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Fotografia: Marco Antônio Gonçalves
Publicado a: 05/01/2022

Um espírito nómada para uma bagagem musical intercultural.

Katerina L’dokova: “Eu apaixono-me pela música por causa das pessoas e da forma como elas ma contam, mostram e tocam”

Fotografia: Marco Antônio Gonçalves
Publicado a: 05/01/2022

Nascida em Minsk, Katerina L’dokova rumou até Portugal em 2006, onde se encontra a desenvolver a sua carreira musical, fortemente caracterizada pela intersecção entre o jazz contemporâneo e a música popular de diversas culturas: celebra as danças tradicionais europeias em Ledok, mergulha na MPB com Katavento e reimagina o cancioneiro português em Travessia (duo com João Neves, vocalista que recentemente partilhou os palcos com Afonso Pais e o Omniae Large Ensemble de Pedro Melo Alves). 

No passado mês de Setembro, L’dokova lançou o disco homónimo de MOVA DREVA – “idioma da árvore” na sua língua nativa –, um projecto feito por um quinteto dedicado a revitalizar canções tradicionais da Bielorrússia e que conta ainda com o contrabaixista João Fragoso, o baterista António Loureiro, o clarinetista Paulo Bernardino e o trompetista Diogo Duque no seu lineup. Falámos com a vocalista, pianista e compositora acerca da exploração além-fronteiras que caracteriza todo o seu trabalho e, no caso de MOVA DREVA, da ponte que conecta as suas experiências musicais em terras lusas à sua vontade de conhecer, recuperar e difundir a identidade tradicional do seu país.



Como se deu a tua travessia desde a Bielorrússia até Portugal?

Em todos os minutos da existência humana acontecem travessias, migrações e imigrações, e também foi o que aconteceu comigo, porque a Bielorrússia não é um país muito fácil de se viver e já há muito tempo que a minha mãe e eu queríamos emigrar. Houve uma oportunidade de emigrar para Portugal, e cá estou!

Sentiste algum impacto especial com a música popular portuguesa?

Com certeza. Já vivo em Portugal há 15 anos, estive cinco anos nos Açores e agora vão fazer 10 anos desde que estou na região de Lisboa/Sintra; estudei jazz aqui, na Escola Superior de Música de Lisboa, e, como vivo cá, vou ter também influências de música popular portuguesa, e não só: tem a ver com as pessoas com as quais eu estudei, pessoas que encontrei no caminho, que me falavam de determinada música que depois ia ouvir, para além das colaborações que aconteceram com músicos de vários países, e a música acaba por ter sempre um bocadinho de raiz tradicional. Por isso, eu acho que a música que faço hoje em dia vai beber a diversas tradições e culturas do mundo, não está limitada à Bielorrússia. Em Portugal, por exemplo, já vão entrar influências de várias regiões e tempos, não passa apenas pela tradição, mas também por tempos e batidas de alturas diferentes da existência da música.

MOVA DREVA é um projecto que reúne repertório baseado em “canções quase desaparecidas” da tradição bielorrussa. O processo de investigação e recolha destas canções foi árduo?

No começo, a ideia era apenas apresentar uma canção durante o festival Ethno Portugal, que é um encontro de músicos de vários países que partilham a raiz tradicional do seu respectivo país. Para este encontro, tive que levar música tradicional da Bielorrússia, e percebi que não conhecia nada… Foi uma vergonha, pensei, “uau, eu vim dum país e não sei nada sobre a sua cultura tradicional”, porque na escola esta não é ensinada, e mesmo para encontrar algo fora da escola é um bocado escondido, porque a língua foi proibida durante 200 anos. Por causa de domínios como o da Rússia, e não só, trata-se de um povo ao qual continuam a tirar a memória cultural — e sem memória não existe povo.

E foi assim que a tradição foi sendo esquecida porque foi sobreposta pela cultura russa, soviética, tanto que hoje em dia, se procurarmos música tradicional bielorussa, aparece “música da tradição soviética”, que não é a mesma coisa. Foi o que aconteceu nos outros países que faziam parte da União Soviética, que também tiveram de ficar com a sua própria cultura apagada, submersa, por baixo da soviética. E é isso que me interessa, o que é que era dantes, porque acho que a tradição não se define apenas por cantar duma forma ou doutra, é também a forma de ver a vida, as brincadeiras tradicionais, como se faziam as festas e como é que lidavam com problemas, como é que eram os casamentos, o respeito pela natureza… 

A forma de viver aprende-se muito através das canções e de brincadeiras, e estou muito feliz por ver isso agora. Fui procurar através de livros, através de gravações, porque não há muito material na superfície, tens de procurar, mas hoje em dia com a Internet dá para pedir a alguém para enviar material. Infelizmente nunca consegui ir às aldeias e estar ali com as pessoas, fazer esta investigação de campo — ainda não tive oportunidade, fiz tudo remotamente, por via de livros e de gravações. 



Gostarias, então, de passar para esse nível de pesquisa no terreno?

Sim! Eu quero muito, já sei quais são os grupinhos que fazem isso todos os Verões, só que agora a situação política está muito dura, muito complexa, e não há forma nenhuma de isto acontecer neste momento, porque as pessoas fugiram, centenas de milhares de pessoas fugiram no último ano.

Acaba por se fazer notar um statement político ao repescar estes elementos tradicionais, portanto.

Sim, é uma junção de tanta coisa. Há uns anos apercebi-me que não conhecia a tradição do meu país, e quando nós não temos as nossas raízes às vezes ficamos… eu não sentia que a minha raiz estivesse completamente assente aqui, mas também não percebia muito bem a raiz de lá, então este também foi um trabalho para procurar o meu ser, para notar que todas as coisas que estão nas canções se calhar me fazem sentido: faz-me muito sentido ver a vida leve, da forma como está lá, e não só leve como também triste; por outro lado, faz-me sentido tentar procurar as coisas que não estão à superfície, e há pouca gente que faz música tradicional de lá… Bem, se pensarmos, não conhecemos muitos grupos no mundo a fazer música tradicional bielorrussa, não há muita coisa. Do ponto de vista político, sim, eu gostaria que as pessoas pudessem ouvir aquelas melodias; do ponto de vista pessoal também, estou à procura da minha raiz ali e a enraizá-la aqui. É tudo isto em conjunto.

Enquanto música radicada numa cidade associada à promoção da multiculturalidade, como sentes que tem sido o feedback dado por parte do público lisboeta?

Estou a aprender a procurar concertos e espero um dia conseguir fazer melhor o booking dos mesmos. Quanto aos concertos que têm acontecido, o público recebe muito bem a música, tem sempre interesse, e na verdade, as pessoas encontram paralelos e semelhanças com a sua infância — as canções que a avó cantava, ou por exemplo, um senhor do Brasil veio dizer que havia uma música de chuva na sua região que era muito parecida com uma das canções que nós também fizemos… Ou estórias, nós contamos estórias em português para que se perceba do que é que se fala; essas estórias fazem lembrar a infância, fazem muitas pessoas sonhar e eu acho isto tão bonito. 

As pessoas têm interesse, e são pessoas de várias nacionalidades, porque felizmente em Lisboa há muita mistura musical – quer dizer, não é apenas musical, mas, como vou mais a concertos, eu vejo muita mistura musical e acho isto lindo. Então, o meu projecto também encaixa nesta parte de multiculturalidade de Portugal ou de Lisboa, e inclusive foi apoiado pela Fundação GDA nas gravações deste disco exactamente pela questão da multiculturalidade.

Já enveredaste pela música popular de Portugal, do Brasil, da Bielorrússia… Há mais algum país cuja tradição musical tivesses interesse em explorar para um futuro próximo?

Não posso especificar assim… Adoro música brasileira, nunca me canso de a ouvir, gosto de descobrir coisas novas que têm acontecido por lá e tenho vários amigos que fazem música. Bem, eu acho que é a música que mais gosto, a música brasileira, porque mistura várias coisas de forma maravilhosa; tenho conhecido pessoas da Argentina e também gosto muito da música que se faz por lá hoje em dia. A música que eu descubro muitas vezes é por causa das pessoas que encontro no meu caminho. Por isso, se amanhã eu encontrar um músico do Sri Lanka e a pessoa me mostrar música de lá, provavelmente irei ficar encantada, mas é muito pelas pessoas. Eu acho que também me apaixono pela música por causa das pessoas e da forma como elas ma contam, mostram ou tocam.


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