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Fotografia: Kim Hiorthøy
Publicado a: 21/10/2020

Inner Song é o segundo longa-duração da galesa e conta com John Cale entre os convidados.

Kelly Lee Owens: “Eu coloquei coração e alma nas minhas músicas e espero que as pessoas consigam ouvir isso”

Fotografia: Kim Hiorthøy
Publicado a: 21/10/2020

Se na estreia já se falava da relação medicinal da sua música, o regresso de Kelly Lee Owens faz-se em jeito declarado de auto-medicação. Inner Song é fruto de experiências traumáticas e ansiedades que acompanharam a artista durante os dois últimos anos. Um trabalho que documenta o fim de uma parte da sua vida, mas também o nascimento de outra. No meio de desconforto e lágrimas, nasceu uma vontade de lutar pelo bem colectivo.

Numa entrevista tão honesta e pessoal como o seu segundo trabalho, a produtora deita-se no divã e confessa-nos, entre muitas coisas, a necessidade de contar a sua jornada para ajudar os outros. Fala das diferenças entre os seus dois álbuns, revela as suas preocupações com o momento actual, as saudades do seu País de Gales ou a urgente necessidade de parar e repensar.



Sei que gostas de meditação e que praticas diversas vezes imersão no som de gongos. Este 2020 tem sido um ano que puxa pela necessidade de se ter vários desses “banhos”?

[Risos] Sim! Agora, mais do que nunca, acho que é necessário encontrar forma de te reencontrares e os rituais podem ser algo que te ajudam a ter esses momentos. Tem sido duro, emocional e psicologicamente, até mesmo financeiramente. As pessoas estão realmente a passar por dificuldades, a nossa base de segurança está a ser completamente estilhaçada e o que cada vez mais vemos é que estamos a entrar num nível básico de sobrevivência. Ter rituais e coisas que te fazem sentir bem, despertam ou entusiasmam, são muito importantes agora. Mais do que nunca, até!

Nesta altura estamos a entrar na segunda vaga do COVID-19, avizinham-se tempos ainda mais complicados, com dificuldades acrescidas, mas, focando-nos mais no Reino Unido, vemos várias salas de concertos a encerrar definitivamente e músicos a cancelarem as digressões que tinham planeadas para o próximo ano. Recentemente, tens sido uma voz muito ativa sobre estes acontecimentos, inclusive partilhando petições para apoios as salas. O que achas que neste momento é preciso fazer para equilibrar de novo a estrutura económica por detrás do mundo da música?

Em termos de capitalismo, a arte não tem valor, a cultura não é valiosa. Isso já vem detrás, mas, na realidade, o que mantém o capitalismo vivo e a funcionar? Música, filmes, programas de televisão, arte, o escapismo positivo que estas coisas oferecem é fundamental para o bem-estar das pessoas, para o seu self-care, para se conseguirem expressar. Temos de descobrir uma maneira de valorizar a arte e a cultura pelo seu real valor. Obviamente que este é um problema complexo. As pessoas, nesta altura, têm de se balançar entre a sua segurança, o seu bem-estar e o factor económico. Temos de pensar em coisas como o nível de pobreza no futuro ou a saúde a longo prazo. Neste momento, provavelmente há mais pessoas a morrerem dos efeitos económicos que a pandemia está a gerar do que da própria pandemia. Da mesma maneira que é importante continuar a olhar com atenção para o número de mortes em comparação com o número de infectados. Claro que qualquer morte é uma morte a mais. Eu trabalhei num local onde as pessoas estavam constantemente a falecer e, acredita, eu sei que ninguém quer isso, mas ao mesmo tempo temos de ter muita atenção ao nível de pobreza no qual as pessoas estão a entrar, aos problemas alimentares que isso gera, segurança e todas as outras coisas. Temos de encontrar uma maneira em que as coisas continuem a acontecer de uma forma positiva, mas protegendo as pessoas mais vulneráveis. Não estou a dizer que isso vai ser possível este ano. Acredito que seja no próximo, mas acho que este deveria ser o plano a longo prazo, porque não acredito que as estruturas, como as temos desenhadas ocidentalmente nesta altura, estejam a funcionar, principalmente a nível da sua integridade e da integridade de quem as gere.

Eu marquei uma tour para o próximo ano porque tinha de o fazer, tanto financeiramente como emocionalmente. Quero ter contacto com as pessoas e se escolhesse não marcar concertos nada acontecia. É a intenção por detrás disto que é realmente importante. Os bilhetes que já foram vendidos nesta altura vão ajudar as salas e o sistema, porque o dinheiro vai para eles. É isso que vai permitir que eles continuem vivos até isto passar.

Chegaste a dizer que sentias uma certa culpa por teres abandonado o teu trabalho de auxiliar de enfermagem. Isso fez-te voluntariar agora para apoio ao COVID-19?

Cheguei a pensar nisso, mas já passou tanto tempo e as coisas não são assim tão simples. Não podes estar simplesmente a entrar e a sair. Foi também um período onde estava a precisar demasiado de me encontrar enquanto pessoa, de perceber o que estava a acontecer comigo e quem eu era. Precisava desse tempo para mim. Além disso tenho uma equipa que depende de mim. Acabo por ser a chefe de um grande grupo de pessoas que precisa que eu esteja presente e que decida coisas por eles. Não foi a altura certa. Mas sim, desde essa altura que tenho pensado numa forma de voltar e não só. Também em como posso usar as minhas plataformas para ajudar. Nesta altura estou a trabalhar com o governo do País de Gales, de onde sou natural, para criar um programa através da criatividade e do bem-estar para combater problemas que o país tem enfrentado. Tenho observado tanta instabilidade a nível alimentar, problemas de pobreza, problemas com drogas…

Este é um álbum muito pessoal, que nasce da consequência de momentos complicados que viveste recentemente; de traumas e dores. Sabendo que no primeiro álbum a tua música foi muito associada ao teu passado na enfermagem manifestado num lado mais clínico da tua música, de como ela procura influenciar a saúde mental dos ouvintes, achas que essa ligação pode ser também transportada para este, mas de uma forma pessoal, como se fosse um álbum medicinal para ti mesma?

Inicialmente sim. Este álbum foi pensado como pessoal, como algo para mim, em termos da minha jornada interior e do que eu estava a passar, mas o meu objetivo é sempre que, através desse lado pessoal, chegue às pessoas e ofereça algo com que se possam identificar. Quando tens essa abordagem, acabas por ter de olhar para o ti mesmo, e de uma forma honesta tentar comunicar essa informação com os outros, transportá-la para algo maior que é o coletivo. O individual acaba por ser colectivo, está tudo relacionado. O trabalho de um artista também é esse de observar-se e observar o mundo. Perceber o que se passa e, através de si, comunicar isso. Se me vejo numa situação ou num relacionamento que não é bom, que por muitas vezes apresenta dificuldades, eu tenho de dissecar isso. Perceber, por exemplo, porque tantos homens brancos no ocidente apresentam essa posição tóxica em relacionamentos e porque não conseguem simplesmente amar de uma forma livre. E o mesmo para mim, porque é que me envolvi nessa situação, assim como outras mulheres. Está tudo ligado a um espectro maior. Basicamente demonstrar isso é o meu trabalho.

Para mim, ouvir uma música como “L.I.N.E.”, a certa altura, foi quase desconfortável, por sentir que estavas a escrever algo tão real e tão verdadeiro, que te estavas a expor na tua forma mais vulnerável naquelas letras. E acho que é algo muito corajoso e forte da tua parte escrever algo assim. Como é que foi trabalhares num álbum como este? Tão pessoal, tão honesto, trabalhar de uma forma assim tão despida e realista?

Essa é uma boa questão. Definitivamente acho que a palavra “forte” é boa porque foi poderoso voltar a ouvir aquilo que escrevi, ouvir-me a mim própria, porque era a minha realidade, era verdadeiro. Mas lá está, acabava por ser algo em serviço do outro, como se houvesse alguém que precisava de ouvir aquelas palavras. Há pessoas que precisam de voltar a conectar-se com a realidade. Tenho esperança de que alguém, ao ouvir aquilo, se sinta de novo com forças e motivada para reagir. É um dever que sinto que tenho de cumprir, apesar de todo o desconforto que possa ter tido enquanto gravava estas músicas. Eu acabei por me sentir bem com estar desconfortável, porque era algo maior que mim própria. Foi algo que senti necessidade de fazer na realidade. É por isso que os vocais estão mais realçados que os outros sons. Em termos de volumes e camadas. Foi como se tivesse um foco pop mais orientado, porque senti que tinha de transmitir a mensagem e permitir que as pessoas se relacionassem mais facilmente desta vez com as palavras.

Inner Song acaba por ser um álbum que apresenta uma certa dualidade, porque tem esse lado carregado, triste, traumático, que falaste agora e que se transporta de uma forma calma, mas depois tem momentos imensamente catárticos, efusivos, de esperança, muito representados nos momentos mais dançáveis e de certa maneira mais imersivos do álbum. E este é um álbum que pelo seu tema, podia facilmente resumir-se a esse lado mais baladeiro, melodioso, atmosférico, dos momentos tristes e reflexivos. Porque é que colocaste esse lado efusivo e esperançoso no álbum?

Eu sinto que de uma forma muito simples acabo por ser atraída para esses sons e para esses movimentos. A vida é movimento. Em “On”, por exemplo, eu queria sentir-me livre e meio que sair da primeira metade da música porque ela é dolorosa para mim. Eu chorei tantas vezes a ouvir aquela música enquanto estava no estúdio. Senti que precisava de algo mais e, ao mesmo tempo, queria fazer justiça à jornada na sua totalidade. E sim, sinto esse dever de apresentar alguma esperança porque, genuinamente, senti isso na minha vida. Nem sempre somos capazes de fazer esse processo. Eu, apesar de tudo, considero-me sortuda, como mulher branca a viver num mundo ocidental, por ter sido capaz de ter ultrapassado esta má situação, mas não quero estar a ultrarromantizar as coisas, porque muitas pessoas não conseguem sair. Por isso, eu tenho de oferecer uma ajuda através de emoções e em termos sonoros. Espero conseguir transmitir essa esperança. Mas sim, eu sou atraída a transmitir a dor quando ela parece o certo, mas sem ultrapassar o luto também. É a única maneira de pôr as coisas.

Sentes que te voltaste a encontrar com este álbum?

Sim, foi como o fim e o início de algo, documentar esse processo. Uma metade de passado e outra metade a documentar o que estava a nascer, de alguma maneira. Eu sinto que estou emocionalmente numa nova fase da minha vida, mais centrada e com os olhos mais abertos do que alguma vez estive. Continuo a olhar para mim e a fazer o meu trabalho o melhor que consigo. Mas sim, foi meio que dizer adeus a algo e a parte de mim mesma, também.

Voltando ao processo criativo, como foi construir estas músicas em termos instrumentais? Procuraste ter uma abordagem mais analógica com este álbum? Eu pergunto isto porque, ao comparar os dois, este transporta muito mais uma visão tua a mexer em sintetizadores retros, sequenciadores. A melodia tem uma vibe muito 80s em certos momentos, quase a fazer lembrar linhas que ouvimos às vezes em Stranger Things, por exemplo.

[Risos] Curiosamente as pessoas já me falaram isso várias vezes. O processo do primeiro álbum foi muito baseado em procurar criar micro-beats antes de tudo o resto. Estava obcecada com o Vespertine da Björk. Curiosamente estive a ouvir esse álbum hoje de manhã. Adoro-o, é um dos meus favoritos! Inspirei-me muito pelo processo dela de colecionar micro-beats, escolhê-lhos em casa e acabar por fazer um álbum através disso. Tudo no fundo foi baseado em pequenos beats, ritmos e detalhes, mas ao mesmo tempo, meio que não sabia o que estava a fazer. Estava a tentar usar tudo e controlar. Não tinha nada pré-concebido, as coisas iam acontecendo, uma ideia levava à outra. Foi mais meticuloso e não muito programado. Demorou quase dois anos. Fazia uma música aqui e ali e acabou por se tornar um álbum mais aberto. Era mais uma coleção de coisas que ia fazendo. Com este foi condensar o oposto. Lembro-me que a “Arthur” foi um pouco como este álbum; tive uma ideia e em 15 minutos fiz a música, foi uma loucura! Este teve um período restrito, foi entrar e deixar as ideias aparecer e fluir e no fim ver qual seria o resultado. Mas ia muito mais preparada, preparei bancos com kicks e hi-hats que gostava para não ter de perder três horas à procura de um simples snare. Desta vez não estava interessada nisso. Simplesmente queria deixar acontecer, deixar o meu ego falar. É engraçado, porque foi um álbum muito rápido em termos de construção, mas não tenho muita noção de o fazer. Quando eu tenho de explicar alguma música tenho mesmo de pensar e situar-me para ter uma ideia do que estava a fazer. Sobretudo quando estás numa fase de pós-trauma, a tua memória muda e deixa de ser tão clara. Então só me lembro que fluiu mesmo bem, porque foi rápido, e lembro quando acabei de entrar em pânico por pensar, “Meu Deus! Eu tenho de fazer um álbum!” e passei ao “Oh, espera… afinal já o fiz.”

Chegaste a usar field recordings no álbum? Fiquei a saber recentemente que tens uma paixão por essa prática.

Sim, usei. Eu procuro andar sempre com um Shure MV88 que ligo ao meu iPhone. Então tenho imensos sons gravados. Alguns mais orgânicos, tenho sons de comboios a chegar a uma estação, mas com alta definição, alarmes, maquinarias, maior parte são mais ideias vagas do que outra coisa. Por exemplo em “Flow”, o riff principal sou eu a tocar o meu hang drum na minha sala de estar, e acabei a usar isso como riff central de toda a faixa. Foi algo que simplesmente gravei no meu iPhone. Eu penso que sou uma pessoa que acaba por se activar com aquilo que me rodeia, acho que me inspiro com os sons em geral. Para mim, é bem mais interessante fazer um som através de algo que não é suposto ser isso, do que estar a olhar para um amontoado. Sinto que a natureza é o primeiro som, antes de todos os outros. É algo que temos profundamente amarrado ao nosso corpo, como se visceralmente respondêssemos a isso.



Abrimos a conversa a falar em meditação, e acho que é altura de voltarmos a tocar nessa parte. A tua faixa com o John Cale, a “Corner of My Sky”, para a mim é uma espécie de meditação, e ao ouvir o disco apercebi-me que de todas as músicas do Inner Song, é aquela que menos imagino como single, no entanto fizeste essa escolha.

[Risos] Eu estou constantemente a fazer coisas estranhas e que supostamente não deveriam ser feitas ou que as pessoas ficam sem perceber porque o fiz, mas é o John Cale! É incrível! Por isso vou lançar e pronto. Não o vou ter só escondido no álbum, quero mostrar ao mundo. É o John Cale! E sim, é meditativo, obrigado por dizeres isso. Lembro-me quando estava a produzir a faixa nessa altura, ela ainda nem tinha os vocais, recebi a visita de uma das minhas melhores amigas, e ela estava com problemas para dormir, já não tinha uma noite decente de sono há uns três dias. Estava mesmo com problemas, então perguntei-lhe se podia mostrar a música, e ela acabou por logo de seguida dormir umas 12 horas. Foi mesmo bom porque percebi que tinha ali algo. Foi óptimo porque ela é aquela pessoa a quem pergunto o que acha das músicas.

Sim, eu sinto que é muito meditativa, que é uma jornada, um espaço seguro para as pessoas, e acho isso tão bonito… Por isso apenas faço o que quero fazer, não me preocupo sobre o que deve ser single ou não. Faço aquilo que para mim é a minha verdade. É a mesma razão pela qual tenho uma versão a abrir o álbum. A viagem e a história precisam de falar da forma e pela ordem que sinto que elas devem ser contadas.

Pois eu ia perguntar isso, não deixa de ser interessante o facto de fazeres um álbum tão pessoal e abrir com uma versão da “Arpeggi” dos Radiohead.   

Eu adoro aquela música. De certa forma é um risco, mas a questão é: será mesmo um risco? Para quem? É uma introdução, não havia outro sítio para a colocar. É verdade que podia escolher não a ter no álbum, mas isso era aborrecido. É como se sonicamente fosse uma representação de onde vinha, de um espaço profundo onde chegava um pouco de luz do sol ou de ar. Tinha de começar com ela. A arte é sempre maior que a parte comercial.

E acabas o álbum a dizer “Wake-Up”. Achas que estamos a precisar de acordar?

Eu acho que estamos a acordar, devagar, mas a acordar. É um bocado como eu acordo. [Risos] Demoro imenso tempo. Eu penso que precisamos e estamos a acordar, não é altura para desistir. As conversas que estamos a ter e os tópicos que estamos a tocar parecem desconfortáveis nesta altura porque estamos a questionar muita coisa ao mesmo tempo. Esta é a era da exposição, de sermos expostos à verdade. 2020 é a verdade, para mim. E por muito que seja desconfortável é igualmente necessário para podermos avançar de uma forma mais honesta. Temos de ser realistas sobre o que está a acontecer e perceber que não há nada de errado em parar, recuperar, descansar… Aliás, sinto que todos devíamos aprender a fazer isso no nosso dia-a-dia, assim como quando não estamos a fazer isso, devíamos estar a lutar por aquilo que acreditamos e a mudar as coisas, fazer um futuro melhor, estar uns com os outros, reencontrar-nos com a natureza. Em “Wake-Up”, eu digo, “…is never pausing to take it in, always avoiding your sense of the dread”. Eu penso que o COVID acabou por ser a pausa que precisávamos. Eu digo isto há imenso tempo. Precisamos de parar e sentir onde estamos neste momento. Não podemos continuar a trilhar este caminho estupidamente, enquanto perdemos e destruímos tanto no planeta.

Eu perguntei isso porque somos a geração do Instagram, onde apresentamos sempre o lado bonito da vida e, às vezes, se calhar, estamos a suprimir as coisas más. Por exemplo, as últimas entrevistas que tive com artistas acabaram todos por referir em algum momento a questão da ansiedade ou da solidão na sua criação.

Interessante. Totalmente. Pois, nós acabamos por nos esquecer de como nos relacionamos uns com os outros. Da forma apropriada de o fazer. Diria que de alguma maneira acho que acabamos por ter medo. Mas eu penso que estamos a ter diálogos sobre estas questões, as pessoas estão a começar a falar mais sobre isso, a preocuparem-se mais com isso, porque ainda não percebemos totalmente os efeitos, ainda é algo recente. Mas penso que vemos cada vez mais pessoas preocupadas e honestas com os meios sociais e a utilizarem esses meio como uma ferramenta para expor todas as porcarias, para se exporem de uma forma mais vulnerável. As pessoas estão a ficar um bocado aborrecidas com esta coisa dos influencers e a ideia de vida perfeita e esse tipo de tretas. Nós todos já vimos a falsidade disso e as coisas têm sido denunciadas mais que nunca, por acaso. É um processo ainda. Mas tudo isto é uma dualidade, é a dualidade da natureza, a dualidade da vida. Vai haver bons dias onde uma imagem pode genuinamente capturar esse dia, é algo mesmo bonito e deveríamos partilhar isso. Acho que depende do indivíduo, se quer partilhar, desde que seja honesto consigo mesmo. Isso é o que realmente importa. É o que eu tento fazer, até mesmo na minha arte. Vais ver algumas imagens felizes no meu Instagram e quem é que quer saber disso? Eu coloquei o meu coração e a minha alma nas minhas músicas e espero que as pessoas consigam ouvir isso. Essa é a minha perspectiva, mas é diferente para todos.

Falaste nas tuas preocupações ambientais. É interessante que neste álbum apresentas isso de forma bastante clara tanto em “Wake Up” como em “Melt!”. Quando é que começaste a sentir a necessidade de debater este tema na tua obra?

É duro e sinto imensa dor e luto sobre esse assunto. Às vezes dou por mim a chorar por causa disso. Regularmente até. Sinto-me profundamente triste sobre este tema e isso acontece porque nesta altura sinto-me ligada a essa questão. Já faz algum tempo que me tenho questionado, até mesmo no primeiro álbum acabo por fazer essa ligação quando uso samples de sons da natureza. É outra forma de me conectar com aquilo que eu amo e de capturar enquanto ainda posso. Eu cresci num país muito ligado à natureza, onde há montanhas, lagos gigantes, um mar que não é nada calmo e sentes toda essa imponência e brutalidade, e acabas por respeitar a natureza e por colocá-la como algo muito central. Sempre tive essa ligação, mas tenho vindo a acordar aos poucos. Talvez nos últimos cinco anos tenho vindo, realmente, a perceber o que se está a passar. Demasiadas coisas foram propositadamente escondidas de nós. Eu acho que a mudança acontece se exigirmos mudanças nas grandes corporações. Mesmo durante a pandemia, tu percebes que 70% das emissões continuam a ser feitas por essas corporações, mas passam a ideia que a mudança tem de ser feita por nós, que está nos nossos ombros. Claro que podemos fazer mudanças. Comer menos carne, ser vegan e essas coisas provocam uma mudança nos padrões de consumo, mas estou cansada dessa linguagem de individualismo. Eu sei que o individual é o colectivo e que são mudanças para todos nós, mas o problema está nesta manipulação que nos faz acreditar em algo, enquanto estas empresas gigantes destroem o planeta dia após dia e passam em claro como se nada acontecesse. Nós temos de exigir essa mudança, a essas empresas, aos governos, até porque somos nós os consumidores, mas elas precisam de tomar a responsabilidade e praticar essa mudança.

Sinto que de certa maneira sentes saudades e falta do País de Gales.

Por acaso tenho saudades. Eu ia visitar agora a minha família, mas houve um lockdown local, por isso ficou cancelado. Mas sinto falta. Do ar, dos espaços, do mar, da cultura. E cada vez mais sinto a necessidade de retribuir com algo, porque vejo tanta pobreza e problemas que são resultado da opressão que o País de Gales sofreu do estado inglês. Foi tão prolongado que acabou por se enraizar e só agora começa a ser reconhecido como um problema. Imagina que na escola nem sequer aprendemos a história do nosso país, aprendemos a história da Inglaterra. É absurdo!

E da tua avó Jeanette, sentes falta?

Tanta. Faz nesta altura um ano. Foi uma perda enorme para mim. A forma como eu vejo a espiritualidade, de certa forma, ajuda-me a sentir a sua presença, umas vezes mais que outras. Hoje, por exemplo, sinto a sua presença de uma forma muito forte. É como se apenas tivéssemos mudado o nosso estado de existir. Sinto-me tão privilegiada por ter tido alguém tão amável durante toda a minha vida.

Ela sabia que produziste uma faixa com o seu nome?

Não, na altura a faixa ainda não o tinha nome, mas ela ouviu o álbum. Tenho um vídeo incrível dela a ouvir as demos e a dançar. Estava tão orgulhosa e adorava ouvir a minha voz de uma forma tão clara na mistura. Ela adorou ouvir a “L.I.N.E.”, a “On”, a “Wake Up” e a “Luminous Space“, que fiz com o Jon Hopkins. Ela adorou o que estávamos a criar e o apoio que ele me deu, o facto de me colocar na plataforma dele.

Falaste do Jon Hopkins e isso fez-me lembrar que tu sempre tiveste um apoio muito presente de grandes nomes como ele, o Daniel Avery, o Ghost Culture, que produziu os teus dois álbuns. E uma coisa muito interessante é que, recentemente, estão a aparecer imensas produtoras interessantes em comparação com o passado em que, praticamente, só a Nina Kraviz vinha à cabeça quando se pensava de uma mulher muito popular no mundo da eletrónica. Achas que os homens nesta altura estão mais predispostos a dar esse push do que estavam anteriormente?

Sim, acho que sim. Eu tive homens fenomenais que me suportaram na minha vida. A questão é que isto não devia ser visto como uma batalha de sexos, mas simplesmente algo natural como o Jon Hopkins fez. Ele não me pôs numa plataforma porque sou uma mulher, colocou porque adorou o meu primeiro álbum. Boa arte é boa arte e as pessoas certas sempre vão apoiar boa arte.

Nesta altura o próximo passo é apresentar este álbum ao vivo, algo que ainda não foi possível. No entanto estou curioso até que ponto o facto deste álbum ser mais pessoal e mais melódico pode mudar o teu concerto.

Eu já tive a reprogramar o live show. É, obviamente, uma combinação dos dois álbuns, por isso tem muitos momentos mais relaxantes e introspetivos, mas também tens os bangers, os momentos intensos e divertidos. É um concerto em que vou cantar mais, e sinto-me bem com isso. Acho que as pessoas perceberam que sou uma produtora e que preciso de menos pressão para conseguir um bom resultado vocal, por isso vai haver mais pré-produções. Parece-me mais intenso, de certa forma maior e mais alto, o que é altamente! Estou nesta altura a trabalhar na parte gráfica com a mesma pessoa que trabalhou anteriormente comigo, por isso vai haver uma relação entre os visuais, mas ao mesmo tempo também vai ser diferente. Mal posso esperar para voltar a dar concertos porque soa a algo mais profissional, maior, mais desafiante. Estou entusiasmada.


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