrick à primeira divisão do campeonato hip hop fez-se em plena era Obama, mas agora o rapper de Compton acampa no relvado da Casa Branca, dá props a Oprah nas suas rimas e, tal como D’Angelo, que afirmou que todos os negros da América devem aspirar a serem “black Messiahs”, começa por apontar o foco da sua atenção à mesma América negra que se sublevou em Ferguson e garante, socorrendo-se de um sample de Boris Gardiner, que “every nigga is a star”. A América tem um novo presidente. Pelo menos a das ruas, a dos jipes com sistemas de som generosos, a dos que entendem ainda, como profetizou Chuck D, que o hip hop é a CNN do gueto. Escrevia a Billboard em Janeiro último: “Lamar parece empenhado em transcender o que ele chama ‘o desporto’ do rap: ‘Agora orgulho-me de escrever ao invés de simplesmente rappar. A minha paixão é trazer histórias e construir um corpo de trabalho completo e não apenas um verso de 16 compassos’”. Ambição artística por oposição a ambição comercial. É aí que o jogo muda numa era de clicks, likes e plays.


 


[REVERENDO DAS RUAS]

 

O ano de 2015 ainda não vai a meio e olhando para a posição que Kendrick Lamar ocupa agora é talvez um pouco complicado perceber que Section 80, o verdadeiro álbum de estreia cuja edição original foi apenas digital, através do iTunes, foi somente editado em Julho de 2011. Sem convidados da primeira divisão do hip hop, sem produtores de renome, Section 80 conseguiu no entanto cimentar a posição de Lamar no novo mapa rap da costa oeste, primeiro, e de toda a América, pouco depois. Logo aí, o rapper de Compton sublinhou a sua diferença: histórias e não punchlines, álbuns em vez de singles, música antes de estratégia. Mais de meio milhão de cópias vendidas para uma edição totalmente independente reforçam a qualidade da visão de Kendrick Lamar que trouxe algo de diferente ao tal jogo numa era de transformações profundas na indústria. E da própria América. As histórias fundadas na realidade, com recorte autobiográfico, avessas à fantasia e honestas até à medula parecem ter acertado num qualquer nervo sensível de uma América confusa, a lidar com frentes de batalha externas e internas, a lidar com a expansão tecnológica do universo, com crises de identidade social e tanto mais. A música e as letras de Lamar parecem funcionar como uma âncora. Ao New York Times, Kendrick ofereceu algumas pistas para as lições que a realidade lhe ensinou: “Limparam o sebo a uma pessoa do meu circulo de amizades. Ela já tinha percebido que não éramos bons da cabeça. E isso era ela a ser um anjo para nós”.

Mesmo os protagonistas da história hip hop que se foi desenrolando enquanto Kendrick estava a crescer perceberam o seu carácter único. Dr Dre, que já havia investido em figuras maiores do que a vida como Eminem, 50 Cent ou The Game, agarrou o talento que criou Section 80 e mediou um contrato que envolveu o gigante Interscope, a sua própria Aftermath e a indie Top Dawg que sustentou os primeiros passos do rapper. Paralelamente aos discos, as actuações ao vivo de Kendrick foram cristalizando o seu estatuto de voz de uma geração. Há aliás um interlúdio no novo álbum, To Pimp a Butterfly, onde, qual reverendo das ruas, o “good kid” se dirige à “mad city” usando o palco como um púlpito: “how many niggas we lost bro? It shouldn’t be shit for us to come out here and appreciate the little bit of life we got left”. A mensagem é pacificadora, mas ao mesmo tempo parece assumir que, para um homem negro, na América do século XXI, não há nada melhor do que agarrar o presente porque o futuro é incerto. Daí a festa no relvado da casa branca emoldurada na capa do novo álbum…


 


A aclamação para good kid, m.A.A.d. city, lançado em Outubro de 2012, foi imediata e unânime. Numa era de instantes partilhados em redes sociais, Kendrick Lamar preferiu criar um filme, “um dia na vida de…”, apresentando ao mundo um álbum conceptual carregado de ideias, fluente em rimas, fluído em batidas, maduro e, sobretudo, inteligente – “menos Boyz in the Hood do que Uma Agulha num palheiro”, escreveu a Billboard referenciando o filme de John Singleton, por um lado, e o clássico literário de J.D. Sallinger, por outro. A aclamação parece ter surgido de todo o lado, mesmo dos mais improváveis recantos da pop: Dan Reynolds, dos Imagine Dragons, elogiou a escrita de Lamar – “quando ouço Kendrick Lamar sei que todas as palavras foram usadas por uma razão”; já Taylor Swift deu à sua vénia a dimensão de um desejo – “adorava ser a melhor amiga de Kendrick Lamar e não sou…”. Tantas palavras simpáticas são, afinal de contas, compreensíveis: o primeiro álbum real – no sentido “palpável” do termo, mas também com espessura industrial graças ao contrato conseguido por Dre – de Kendrick Lamar mereceu os mais rasgados elogios da imprensa internacional que o elevou à condição de clássico do género levando-o a ombrear com os melhores momentos discográficos de artistas como Jay-Z ou Nas, outros fenómenos que souberam emergir das ruas e erguer-se acima das massas.

De repente, o rapaz de Compton tornou-se uma espécie de semi-Deus e as suas palavras o gospel por que muitos garantem orientar a sua vida. Mas, apesar do que nos diz D’Angelo, Kendrick não se apressa vestir a pele de messias negro: “Sei que sou o mais próximo que muita gente tem de um reverendo”, explicou ao New York Times, “E sei, por andar na estrada, que muitos miúdos estão a viver pela minha música. Mas a minha palavra nunca será tão forte como a palavra de Deus. Sou apenas um veículo para Ele fazer o seu trabalho”. Veículo, talvez (e todo o terreno, certamente). Mas menino de coro, não. To Pimp a Butterfly é a prova: “At first, I did love you / but now I just wanna fuck”, ouve-se na portentosa faixa de abertura que consegue juntar no mesmo espaço exíguo a produção de Flying Lotus, a voz de George Clinton e até a gravação de um telefonema de Dr Dre: “Remember the first time you came out to the house? / You said you wanted a spot like mine / But remembre, anybody can get it / The hard part is keeping it, motherfucker”.


 


[NEM SANTO, NEM PECADOR]

 

Não parece que Kendrick venha a ter grandes problemas de gestão das conquistas já alcançadas: tudo nele grita ponderação e, por outro lado, não se vislumbra na sua personalidade ou modus operandi nenhuma das marcas de excesso que se conhecem a outras estrelas pop: não vive numa mansão, embora tenha o cash flow necessário para isso, não é vítima da moda habituado aos mais exclusivos desfiles de Paris, como Kanye West, por exemplo, e não tem problemas em assumir publicamente que tem uma relação que dura desde o liceu, embora prefira ser discreto sobre o assunto: “Não quero por outra pessoa sob os holofotes e fazer dela uma celebridade quando não é isso que ela quer”. Diferente de Kim Kardashian, portanto. O que não significa que Kendrick seja um santo: To Pimp a Butterfly é também uma desarmantemente honesta sessão de auto-crítica e Kendrick não poupa a imagem que tem diante de si, quando se olha ao espelho. Quando não se é parte da solução, é-se seguramente parte do problema, parece ele dizer-nos em temas como “i” ou “u”, peças centrais deste álbum complexo.

E musicalmente? Kendrick trata To Pimp a Butterfly como Marvin Gaye encarou What’s Going On: é um álbum de libertação, até das amarras do hip hop – tem beats que se encaixam na tradição boom bap, mas tem ambição jazzy traduzida na presença de músicos de jazz com bagagem séria como o baixista Thundercat ou o pianista Robert Glasper (ambos estrelas na sua área com sólidos registos discográficos em nome próprio), tem arranjos complexos, temas que se repetem, ideias que circulam e reaparecem à medida que a história se vai desenrolando, tem fôlego, visão e um milhão de flows que vão de um tom mais confessional ao grito de revolta, da cadência da spoken word ao sarcasmo, num festival de máscaras que revelam afinal a complexidade da sua personalidade.

Kendrick é um prodígio. Não há outra palavra mais justa para o descrever. E Kendrick está a mudar o hip hop, a obrigá-lo a crescer, a olhar mais longe, a ousar sair para fora das suas apertadas fronteiras. É essa a missão dos verdadeiros génios: ir mais longe. Ainda que isso signifique explorar o seu próprio talento, “to pimp a butterfly”…

 

*Texto originalmente publicado na edição 107 da revista Blitz.

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