Partindo para o concerto de Does Spring Hide Its Joy de Kali Malone — realizado no passado dia 23 de Maio no Centro Cultural de Belém, em Lisboa — com uma prévia audição em disco, passa a haver um inevitável termo de comparação. Eis então que surge a hipótese da relação sensorial da música com o espaço de escuta. E essa análise surge porque, decorrido o tempo de escuta em palco, fica a clara sensação de que algo ficou por acontecer — como que a pedir reflexão.
“Não é realmente possível tocar esta música sem entrar nesse estado profundo de escuta e ligação. É claro que podemos fazer os movimentos e tocar as notas certas, nos momentos certos, mas isso só por si não é tocar a música.” Surgida como a outra hipótese a validar vinda do lugar de fala de Kali Malone em entrevista concedida ao ReB. A dedicação a uma música de natureza minimal, assente num espectro drone, em soturnas harmonias, lento e perdurado, pede que nisso haja um meio de alcance a outro estado, desligando-se, em tese, do modo como a música acontece. É formulado um desejo de sintonia contemplativa e até meditativa; seja pelos músicos — “o nosso mapeamento interno da música e a nossa ligação uns aos outros como músicos é agora incrivelmente profunda e isso está presente quando actuamos”; seja pelo público, que assiste a um concerto que passa por uma experiência radical quando comparada com uma outra de músicos em palco.
Kali Malone está de pé (a única), como quem rege a sua própria musica e conduz intuitivamente a progressão do concerto, ladeada por Stephen O’Malley (guitarra) e Lucy Railton (violoncelo). E há num vídeo, que acompanha também na subtilidade da progressão a música, uma proposta visual da artista Nika Milano. Uma imagem proto-estática como cromatografia, mas que parte de cores primárias para uma mescla, num processo algo contrário à análise por separação dos espectros. O sentido de progressão é vertical — gerando padrões estáticos de fundo de tela, movendo-se por graus de escala, como a função do oscilador de ondas sinusoidais de Malone descrita para própria, na já referida entrevista, como a “Matriz de Afinação”. A música assume uma forma não estruturada, relacionada com a ideia de perda de noção do tempo. Os cúmplices de Malone produzem fricções nas cordas dos instrumentos — O’Malley opera um e-bow e Railton um arco de cerdas. Visualmente, é nas cordas de Railton que se concentram mais pontos de observação concerto adiante — uma busca e resgate perante o instrumento de um som mais tangível, talvez por isso.
O registo vertido no álbum vem de três actuações da mesma peça, em cerca de 60 minutos, em distintas salas do complexo berlinense Funkhaus. Há nisso uma demonstração desta pergunta-título em análise — onde fica o melhor espaço de escuta? Que pode bem ser estendido ao de melhor espaço para ser tocada. Afinal, como apontava Malone, “tocar esta música é entrar nesse estado profundo de escuta e ligação”. E isso já foi feito em mais de 30h em diferentes salas de concertos. Qual terá sido o espaço onde tudo se conjugou melhor? Resposta impossível e nunca consensual, por certo. Onde se terá dado essa profunda conexão em desejo?
O grande auditório do CCB revela-se, concerto adiante, como espaço dessa busca, mas que teima em permanecer nesse espaço. A ideia de hipóteses conjugadas parece ter toda a pertinência. Os músicos sentem-se nessa conexão entre si. Aos 40 minutos de actuação, situam a intensidade da música num estado de êxtase. Sentem-se ondas físicas em volume sonoro massivo a varrer o espaço. A emanação musical atinge um auge e atinge-nos em campis sensoriais inesperados, o tacto é um campo sensorial adicionado. Ouve-se e sente-se essa vibração. Começa a fazer todo o sentido. Mas é efémera a ligação, diminui a intensidade e sem que houvesse a desejada passagem dali para algures. Luz a mais na sala e mediação sonora a perdurar menos que o necessário. Perde-se o momento e passa-se para um presente diminuto, mas em que a memória desse instante suporta em sorriso de satisfação. Haveria de ser a condução mais efectiva vinda do violoncelo de Railton a dar por terminada a experiência — último respirar profundo no derradeiro arraste do arco.
Em suma, verificou-se que há uma efectiva relação sensorial da música com o espaço de escuta e que, aqui, foi impossível entrar no desejado estado profundo de escuta. Saiu-se desse espaço vivido com a consciência aquém da inconsciência da meditação. Foi como estar a ver como se consegue lá chegar, mas sem ter sido efectivamente transcendente. A primavera continuará a esconder momentos prazerosos — desejos, promessas e encontros efémeros, como um aroma revelado num desabrochar de uma rara flor.