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Fotografia: Vincent Haycock
Publicado a: 21/10/2019

Depois da passagem pelo NOS Primavera Sound, no Porto, a artista norte-americana regressa a Portugal para actuar no Jameson Urban Routes, em Lisboa.

Kelsey Lu: “A fluidez foi um instinto de sobrevivência que se activou em mim”

Fotografia: Vincent Haycock
Publicado a: 21/10/2019

Quando se escreve sobre Kelsey Lu, há um desafio. Não é o acto em si: tudo sobre a violoncelista-mor de Los Angeles é natural, não grita por atenção, mas tem potencial para fazer correr tinta. Dependendo do disco, Lu pode ser uma abstracção orquestral, um eco na capela — ou uma fugitiva hipersensível. À procura de abrigo em sítios estranhos, ou disposta a remodelar outros mais familiares. A sua voz deixa sempre um sulco: estende-se sem pudor, nem limite de volume; apropria-se de todos os compassos, mesmo aqueles que não lhe são destinados. Em capas e actuações, faz permutar cores e formas: no ano passado, quando se estreou em Portugal, ocultava parte da cara com um chapéu de penas preto; agora, sorri, a sua franja escarlate e as sobrancelhas turquesa — amanhã, já terão outra cor — a descoberto. Lu é conhaque e estrelícias, alta costura e óleos essenciais, continuidades e rupturas. É o que é, com licença auto-determinada para o ser.

E aí está o desafio: não usar a palavra “fluidez” para falar sobre ela. “Fluidez” não é só um cartão-de-visita reciclado em entrevistas e críticas. É uma bússola: ajudou-a a abrir o segundo capítulo de uma vida previamente balizada pela religião e pelo núcleo familiar. Deixou-a ser massa amorfa, para dar a maior amplitude ao ser humano, à sexualidade, às crenças e à música. A sua arte dá corpo a esse instinto de sobrevivência: em 2016, deu a primeira prova em Church, um EP quase confessional, gravado ao vivo numa igreja. Três anos depois, alternando entre digressão, experimentação e colaboração, Lu apresenta o seu primeiro álbum. Blood é um fluxo que não distingue entre música de câmara, pop obtusa e disco teatral.  Antes de o apresentar no Jameson Urban Routes, a 24 de Outubro no Musicbox, o Rimas e Batidas telefonou à artista. Não demorou muito tempo a familiarizar-se com a sua gargalhada estridente e o seu tom sério — sempre pontuado com um riso traquinas, porque a comunicação é sempre um fluxo — e Blood é a sua linguagem.
 

Cheguei a correr da universidade. “Pedal! To the! Metal!”

[Gargalhada] Estavas a cantar isso na tua cabeça?

Claro! A gritar, evidentemente.

[Gargalhada] Não vivo com um conceito de tempo, portanto está tudo bem.

Isso é uma coisa recorrente para ti? Imagino que tenhas de ser algo regrada com o tempo.

Normalmente, sim. Hoje, infelizmente, não é um desses dias.

Suponho que não te possas esquivar a compromissos como este, uma das mil entrevistas que tens feito.

[risos] Leste todas?

Fiz o meu trabalho de casa — desde o vídeo de 2014 que fizeste com a Style Like U, quando ainda usavas o teu apelido real, antes de alcançares a projecção que tens hoje. Foi uma entrevista francamente profunda.

[risos] Talvez um pouco profunda demais.

Algo que reparei a consultar essas peças foi o teu discurso sobre fluidez: uma armadilha para quem te quer meter numa caixa, mas que também se tornou uma espécie de marca para ti. [Lu ri-se] Essa noção surgiu na tua vida como algo pessoal ou artístico?

Penso que a senti a um nível pessoal, porque muitas coisas eram definidas por mim, tais como a forma de eu viver a minha vida e quem eu tinha de ser. A fluidez foi um instinto de sobrevivência que se activou em mim. Quando saí de casa [dos meus pais], abandonei a vida fabricada que era suposto eu viver. Entre sair disso e entrar nesta nova forma de estar na vida, tive de ser fluida. Tive de aceitar o que a vida me atirou, em vez de ter medo. Podia ter acontecido ao contrário: eu não tinha arriscado, não me tinha adaptado, podia ter-me fechado e caído por um buraco, mas não foi assim. Para ser honesta, foi muito por causa das drogas psicadélicas, que comecei a experimentar no meu primeiro ano universitário — aquilo que designo o princípio da minha vida real. Ajudaram-me a abrir-me à vida, às pessoas e observâncias, e a deixar-me levar. Tornou-se parte da minha identidade, tal como a música sempre foi parte da minha vida, algo que estudei classicamente na escola, mas não me satisfazia totalmente estar lá. Então, comecei a degustar outras formas de música e de fazer aquilo que já fazia, como tocar o violoncelo e composições clássicas, que é algo que eu amo fazer. É preciso estar aberto a estruturas que não são estruturais, à mudança das coisas, com as quais te começas a mover também.

Antes de te libertares, as drogas alucinogénicas eram um tabu?

Não me eram permitidas, nem eu sabia que tinha havido uma grande cena psicadélica nos anos 60 e 70. E o cliché que é ir para o liceu e experimentar drogas psicadélicas… [gargalhada]
 

Acho que tens direito a um ou dois clichés.

Também acho, também acho!

Essa vertente clássica do ensino musical é frequentemente falado — lembro-me da NAO, por exemplo, formada em jazz vocal — como algo que te enriquece, que te dá ferramentas para criar, mas também te impõe limites. Sentiste isso?

Definitivamente. Mais ou menos. Não sei.. Nunca me senti presa a isso. Acho que me afastei, mais do que da técnica, da tendência para não pensares na emoção. Muitas vezes, estás focada na teoria e em toda a tecnicalidade: é isso que o treino rígido te incute, é o tipo de coisas em que és avaliada nos testes. Sinto que toco sempre a partir do sentimento. Eu reprovei na teoria, nunca me dei bem com isso [gargalhada]. Quando tocava na primeira fila de orquestras como chefe de secção, eu chegava aos concertos e esquecia-me de toda a música. Não era o exemplo do que uma líder deveria ser! Para mim, é tudo sobre a emoção. Aquilo que ficou comigo foi uma necessidade de perfeição. Muitas vezes, quando estou a tocar, sinto culpa se não sair perfeitamente, ou porque não sei teoria, não passei em teoria. É como se não fosse uma instrumentista verdadeira por não saber teoria ou não conseguir falar na linguagem da notação musical, que se aprende quando estudas música. Estive envolvida nisso a minha vida toda, tive explicações e aulas, mas sempre dei primazia à emoção e ao sentimento.

Quando entras na indústria, ao começares a gravar e a colaborar, como é que se dá a comunicação? Alguma vez te foi necessária essa linguagem técnica?

Por vezes, penso que talvez fosse mais fácil se eu pudesse dizer “apetece-me tocar em dó menor!” Talvez se eu pudesse empregar essa linguagem, talvez… Se estiver a colaborar com músicos de sessão, muita da linguagem deles é assim, e faz com que tudo corra mais suavemente. Tenho apenas de superar isso. Quando trabalho com alguém, a minha comunicação faz-se por imagens: pinto um quadro, daí parto para outras cores e paletas.

Enquanto o Church é um projecto mais conceptual e austero, o Blood é mais experimental e livre. Como seria esse disco se não tivesses abraçado a fluidez?

Não sei o que pensar do que seria. Não quero realmente pensar no que seria [gargalhada]. Acho que se poderia equiparar a tudo o resto que se baseia em padrões algorítmicos. Os algoritmos não são flexíveis, são números e estratégias calculadas. Muitas das minhas tácticas musicais são instintivas; gosto de pensar que várias coisas que acontecem se devem a forças exteriores a mim mesma. Não as podes calcular, não podes aceder ao código-fonte do computador e prevê-lo. Quando estou a criar, fio-me nisso para poder ser o canal entre o que me está a influenciar e a mensagem a ser expressada. Penso que tenho guias invisíveis na minha vida, que funcionaram como uma espécie de código-fonte espiritual, se quiseres [riso]. Quando actuo, às vezes sinto que algo se está a apoderar de mim. Isso é fluido. Tens de te mover e sentir o groove do fluxo.

Presumo que nunca te tenham tentado encerrar numa fórmula, para trabalhares com algoritmos, mas alguma vez aconteceu?

Provavelmente já trabalhei com alguém habituado a ver a música num gráfico, mas estou sempre aberta a tentar. Mesmo que esteja a colaborar com alguém assim, tentá-lo-ei se estiver a sentir a vibração da pessoa. Nunca se sabe. Quero experimentar tudo uma vez. Embora fale de algoritmos e sucedâneos, ao fim do dia, somos todos humanos. Ou, pelo menos, às vezes. Não sei! Talvez nem todos nós! [Gargalhada] Talvez alguns sejam robôs! Talvez alguns sejam reptilianos, ou aliens. Mas todos nós estamos a fazer música; quero poder dar uma oportunidade a toda a gente. Se não funcionar, há que seguir caminho. Confio o suficiente em quem sou e na música que faço para saber quando não está a dar certo. E posso ir-me embora.

Só para clarificar: a Lu é humana, certo? Não quero que nasçam rumores sobre seres uma robô ou uma reptiliana.

[voz aguda] Sou humana! Às vezes, posso ser um coelhinho. Às vezes acedo ao meu spirit animal.

O Blood mostra o quão difícil é categorizar o teu som: é algo que plana sobre um horizonte extenso, que incorpora mais estruturas pop, mais próximas de refrões. A “Go West” é uma canção simples, verso-refrão-bridge, mas tem a tua voz a preencher todos os espaços, um ou outro barroquismo instrumental — alguns Lu-ismos [Lu dá uma gargalhada]. Agora que já está cá fora há uns meses, como vês o Blood?

Acho que não é possível defini-lo. Fazer isso é vinculá-lo a uma construção, o que contraria o conceito da fluidez. Quando estava a pensar em dar um título ao disco, pensei num diapasão: tem algumas definições, mas uma delas é uma “grandiosa explosão de harmonia”. O termo literário corresponde ao compasso ou alcance de algo. Um dos motivos para o querer intitular desta forma, não só porque esta palavra é incrivelmente fixe, mas que não é só uma coisa; descreve a totalidade de algo. É abrir espaço, é harmonizar, é juntar várias coisas. É assim que me sinto, é assim a música que estou a fazer. Espero inspirar outras pessoas a não se confinarem a só uma coisa, a permitirem-se fluidez e mudança. E a aceitação de que, enquanto pessoas, somos multifacetados, temos várias camadas.
 

Dá para perceber, pelo tempo que demoraste a pensar numa tentativa de definição. Essa visão tem sido respeitada pelos media, principalmente se pensarmos em como uma mulher negra, independentemente do que fizesse, era sempre do r&b. Mesmo assim, tentam arranjar uma forma de te vender.

Claro [risos].

Por vezes, és a violoncelista de serviço na música pop; outras vezes, és avant-garde ou avant-pop. Sentes-te confortável com isso?

Não sei. Estou tranquila com isso. As pessoas vão ter uma opinião independentemente do resto. Gosto mais dos rótulos do avant-garde ou do experimental — é verdade que estou a experimentar com o meu som. Também não me importo que juntem pop ao quadro: espero que a música conceptual, com significado e propósito, se torne popular.

O Blood foi bastante antecipado e saiu numa editora de grandes dimensões, mas é um álbum que se revela com o passar do tempo. No início, parece uma mood piece, e eventualmente já estás a gritar “Pedal! To the! Metal!” [Lu dá uma gargalhada]. Há uma tessitura muito livre que depois é cortada com refrões e momentos muito orelhudos, como na “Poor Fake” ou na “Foreign Car”: isto foi uma decisão consciente?

Acho que é divertido! Queria tentar. Adoro música disco — só disco, cordas dramáticas, muita felicidade, algo com que possa dançar, mas adaptado àquilo que faz sentido para mim. Penso que nos deveríamos estar a divertir, a deixar transparecer alegria e uma certa leveza. O Church teve alegria, mas também muita dor. No Blood, queria uma nova abordagem a essas emoções; também jogar com a estrutura das canções. Por vezes, sou um bocadinho traquinas [risos] e aprecio isto de brincar com a música, pensar no que podes fazer com o teu auditório, aliciar pessoas com aquilo que pensam que vão ouvir — ficam curiosas e, antes que percebam, estão a experimentar algo que nunca ouviram. É muito entusiasmante.

Quem te desconhece e, por acaso, vê um concerto teu num festival, é absorvido pelas vibrações — e depois leva um abanão com a “Poor Fake”.

Sim! Espero que sim.

Voltando ao Church: o contexto que forneces, o teu passado — se recebesses um dólar cada vez que ouves as palavras “Testemunha de Jeová” numa entrevista, estarias a caminho do banco. À medida que te emancipavas enquanto artista e pessoa, rompeste um pouco com a religião e os teus pais. Gravar um disco numa igreja, com tanta densidade conceptual, foi uma forma de te reconciliares com essa parte da tua vida?

Penso que foi uma forma de terapia e de aceitar o que isso significou para mim e para os meus pais, de fazer as pazes com as escolhas de vida deles, e as decisões religiosas deles. E uma forma de reclamar essa palavra [igreja], aquilo que significa para mim. O peso avassalador, mas também a carga positiva: convertê-la no sentido da comunidade, união, segurança. Um lugar para onde podes ir falar dos teus problemas e preocupações.

Como foi transitar dessa acústica de igreja para um plano de gravação por estúdios de todo o mundo?

Ainda foi alguma mudança. O Church foi ao vivo, só comigo e com as músicas que já andava a tocar há algum tempo; foi-me natural. Não tive de pensar em mais ninguém nesse momento. Estava simplesmente a comunicar comigo [risos], com a música; o Blood assinala um desvio. Mesmo antes do Church, já tinha gravado no estúdio, com outras pessoas. Mas eu soube que a primeira coisa que queria pôr cá fora teria de ser algo completa e simplesmente meu. Sabia que, depois de ter interpretado as músicas ao vivo, conseguia comunicar de forma concisa e clara aquilo que queria — quando as pessoas me viam ao vivo, elas sentiam-no, e eu percebia isso. Quando entrei no estúdio, não estava a conseguir obter o mesmo efeito: quando oiço essas sessões, vejo que não estava completamente confortável. Foi por isso que o Church aconteceu da forma como aconteceu — logo que fiz aquela cama, e que as pessoas puderam ouvir e consumir, comecei a ficar mais segura da forma como comunico dentro de um estúdio. Mas levou algum tempo: três anos.
 

Esse sentimento mútuo que nasce ao vivo é muito real. Posso testemunhar: no ano passado, quando vieste ao NOS Primavera Sound no Porto, foi algo verdadeiramente incrível.

Obrigada!

Foi um dia muito especial: algumas horas antes, a Kelela estava num pranto, porque as pessoas resistiram à chuva para a ver. Lá para o final do concerto dela, convidou-nos repetidamente a ir ver “o espectáculo da amiga” — eras tu!

Awww! Sim!!!

Uma hora depois, no teu concerto — que foi o último antes de o recinto ficar totalmente alagado —, estávamos todos num transe. Dentro do meu pequeno grupo, uma amiga diz-me assim: “Olha para trás!” — quando olhei era nada menos nada mais que a Kelela, a fumar um charro.

[gargalhada de vários segundos] Awwww. Isso foi lindo. Obrigado por me contares.

Tens memória disso?

Tenho, tenho, tenho, tenho. Foi um concerto belíssimo; senti-me realmente transportada, em contacto com algo exterior. Isso foi lindo.

Uma última questão, Lu, sobre “I’m Not in Love” [versão de um êxito de 1975, pelo grupo inglês 10cc, lançado como single de Blood]. Tiveste a benção da banda?

Ouvi essa canção enquanto atravessava o deserto.

A sério?

Atravessei pela primeira vez o deserto da Califórnia e foi a primeira vez que me deparei com essa música. Foi… não sei, senti-me verdadeiramente transportada e só pensava: “Como é que fizeram isto?” A produção e a concepção, que é seriamente genial. Adorei a forma como a misturaram e fizeram — nasceu no momento e tornou-se naturalmente o que se tornou. Quando foi lançada, varreu as tabelas de vendas [risos], embora eles estivessem a passar um mau bocado enquanto banda. Não estavam a conseguir ter êxitos, e estavam a questionar-se sobre o que podiam fazer. Fizeram esta canção, não tiveram medo de ser esquisitos, e nunca ninguém tinha ouvido nada assim. Toda a gente se passou, a pensar “o que é isto?!” E era uma música de sete minutos que passava na rádio, e foi número um! 

E as rádios foram obrigadas a passar a versão completa!

Sim! E a forma como quebrou as leis do que a estrutura de uma canção deve ser, daquilo que somos capazes de ouvir. Tem de ser verso-refrão-verso-refrão, blá blá, é tudo sobre o refrão, é tudo sobre a ponte… Todas estas fórmulas sobre pessoas e sobre o que serão os números, aquilo que as pessoas querem ouvir — é prova de que é tudo mentira. Os humanos têm capacidade para mais, para sentimentos e exploração, para se surpreenderem e entusiasmarem com algo novo e fresco. A “I’m Not in Love”… Não sei, sinto que é muito fixe. Representa o que estou a tentar fazer com a minha música.

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