A autora do espantoso Does Spring Hide Its Joy, a música Kali Malone, junto a Stephen O’Malley e Lucy Railton transpõem dia 23 a obra para o palco do Centro Cultural de Belém. Um disco que é marco ainda recente (2023) na música de carácter minimal e redentor. Fomos saber junto da mente criadora de espaços dessa dimensão sonora as entrelinhas desta musicalidade e o que ela pode esconder, como em título a estação do ano. A Primavera ainda está em curso e traz os campos dos fascínios, dos amores e das flores. É muito feito disso o mês de Maio, como nos conta o cancioneiro popular. Momento flagrante para imergir nesta peça, numa rara oportunidade de a sorver diante, em palco, num lugar de absoluta predisposição.
Malone refere-se a um princípio de continuidade como fundamento nas suas obras. Exigente na relação franca com os que tem como cúmplices para tocar a música. Fala-nos da relação fraternal com artistas como Ellen Arkbro e Caterina Barbieri e como foi decisiva a sua mudança de Denver para Estocolmo. No final encontraremos a redenção da sua música, respeitado o que esta indicar como se quer escutada. Predisponha-mo-nos a isso mesmo, nesta Primavera que ainda não acabou, nem se apresenta de todo como silenciosa.
Depois de Does Spring Hide Its Joy, um álbum marcante, já editaste um posterior — All Life Long. Para ti qual a motivação para voltar ao anterior? Há realmente na tua obra essa ideia de capítulos por separado ou sentes um continuum, como uma nota drone?
Todos os meus projectos se encaixam e inspiram uns nos outros. Tudo tem o seu próprio entrelaçamento e uma linha temporal não linear. Por exemplo, comecei a escrever a primeira peça coral de All Life Long vários meses antes de escrever Does Spring Hide Its Joy. Fiquei fascinada com a entonação justa e os acordes ouvidos em Does Spring Hide Its Joy há mais de uma década, e a poesia cantada na música coral de All Life Long que decorei quando tinha 16 anos. Tudo existe simultaneamente e não é finito, as ideias e a criatividade por detrás destes projectos continuam a expandir-se muito depois das datas dos seus lançamentos. As peças não estão presas a um determinado período de tempo, é música viva que tenciono tocar e redescobrir durante toda a minha vida.
Does Spring Hide Its Joy é uma extensa peça em disco, com mais de 3 horas, um verdadeiro deep listening para nós como ouvintes. Mas fica a curiosidade de saber como resulta na prática para ti, compositora, e vocês músicos. Haverá algo como isso, em igual ou maior medida?
A peça tem uma duração flexível, é como uma escada que subimos e descemos, para a frente e para trás. Num contexto de actuação, a nossa duração preferida é de 90 minutos. É nessa altura que a nossa concentração se torna magnética e a nossa sensibilidade de músicos fica afinada e telepática. Não é realmente possível tocar esta música sem entrar nesse estado profundo de escuta e ligação. É claro que podemos fazer os movimentos e tocar as notas certas, nos momentos certos, mas isso só por si não é tocar a música.
Este concerto em Portugal, de data única no CCB, será inteiramente preenchido por essas composições. Como se prepara um programa destes? Por que ideias passa um transposição de um disco assim para um concerto?
A versão do álbum consiste em três actuações de 60 minutos da mesma peça, mas em diferentes salas de concerto no Funkhaus [ndr. salas e estúdios em Berlim]. A peça tem um certo grau de improvisação e cada actuação é bastante diferente. Desde a gravação do álbum, tocámos esta música durante mais de 30 horas ao vivo. O nosso mapeamento interno da música e a nossa ligação uns aos outros como músicos é agora incrivelmente profunda e isso está presente quando actuamos.
Nos dois últimos discos tocas a tua música com um trio bem estabelecido, Stephen O’Malley na guitarra e Lucy Railton no violoncelo. Tornaram-se imprescindíveis na transposição das tuas composições. Que características em cada um deles te faz acreditar que isto só se torna possível com eles?
A Lucy e o Stephen são músicos fantásticos e altamente sensíveis. Os seus estilos de tocar únicos, a sua capacidade de improvisar e tocar com precisão são essenciais para Does Spring Hide Its Joy. Já pensei em (re)arranjar esta peça para um conjunto maior, e talvez o faça um dia, mas não sinto necessidade de o fazer agora. Somos como uma banda, e as personalidades, a intimidade da nossa amizade tornam a música e a experiência de actuação muito significativas. A minha música é a minha casa e é essencial para mim proteger esse espaço e trabalhar com pessoas que entram na minha casa musical com amor, respeito, honestidade e positividade. Os músicos que tocam as minhas composições são incumbidos de comunicar os mistérios mais profundos de mim própria. Por isso, é sempre importante para mim ter uma ligação calorosa e amigável com eles, mesmo quando trabalho com conjuntos de música clássica mais tradicionais.
Hoje, mais do que nunca, é impossível pensar em música isolada de um antes disso. Consegues precisar o momento em que a obra de alguém como Phill Niblock se tornou marcante na tua composição? Não que tenha sido um exclusivo inventor da música drone, mas é consensual que a levou na prática a muita instrumentação variada.
A minha introdução à música experimental e à música drone aconteceu através de ir a espectáculos locais com músicos locais. Ao crescer em Denver, havia muita música experimental e punk hardcore, e depois de me mudar para Estocolmo aos 18 anos fui atirada para a sua forte cena electroacústica, drone e free jazz. Tomei conhecimento da música de Phill Niblock quando já era um pouco mais velha, no início dos meus vinte anos, mas foi a música de Eliane Radigue que me tornou obcecada e que realmente me influenciou quando tinha 18 anos. O Stephen, por outro lado, trabalhou extensivamente com o Phill e teria muito a dizer sobre as suas colaborações. Conheci o Phill alguns anos antes de ele morrer e a sua personalidade e energia inspiraram-me muito. É incrível ter estado em digressão, a compor e a festejar até aos 91 anos!
A tua instrumentação neste disco é decisiva para a sua musicalidade dentro do minimalismo drone. Usas osciladores de ondas sinusoidais sintonizadas. No processo de composição, quem se colocou em primeiro lugar: a ideia de utilização desse modo ou a escrita da música, que por sua vez só através desse dispositivo podia acontecer?
O meu instrumento para esta peça é um patch Pure Data que construí há cerca de uma década e que consiste em 72 osciladores sintonizados ligados a um controlador MIDI com 72 potenciómetros. Na horizontal, as alturas movem-se por grau de escala, e na vertical, as alturas movem-se por harmónicos. Posso alterar a afinação específica e os harmónicos quando necessário (também fiz a Living Torch com este instrumento em entoação justa de 11 limites). Chamo a este instrumento a minha “Matriz de Afinação”, e tem sido, de facto, a minha principal ferramenta de composição, juntamente com o órgão. Permitiu-me explorar a entoação justa e a série harmónica com uma abordagem orgânica e física. Reforçou o meu treino auditivo e a minha compreensão da harmonia, sendo também muito intuitivo para tocar.
Há mais de uma década mudaste a tua base para Estocolmo. Até que ponto a tua música não seria igual se continuasses nos EUA? Desde a Escandinávia consideras fundamental essas expressão dos sons?
Mudei-me para Estocolmo quando tinha 18 anos, por isso não consigo sequer imaginar como seria a vida de outra forma. Essa mudança foi a decisão mais importante e fulcral que alguma vez tomei. Se tivesse ficado nos Estados Unidos, provavelmente ainda estaria a trabalhar em restaurantes. Lá nunca teria tido as mesmas oportunidades que tive na Europa, a qualidade de vida e as infra-estruturas culturais são tão drasticamente diferentes.
Também nessa Estocolmo habita perto desses campos uma outra compositora, Ellen Arkbro. Como foi essa colaboração, ainda que já distante, para a XKatedral Volume III, onde entram vocês as duas e ainda a Caterina Barbieri? Diria que é um dos clássicos essenciais da música drone dos dias de hoje.
A Ellen é como uma irmã para mim. Conheci-a quando tinha 17 anos num espectáculo em Nova Iorque e ela convidou-me para ir a Estocolmo e apresentou-me o seu mundo. Colaborámos muito nos primeiros anos em que vivi em Estocolmo. Ela é uma artista visionária com um excelente ouvido e ideologias muito fortes. A Caterina é como se fosse a minha outra irmã, é uma estrela em ascensão com tanto brilho e poesia dentro dela. Conhecemo-nos todas ao mesmo tempo quando a Caterina estava a fazer um programa de intercâmbio de estudantes no conservatório de música em Estocolmo. A Caterina e a Ellen eram colegas de turma, eu e a Ellen éramos colegas de quarto. Fazíamos música juntas para nos divertirmos, era a nossa forma de conviver. Todas nós nos influenciámos muito nesses primeiros anos. À medida que fomos envelhecendo, o nosso trabalho individual cresceu em direcções diferentes, mas ainda há muito que nos liga — sobretudo a amizade.
E passando ao campo editorial. A editora curada pelo Stephen — Ideologic Organ — tem hoje um catálogo dos mais surpreendentes no que respeita à música que ninguém parece ter ouvido ainda. Como é fazer parte desse catálogo? Ainda há poucos meses fui absolutamente arrebatado com o disco Azure de Jessica Kenney & Eyving Kang, absolutamente transcendente.
Esse disco é um dos meus favoritos. Na verdade, tudo o que Jessica & Eyvind fazem é fantástico. Adoro a editora Ideologic Organ, conheço a maioria dos artistas da editora e respeito-os imenso. A editora é como um negócio de família.
Para quem for presenciar o vosso concerto no CCB em Lisboa, que melhor conselho em forma de preparação podias deixar para potenciar a música que nos espera da vossa parte? É preciso ouvir o disco na véspera, fazer meditação horas antes ou simplesmente ir totalmente permeável ao som? Acredito que dispostos à integral contemplação da tua música.
A música mostrar-nos-á como se ouvir.