Eis um problema de primeiro mundo: a capacidade de esculpir um som de assinatura no álbum de estreia. Em
99.9%, depois da propedêutica do EP
KAYTRA TODO,
Kaytranada defendeu a tese de que era cioso desde os seus dias no SoundCloud: a naturalidade da boda entre house compassado e r&b de ponta. Convocou os estados gerais (Craig David,
Syd,
.Paak…) para fazer um caleidoscópio. Para provar que a remistura de “If” (com aprovação retroactiva de Janet Jackson) não era um golpe de mestre fortuito, e sim a caução para umas águas furtadas no panteão dos anos 2010.
Não apenas uma tese, mas a alavanca para uma perseguição a alta velocidade:
Rihanna e
Robert Glasper, Cassie ou
Freddie Gibbs,
Kendrick Lamar e
NAO,
Talib Kweli ou
Mary J. Blige… Todos o acossaram para provar da sua ambrósia, que desde 2016 se tornou um mote para a colaboração — mais que o fabrico próprio de Kaytranada a solo. Aos
99.9% que fizeram uma epopeia de veludo, somou-se a centésima de uma
beat tape mais sóbria, e fomo-nos aproximando do bolo inteiro por um rasto de migalhas: “Nothin Like U”, “Chances” e “Dysfunctional” não foram os tiros certeiros que se esperavam, por se encostarem à faixa do primeiro disco. E não foram munição suficiente para suprimir as súplicas virtuais por um álbum — que acometiam o haitiano-canadiano à micro-cólera, ele que continuava a trabalhar, só não depositava todas as oferendas no Spotify.
Em contagem regressiva para o Natal, Kaytra faz as vontades. Retornou ao seu verdadeiro apanágio: nos comandos de um imaginário de longa-duração, coordenando uma câmara cavernosa de talento.
BUBBA é, pois, um receituário para as discotecas mais angulosas, interiores, afogadas em luz azul. Quem as visite que se agasalhe: as suaves quenturas do trabalho anterior arrefeceram, embeberam-se numa névoa mais lânguida, num reduto de house sem celeuma, que abranda — sem atrapalhar — os esteios do Kaytranada
sound. Cada síncope, cada vocal melífluo é depositado na sua linha de montagem, oleada de fresco; todo o padrão percussivo pugila docemente contra o verniz perfumado da canção. Face à identidade multicolor do irmão mais velho,
BUBBA remata com um
groove uniformemente futuro, uma coesão que pareceria fabricada num vácuo, se não lesse pela cartilha de
J Dilla.
A problemática de já ter um som de autor é que exige ponderar as opções, com pequena margem para não desiludir os habituados. Para um criativo como Kaytranada, a táctica jogada é conservadora, e a qualidade de ser tão escorreito quanto um disco pode ser fê-lo perder a adrenalina. Vizinhas da electrónica em analógico, “2 the Music” e “Go DJ” paginam o manual de utilização: a primeira está no limiar da esterilidade, uma secura com um
suspense inquietante e delicioso; a segunda arrasta-se em modo grogue, um incentivo opaco ao homem das máquinas. Iman Omari e
Mick Jenkins cedem a vez a outros convidados, de
Masego à criminalmente subvalorizada Estelle, passando por Teedra Moses, ou uma Charlotte Day Wilson a renascer como
disco diva.
O elenco é colado a partir de portentos do r&b — alguns de tessitura mais limitada, como
Kali Uchis, que escapa ao fatalismo em “10%”; no segundo verso, com uma modulação, traz uma lâmpada de génio vocal e melódico que só
Tinashe e
Pharrell voltam a acender. As vozes cavalgam menos sobre as batidas; em casos como “Taste” ou “Need It”, cumprem os mínimos da memorabilidade, a léguas de como Craig David ou
Vic Mensa coreografavam as suas prestações em
99.9%. Para esse laboratório, os convites estendiam-se a quem se quisesse miscigenar, como os
BadBadNotGood, com quem Kaytranada reimaginou o hard bop numa pequena viagem rutilante. Em
BUBBA, telefonou a quem se quis inscrever no seu xadrez, e acabou por afunilar o seu próprio potencial.
A estética do
cool, um arraial de laringes marcadas pela grelha em que o disco foi cozinhado, percussão em deslize calculado. Será a evolução modesta o único caminho a seguir, quando já se tem uma marca singular? O momento crítico do álbum é a prova em contrário: a meio de “Scared to Death”, o melhor instrumental (também há menos destes, e mais olvidáveis). Alerta
headbanger: o ziguezague do teclado é violentamente varrido por uma volúpia de sintetizadores convertidos em sirenes, uma sinfonia breve de graves a ruminar no fundo.
Nunca há soluções unívocas, quando hesitações e tragos de oxigénio destabilizam qualquer som de assinatura. Bem no final, Pharrell é alistado para a belíssima e electrizante “Midsection”; a languidez afro permeia o ar, as descargas eléctricas são transferidas num toca-e-foge de melodia para cenário. Três minutos deixam espreitar mil e uma novas — e velhas — razões para adorarmos Kaytranada, alérgicas ao frio. Pelos educados meandros de
BUBBA, contudo, recebemos um jacto bem-vindo de house-r&b — que trocou a roda-viva do passado por uma coesão sublime, mas não mata o germe residual da fome.