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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/06/2022

À procura do que é seu — sem atalhos.

keiyaA na ZDB: transparência em cama de vibrações

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/06/2022

A programação deste ano da Galeria Zé dos Bois está a ser generosa para quem aprecia rap e r&b e péssima para quem vaticina, há muito tempo, o esgotamento artístico destas duas linguagens musicais que são tão próximas. Nos últimos meses, Navy Blue e Fly Anakin defenderam a nobre arte da rima na sala lisboeta; anteontem, keiyaA sustentou a crença de que o legado do neo-soul estará bem seguro nas suas mãos.

Os soulquarianos podem ser considerados o apogeu do movimento e a autora de Forever, Ya Girl (2020), que encontrou liberdade nessa específica expressão, seguiu os mandamentos do colectivo (“offbeat rhythms, unorthodox chords, stacks of harmony, an overall rebellious attitude towards the status quo“), permitindo-se a explorar os caminhos menos óbvios enquanto vocalista e produtora — Erykah Badu e J Dilla (onde estiver), principalmente, devem sentir-se orgulhosos cada vez que ela canta ou dispara algo do seu sampler.

Trocar Chicago (onde tocou saxofone em sessões com Mick Jenkins, Chance The Rapper, Noname e Vic Mensa) por Nova Iorque (onde se enturmou com dj blackpower aka MIKE, Armand Hammer ou Nappy Nina) à procura de uma comunidade que a compreendesse foi um risco que compensou, decididamente, como pudemos comprovar ao vivo. Depois de Anysia Kym tratar da abertura, Chakeiya Richmond colocou-se à vontade perante uma plateia receptiva e comunicativa (muitas trocas de amor de parte a parte), recorrendo a uma SP-404SX para disparar as bases instrumentais e a microfones que não lhe deram grande descanso (mas que também não a conseguiram irritar) para fazer sentir os seus dotes vocais — e aí navegou em frequências onde sintonizámos, em diferentes alturas, a Solange de A Seat At The Table ou o relaxo inebriante de Badu e a firmeza de Ms. Lauryn Hill.

Mostrando-se agradavelmente surpreendida por estar a tocar em território português e por ter tantas pessoas negras no edifício, quase mandando um “quem diria…?” nas duas situações, a artista falou abreviadamente sobre o facto de ter sido sem abrigo e de ter andado de sofá em sofá enquanto não encontrava um tecto seu para a proteger do mundo lá de fora. Muitas das canções do seu álbum de estreia são fruto dessa relação entre o interior e o exterior, pensamentos muito íntimos que retratam essa vontade de reclamar respeito (o mesmo que, de outra forma, Aretha Franklin chegou a pedir) e aquilo a que sente ter direito, mesmo quando não estamos naquilo que achamos ser o nosso melhor. Quando cantou “Who is supposed to ride or die for me if not I?”, só nos faltou bradar um “ámen” aos céus.

Entre momentos mais introspectivos e outros em que até deu para vê-la a balançar ao som de alguns grooves mais dançáveis, “Hvnli”, “Negus Poem 1 & 2” e “Every N**** Is a Star” foram dos três dos pontos mais memoráveis da actuação — e até houve direito a que a electricidade fosse abaixo a meio de uma das faixas. Porém, o momento de total comunhão aconteceu em “Do Yourself a Favor“, a gulosa versão de um tema escrito por Prince & Pepé Willie que deixaria um dos melhores remisturadores deste mundo, Knxwledge, em sentido; e ainda se apropria sem medo da letra e do seu conteúdo (“não é mesmo um original dela?”, pensámos de imediato), apresentando também aí a tal inventividade rítmica (o falso sloppy) da maneira como programa os seus beats. Ao contrário do que pede nessa canção, quando passarem por ela, não se esqueçam de elogiá-la: merece isso e muito mais.

Num daqueles dias em que os astros se alinharam, tudo bateu certo: a postura da própria, a música, o público e o espaço foram o que tinha de ser para dar a melhor das experiências ao dois lados sem que fosse necessário atingir a perfeição. Satisfação total e uma noite para garantir alegria instantânea cada vez que vier à memória no futuro.


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