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Fotografia: Aubrey Trinnaman
Publicado a: 08/09/2020

Música para transformar.

Kaitlyn Aurelia Smith: “New age? Vivo bem com qualquer termo que se use para descrever a minha música”

Fotografia: Aubrey Trinnaman
Publicado a: 08/09/2020

“Adoro Portugal” foi uma das primeiras frases que Kaitlyn Aurelia Smith disparou na conversa com o Rimas e Batidas, que aconteceu a propósito do lançamento de The Mosaic of Transformation, em Maio passado. A produtora passou por cá na edição de 2016 do Semibreve, altura em que vinha de três lançamentos (Euclid, EARS e Sunergy — este uma colaboração com Suzanne Ciani) que a fixaram enquanto nome-chave de uma nova geração de protagonistas do universo da música electrónica.

No novo registo, o corpo e a mente da artista norte-americana servem de condutores para a electricidade gerada pelos seus problemas de saúde, pela meditação e pela audição interna. Num ano em que o barulho se tornou inevitável, a compositora criou um mosaico de transformação que pode (e deve) servir de molde para as reflexões de cada um.



Reuniste uma obra bastante grande ao longo dos últimos anos. Descobri-te quando editaste o Euclid [o seu quarto e mais aclamado álbum, de 2015], mas muito se passou desde então, certo?

De facto. É incrível o quanto pode acontecer em cinco anos, até apenas num ano. E se pensar nos princípios de Março, nem consigo acreditar nas formas em que o mundo mudou.

Cabia uma vida inteira nestes últimos dois meses.

É verdade, aconteceu tudo tão rápido.

Numa entrevista que concedeste ao The Guardian, mencionaste os teus problemas de saúde – que tiveste em simultâneo com a aclamação crítica. Quão difícil foi encontrar um equilíbrio entre a tua vida pessoal e a tua carreira artística?

Está a ser-me bastante difícil encontrar uma resposta para isso. É estonteante pensar que alguém está a ouvir uma coisa que eu produzi, isso deixa-me incrivelmente grata e faz-me sentir uma ligação às pessoas – o que me motivou bastante nesse período de maior dificuldade. Apesar da doença, nunca me tinha sentido tão inspirada na minha vida. Muito interessante como duas verdades podem coexistir ao mesmo tempo, o que também penso estarmos a viver universalmente. Cada uma dessas coisas [a vida pessoal e carreira artística] tornou-se profunda e esgotante.

Não posso deixar de reparar no ligeiro tom de surpresa com que dizes que as pessoas ouvem a tua música. Afinal, não é por esse motivo que a fazes? Ou é, em vez da partilha, a resposta a uma necessidade interior?

Uau, nunca ninguém me perguntou isso. Nunca tinha pensado nisso, mas é tão natural gravitar em torno desse conceito – e que bonito que é. Provavelmente faz parte [da razão pela qual faço música]. Enquanto humana, relaciono-me por vezes com o que disse Alan Watts: os humanos estão sempre a tentar gravar-se a si próprios para provarem que existem. Isso, incluindo fotos mundanas do teu dia-a-dia, envolve uma componente existencial: “eu existo!”, está sempre a acontecer. Mas diria que a minha razão principal, aquilo que me impele a criar sons, é uma resposta a algo profundo, esmagador e inenarrável. É a partir dessa intenção que os meus álbuns têm nascido. Sempre que faço algo com a [mera] intenção de ser ouvido, não costumo ir longe: deixo as coisas por acabar ou, então, não me satisfaz tanto. Mas tudo o que fazemos incorpora esse cantar ao desafio com a existência.

Nessa peça do Guardian, mencionas a ideia de audição interna. Podes falar-me um pouco disso?

Começa pelo conceito de meditação. Quando era criança, os meus pais convidavam-me a meditar – fazem-no duas vezes ao dia – a seu lado, durante 10 minutos. Quando comecei a fazê-lo, estava preocupada apenas com a minha respiração; depois, percebi que tinha várias conversas a acontecerem na minha cabeça. Se lhes tentasse resistir, não me sentia bem: fazia-me sentir restringida e desconfortável. Não me parecia a solução certa, então, comecei a interagir com esses pensamentos. Sempre que o fazia, quando falava com eles, esses pensamentos desapareciam naturalmente: perguntando coisas como “porque é que estás aqui?” [risos] “O que é que me estás a tentar comunicar?” Cada vez que se dava uma conversa, ouvia sempre tons novos, um mundo luxuriante de sons. Começou a entusiasmar-me e alegrar-me poder ir a esse sítio, ouvir essa música interior. Nestes últimos anos, ao atravessar problemas de saúde, passei muito tempo nesse lugar de escuta interior. Foi lá que ouvi este álbum.

The Mosaic of Transformation: soa vivo, positivo, repleto de luz. Ouvi o disco há um mês, em plena quarentena, e pareceu-me a solução certa para me voltar a alinhar.

Deixa-me muito feliz que [o álbum] te tenha ajudado de alguma forma.



Como é que o construíste?

Foi decerto um mosaico. Aquilo que inspirou o título foi a natureza do meu estado de saúde: pormenor a pormenor, grão a grão. Cada dia a tentar observar uma peça da minha vida que precisasse de um reajuste, de se reorganizar, e encontrar uma solução para isso. O mesmo aconteceu com o álbum: simplesmente ouvia o meu interior e, pedaço a pedaço, tentava actualizar esses sons. Por vezes demorava semanas ou meses a conseguir esse efeito. Referia-me sempre àquilo que ouvia cá dentro e tentava igualá-lo.

Já falaste de compilar várias versões de uma canção até estar terminada. Mas quando é que sabes que chegou ao fim?

Difere de projecto para projecto, mas o que tem acontecido é que a própria canção me informa disso [risos]. De vez em quando, a peça diz-me que está concluída antes de eu conseguir sentir isso. Acontece passarem-se anos até que eu aceite que algo estava finalizado e preciso de prosseguir com a minha vida. Por exemplo, terminei este álbum há cerca de um ano, e lembro-me do dia em que percebi que estava feito. Comparei a gravação com aquilo que ouvia internamente e reparei que, sim, correspondia – ainda assim, pensei que não parecia concluído. Mas só me resta aceitar isso, aliás, agora já o percebo. Uma pessoa atravessa várias fases até sentir que um projecto está completo: diferentes aspectos do nosso ser têm que se ir equalizando. 

A expressão new age tornou-se um pouco vulgar ao longo dos anos. Ainda faz sentido para ti? Poderia ser usada para descrever a tua música?

Não sei [risos]. Creio que nunca prestei muita atenção a géneros. Não me importo com que as pessoas a descrevam como new age, embora eu não o faça. Tendo a preferir [música] neo-clássica ou neo-clássica electrónica, caso alguém me pergunte, mas vivo bem com qualquer termo que se use.

A electricidade é algo importante para ti. Compor com sintetizadores modulares é um pouco como esculpir com electricidade?

Definitivamente. Essa é uma das formas como penso nisso.

Uma última questão: os títulos das faixas no teu álbum são bastante reveladores e quase que contam a história por si mesmos. Perdes algum tempo a concebê-los ou surgem-te espontaneamente?

Todos esses títulos, incluindo o do disco, correspondem ao que eu ouvi internamente. Já lá estavam, como parte do som. Escrevi-os provisoriamente, pensando que encontraria outros títulos, mas agarraram-se a mim. Não conheço as experiências de outros artistas, mas, pessoalmente, o meu ser consciente é a coisa menos importante no que toca a eu entender um projecto criativo. Quando algo ressoa [dentro de mim], acaba por ser simplesmente isso; mais tarde, em retrospectiva, entendo o porquê. Ou, então, não faço ideia de como cheguei àquela decisão.

Consigo ouvir os pássaros a chilrear no fundo e pensava que te encontravas no meio de uma floresta. Mas como acabei de ouvir a sirene de um carro da polícia, calculo que não estejas perdida no meio dos bosques…

Quase que podia ser a definição de Los Angeles: estás mais ou menos na natureza, mas há polícia por todo o lado.


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