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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/08/2022

Acasos e fenómenos do networking.

Kelman Duran: de músico ilegal a produtor de Beyoncé

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/08/2022

Foi há uma semana que saiu RENAISSANCE, o mais recente álbum de Beyoncé. Numa lista de créditos recheada de pesos pesados da indústria musical, há um nome que salta à vista por outras razões: Kelman Duran.

O DJ, produtor e artista visual dominicano, actualmente a residir em Los Angeles, será, certamente, uma das caras menos conhecidas do público, mas tem trilhado um percurso bastante peculiar, em que a consciencialização política e social, o sentimento de comunidade e o networking se sobrepõem a qualquer tipo de factor económico. Foi por isso que, em 2021, o apanhámos a desfrutar de tudo o que o festival açoriano Tremor tem para oferecer, mesmo estando ele apenas escalado para o último slot de programação da edição desse ano, conforme percebemos durante uma conversa que decorreu nos bastidores desse mesmo certame e que hoje publicamos pela primeira vez.

Kelman Duran surgiu em cena no início da década passada e tem sido um dos principais obreiros na renovação estética do reggaeton, contribuindo para este segmento da cultura de clube com inúmeras criações originais e também vários edits não-autorizados de material de outros artistas, algo que já lhe trouxe alguns problemas com a lei. Admirador confesso da Príncipe e da nova batida que tem feito Lisboa dançar, nos últimos anos vimo-lo a alinhar ao lado de DJ Python e Florentino (no trio Sangre Nueva), a integrar os alinhamentos de projectos como Da Linha (de Pedro da Linha) e SMS For Location (uma série de compilações canadiana que procura dar destaque aos novos fenómenos da club scene inspirados pelas culturas africana e sul-americana) ou a remisturar faixas para Linn da Quebrada e Nick León.

Antes de Beyoncé ter requisitado os seus serviços para “I’M THAT GIRL“, já Kanye West andava a espreitar os seus métodos enquanto produtor, como podem conferir de seguida.



Tenho-te visto por aí nos dias anteriores. Vieste mais cedo, para aproveitar todos os espectáculos que estavam programados?

Sim. Apanhei os dias todos, basicamente. É um tipo de festival diferente. Adoro a cena de ser numa localização secreta. É confuso, mas também muito entusiasmante. Eu gosto deste tipo de descobertas. Não precisas de conhecer os artistas de antemão. É isso que torna este festival tão especial. A maioria das pessoas só escolhe ir a festivais com artistas que conhece. Aqui, as coisas estão organizadas de modo a que tenhas a oportunidade de percorrer todos estes círculos todos os dias. O formato é mesmo muito interessante.

Tens a oportunidade — e também a responsabilidade — de seres o último artista que vai tocar no festival. A tua actuação vai ser a última recordação que vamos poder guardar da edição deste ano do Tremor.

Eu sei. E isso deixa-me com alguns nervos [risos]. Vamos ver. Estou neste momento a pensar se hei-de tocar alguma cena mais agressiva, bruta. Tenho dado muitos espectáculos para plateias sentadas e isso tem sido difícil — eu não faço música para se ouvir sentado. Tive de fazer alguma música nova a contar com esse factor.

Daquilo que tenho vistos nos últimos dias, há pessoas que se levantam e dançam. Veremos o que acontece. Independentemente disso, vai ser DJ set?

Eu toco sempre ao vivo, no Ableton. Uso o clip mode, que me permite disparar clipes. Se eu me enganar, tu percebes [risos]. É muito óbvio. Tenho de estar a contar os compassos, estar atento à plateia para ver se eles tão prontos para a mudança.

Então, há uma componente de improvisação no meio disso.

Sempre. Sem dúvida.

Achas que é algo que possas ter ido buscar ao jazz?

Sim. Mas vem, também, da particularidade na forma como abordei o programa [de produção], que foi totalmente inversa ao que é habitual. Eu nunca fui DJ. Na altura em que comecei, só tinha o computador. Tive um problema a nível de habitação. Estava a morar num estúdio, sem cozinha ou casa de banho. Tive de aprender desta forma. Comecei a actuar em clubes e fui treinando durante um ano. A certa altura, senti que já tinha descoberto a minha identidade na cena de clube.

E quem és tu?

Eu não sou DJ. Isso é certo.

Então, és um produtor que toca ao vivo?

Isso. Há pessoas que chegam ao pé de mim e dizem, “tu não és um DJ verdadeiro”. Em vez de tomar isso como uma crítica, vou é tentar levar a minha cena ainda mais para a frente. Às vezes, no meio das minhas actuações, eu paro a música e meto discursos a tocar.

Dois dos últimos sets que vi ao vivo foram do Madlib e do KAYTRANADA. Eles também não são bem DJs, no seu sentido mais clássico, mas as coisas funcionam.

Funcionam, claro. A cena é que eu posso mesmo parar a festa [risos]. E as pessoas nem sempre gostam disso. Muitos músicos e técnicos de som até podem gostar desse aspecto, mas para a maioria do público é, “tu estás a quebrar a cena”.

Tivemos um concerto, no Coliseu Micaelense, de uma banda portuguesa chamada Sereias.

Eu adoro esses gajos.

Aquilo que eu achei mais interessante foi que eles estavam a “mandar” as pessoas para fora. A sala estava muito mais vazia no final do que no início do concerto. Gostei dessa ideia, de “eu não tenho de tocar para agradar”.

Eu jogo dos dois lados. Posso dizer-te que, lá para os últimos 20 minutos da actuação, tendo a passar canções menos apelativas às massas. Não sei se conheces um género musical da Tanzânia chamado singeli. É um estilo de música muito rápido, quase impossível de dançar. Podes tentar saltar ou algo assim [risos]. Lembro-me que, quando toquei das primeiras vezes, as pessoas ficaram confusas. Muito confusas. “Wow! Isto é muito rápido e muito repetitivo.”



Estamos a falar de que tipo de velocidade, 180 BPMs?

Se calhar até chega aos 200. Por aí. Descobri que cortar a velocidade para metade faz com que aquilo soe a reggaeton [risos]. O mesmo se passa com a batida dos jovens angolanos de Lisboa. Tu desaceleras aquilo, metes um beat de reggaeton a tocar e aquilo cola quase sempre. Creio que tenha a ver com aquele ritmo, clave, que encontras na salsa ou no bolero. Parece que tudo vem daí, tanto o reggaeton como a música africana. Por exemplo, se tu desacelerares o techno, já sentes uma coisa diferente.

Quando tens de explicar a alguém aquilo que tu fazes musicalmente, de que maneira é que o descreves?

Eu só digo às pessoas que sou um músico de clube. Um gajo que pertence à cultura de clube. Sinto-me parte dessa comunidade. Se for preciso simplificar, digo que faço reggaeton. Algumas pessoas vão pensar em reggaeton e lembram-se do “Despacito” e dessas cenas. Eu não me importo de as corrigir e dizer-lhes que não é isso que eu faço. E digo-lhes que basta irem à Internet, fazerem uma pequena pesquisa e percebem que o reggaeton é uma comunidade bastante ampla, tal como muitas outras comunidades. Mas nunca senti muito essa necessidade de me descrever. Quando comecei a fazer imprensa pela primeira vez, tive de arranjar forma de me descrever para que as pessoas percebessem o que eu faço. Nos dias de hoje, nem me preocupo.

Não tens de me dizer qual é o rótulo que uma editora colocaria na tua música. Emocionalmente, o que é que a tua música diz? Será um som de resistência?

Sim. Eu adorava chegar a um ponto em que existe um aspecto social mais prático e constante agregado àquilo que eu faço. Porque, no fim de contas, as pessoas tiveram de frequentar uma festa para me ver. Uma festa é um acontecimento privilegiado, que promove um espaço seguro. Por norma, eu digo que aquilo que eu faço é descendente da música caribenha.

Falas de festas como espaços seguros. Se fores a uma festa de dancehall em Kingston…

Pois é. Não podes dizer que seja um espaço muito seguro para certas pessoas. Mas é curioso que muitos dos meus amigos gays estão a tocar dancehall. É diferente, porque existe todo um outro nível de violência na Jamaica. Há muitos sítios onde podes ser morto. São mortas pessoas negras a toda a hora, mas isso não acontece necessariamente devido à música.

Antes desta entrevista, estive a ler sobre ti e deparei-me com um conceito muito interessante: tu fazes música ilegal.

Pois faço [risos]. E tenho de parar com isso!

Achei interessante essa tua cena de contornar as regras. Provavelmente até é por isso que a tua música é muito difícil de encontrar no Spotify, por exemplo.

Sim. Eles mandam abaixo. Acho que o algoritmo acaba por apanhar. Mas, no início, cheguei a ter um edit do Damian Marley no Spotify [risos]. Sei que eles usam algoritmos para apanhar essas cenas. No meu caso, cheguei a arranjar problemas e houve pessoas que ficaram chateadas.

Bateram-te à porta?

Levaram-me a tribunal. Mas é algo sobre o qual eu não posso falar. Eu acho que essas pessoas devem ter pensado que eu fiquei rico. No geral, as pessoas estão sempre na boa com tudo, até que isso alguma vez as afecte financeiramente. Na cena de clube, as pessoas fazem isso a toda a hora. Até eu já fui samplado e meteram a música no Spotify. Eu não me vou queixar, até porque eu entendo as coisas e aquilo nem vale grande dinheiro. Acho muito triste essa abordagem capitalista no mundo da música. Mas isto não sou eu a tentar desculpar-me. Sei que o que fiz está errado.

Acho que o sampling, a colagem e a citação são dos aspectos mais interessantes da cultura actual.

E, em especial, para pessoas como eu, com todas as questões habitacionais, que não me permitem sequer andar com eles de um lado para o outro. Agora estou numa situação melhor do que a que estava antes.

Uma outra cena que li sobre ti, descobri uma história que metia o Kanye West.

Espera. Onde é que apanhaste isso?

Posso passar-te o link, depois. Tenho isso guardado no computador.

Ok. Eu acho que contei essa história a alguém, mas tenho quase a certeza que foi uma daquelas situações de “não podes contar isto a ninguém”. Lembro-me de falar sobre isso com um jornalista e de lhe ter pedido para cortar aquela parte. Mas ele tinha um trabalho para fazer [risos]. Acho que foi um gajo de Brooklyn. Mas desculpa por te ter interrompido.

Eu achei muito engraçado, aquilo que li sobre a vossa interacção. Ele quis estar contigo para conhecer o teu modo de fazer as coisas, não necessariamente para lhe fazeres um beat.

Vou-te ser honesto: o Kanye West é um dos meus produtores favoritos. Não tenho a mesma estima pela sua imagem e pela sua pessoa e, para mim, é muito difícil de separar o artista do indivíduo. Ainda assim, tenho um fraquinho pela música dele. E, daquilo que eu vi, ele não tem nenhum assistente, nem ninguém que lhe vá dizer, “ouve isto” ou “ouve aquilo”. Ele está muito alinhado com o que está a acontecer agora e ele entende que a cultura está sempre a mudar. E as pessoas que fazem a música mais interessante são aqueles que não estão dentro da indústria. Ele sabe disso. Mas respeito-o. Estive por lá durante uma semana. Às tantas, “preciso de ir para casa. Não sou rico para estar aí a viver em hotéis”. Ele deu-me aquele, “nós depois falamos”, e claro que acabámos por nos desligar. Entretanto, também se deu todo aquele aparato com o Trump e tudo mais. Não queria assim tanto estar envolvido naquilo.


https://www.youtube.com/watch?v=YatZ9FNvnXE

Ouviste o último álbum dele?

Ouvi sim.

Na crítica que fiz sobre esse disco também disse isso, sobre ter um fraco pela música dele, embora seja muito difícil de lidar com todas as tretas que vêm agregadas a ele.

Para esse Donda, eu acho que ele nem convidou ninguém de fora para produzir com ele. A produção desse disco soa-me muito básica, agarrada aos moldes da indústria. E eu acho que foi precisamente por isso, por não ter convidado malta nova para trabalhar. Ele tem dois miúdos no álbum, dos quais eu nunca tinha ouvido falar. Achei mesmo estranho o facto de eles terem um estilo de produção muito semelhante ao que escutamos em músicas do Calvin Harris ou da Taylor Swift. E eles participam em várias faixas. Portanto, eu acho que ele queria mesmo ir ao encontro deste tipo de progressões de acordes, muito básicos. Sabe muito ao presente nesta era dos serviços de streaming. Acho que muita coisa na indústria tem uma certa matemática, em que quando funciona… funciona sempre. Não sei se te lembras, mas houve aí um ano em que toda a gente tinha marimbas. “De onde é que isto veio?” Toda a gente estava a usar a marimba. Acho que é por ter um som que te faz sentir feliz e está associado a um clima mais quente. São as tendências da indústria.

O teu nome está também presente no álbum do Pedro da Linha. Como é que isso aconteceu?

O Pedro é doido! Ele não parou de me chatear até eu lhe dizer que aceitava [risos]. E sabes o que é engraçado? Quando o vi pela primeira vez, pensei, “será que isto é só um daqueles putos brancos?” Mas não! A cena dele é mesmo louca e isso deve-se ao facto de ele viver em Portugal, que eu creio ser diferente do que viver noutro lugar. A influência africana é muito forte aqui. Tu ouves isso nos músicos de cá.

Conheces uma banda que toca aqui amanhã, os Ferro Gaita?

Não.

São uma banda cabo-verdiana que toca funaná. Acho que vais gostar, porque são uma banda de veteranos e têm uma sonoridade hardcore.

Ah, sim. Deve ser uma banda que tenho ouvido toda a gente a falar.

Eu vi-os ao vivo pela última vez há dois anos. Posso dizer-te que eles ainda não perderam a genica.

Mas deixa-me dizer-te que o que vi das Sereias foi das melhores cenas ao vivo a que assisti nos últimos tempos. Eu tenho alguma aversão à música ao vivo, por vezes. Isto porque sinto que, muitos deles, caem naquela estética de canção que apenas dá destaque ao cantor. Sem querer ofender ninguém, é um formato que eu não suporto. Faz sentir que existe um líder do grupo. E isso, para mim, é um problema.

Acaba por ser uma representação da sociedade, em menor escala.

Ou da cena militar, ou de uma equipa que está a fazer um filme. Olha, sou um grande fã do Pedro Costa. Um grande fã, mesmo. Lembro-me de ter ouvido o Pedro a contar a história do Ossos e até cheguei a escrever um ensaio sobre isso. O filme tinha aquelas duas irmãs, que eram muito silenciosas durante o filme todo. Elas disseram-lhe, “quando quiseres fazer o teu próximo filme, volta que nós ensinamos-te a fazer um”. Agora vê como é o processo dele nos dias de hoje. Quer dizer, estas duas mulheres mudaram o trabalho dele para sempre. Em troca, ele mudou o mundo do cinema para sempre. E ele é hardcore. A dedicação dele não tem par. Nem sei porque é que trouxe este assunto ao de cima [risos].

É porque estamos a ter uma conversa. Não tem qualquer problema. Eu é que já só tenho mais uma questão para te colocar, que tem a ver com o facto de já teres estado em ambos os lados da academia — primeiro como aluno, depois como professor. Nós investimos muito para poder aprender alguma coisa nova, seja ela do ramo das artes ou da ciência, por exemplo. Depois disso, temos de gastar ainda mais energia para nos libertarmos daquilo que nos esforçámos tanto por aprender, não é?

Quando eu saí da escola, dediquei-me a um projecto de cinema. Queria ser tal como o Pedro. Queria encontrar uma comunidade e dedicar-me a essa comunidade para sempre. Achei isso mais difícil do que imaginava. A razão pela qual escolhi a música de clube foi porque, de um modo geral, as pessoas desse circuito são politicamente mais progressivas do que as pessoas que trabalham com outras formas de arte. Essas outras vertentes estão muito amarradas ao mercado, são como uma porta giratória detida por um qualquer curador ou museu. E são sempre as mesmas personagens. A música também está amarrada ao mercado mas… Tu lembras-te quando, há uns seis ou sete anos, os miúdos da Príncipe dominavam por completo a cena de clube mundial? Tu vias o Nigga Fox ou o Marfox ao vivo e aquilo era uma cena especial. Eles são heróis para mim, mesmo estando na América. Por alguma razão, o mundo deixou de os procurar. Foi como se já tivessem tido a oportunidade deles. Ou, então, era apenas uma tendência e nós, neste momento, já estamos noutra tendência. É assim que a música se move. Isso fez-me ficar triste, mas também me fez pensar, “não é isto que eu quero”. Mesmo que a cena passe, eu vou continuar a mexer-me da maneira que quero. Não posso deixar que seja o mercado a ditar o meu caminho.

Até porque o sucesso é uma espécie de ilusão, que te faz pensar que está tudo bem. Pode ser uma armadilha.

Sim. Há pessoas que me perguntam, “porque é que tu te vais meter nesse festival durante cinco dias? Vais perder dinheiro nessa digressão”. A cena é que eu não quero ser um músico profissional a viver de digressões. Esse não é o meu objectivo. O meu objectivo é conhecer pessoas novas, músicos novos, sentir-me desafiado pela música que escuto. Aqui, eu estou a descobrir muita música que não descobriria em mais lado nenhum, a não ser que alguém a metesse a tocar para mim. Para mim, isso é muito especial. Depois, eu adoro campismo e adoro este tipo de música menos conhecida, que tu só descobres quando vias ao local.

Sentes que estás numa expedição?

Neste momento, sim. Eu tenho algum dinheiro e não preciso de andar todos os dias de um lado para o outro a tocar. Eu não quero ser um músico que ganha a vida a andar em digressão. Só não quero chegar aos 50 anos e pensar, “toquei em tantos locais e não conheci ninguém.” Isso seria triste.


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