LP / CD / Cassete / Digital

Kae Tempest

The Line Is A Curve

Republic / Universal / 2022

Texto de Rui Eduardo Paes

Publicado a: 22/04/2022

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Uma linha pode ser mesmo uma curva? Ninguém estranharia que, depois dos dois anos e tal de apocalipse que todes vivemos, e para mais num país conturbado como é o Reino Unido, Kae Tempest – conhecide pelo seu versejar melancólico – viesse com um álbum em que encontra na própria dor argumentos para a redenção. Nas mesmas ilhas governadas por Sua Majestade Isabel II, pelas iguais alturas deste 2022, a banda Placebo renasceu das cinzas com um disco, Never Let Me Go, em que a mensagem não podia ser mais passivo-agressiva, mesmo quando parece anunciar alguma esperança, como bem atestam temas como “The Prodigal” e “This is What You Wanted”. Mas a verdade é que e poeta, declamadore e rapper acaba de fazê-lo, tentando contrariar a rigidez da geometria.

É verdade que Tempest não incorre no positivismo artificial e idiota que se procurou instalar juntamente com as medidas – autoritárias, policiais e de brainwashing – que se implementaram com a campanha contra a pandemia por COVID-19. Nada parece haver em The Line is a Curve do “vamos ficar todos bem” com que se alienou ainda mais a cultura popular deste nosso tempo em que a doença mental tomou dimensões que foram escondidas, ou pelo menos desconsideradas, por uma comunicação social cada vez mais tornada num instrumento do poder político e do poder económico. 

Na cruzada pessoal que Kae vem desenvolvendo, desde o anúncio em 2020 de que mudara de nome e de pronomes, o optimismo ganha um outro tom que não o governamentalizado pelas democracias ocidentais para nos manter a produzir. Resulta de uma fé, subjectiva, não-racional, num projecto de vida e numa construção de identidade, o que é de todo respeitável. Ainda que duvidemos da máxima de que more relief tenha necessariamente de surgir na sequência de more pressure, pois para todos os efeitos a nossa angústia pode ser maior do que a de autore da letra de “More Pressure”, uma das faixas-chave deste LP, e isso determina a maneira como entendemos as coisas. Algo que percebemos sobejamente neste conturbado período é que cada ume tem as suas próprias circunstâncias e tudo deve ser relativizado segundo as ditas na forma como vemos es outres.



A grande questão é que Kae Tempest parte do seu caso, de uma leitura da sua individualidade e do processo de não-binarismo em que se encontra, ou seja, da noção queer de que “o privado é, já por si, político” (o registo do álbum é confessional, e provavelmente ainda mais do que já era seu costume), para nos transmitir histórias e reflexões de alcance comunitário. Constitui-se como um exemplo motivador para outras pessoas também em viagem por entre ruínas, sobre designadamente como fazer as pazes com as nossas adversidades quotidianas, o que é, sem dúvida, um bom princípio e revela consciência cívica. 

Tem é um problema, o de todas as boas intenções do activismo social, e convém neste aspecto vestir a toga do advogado do diabo enquanto e ouvimos: como ficam aquelxs que não se reconhecem na beautiful life vislumbrada em “Grace” e não encontram motivos nem forças para a celebrar? Este é, de resto, o grande dilema dos discursos metonímicos e representativos: a parte nunca pode, na realidade, cobrir o todo. Há sempre alguém que fica de fora. Nessa exclusão, quem não consegue embarcar poderá até sentir que desistiu, que voltou a confinar-se, que regressou ao armário, que cedeu à depressão. Afinal, Tempest defende a “aceitação” como um mecanismo contra o sofrimento e essa é uma faca de dois gumes. Nesse particular, não se distancia muito das cartilhas do cristianismo, da psicologia convencional ou do neo-liberalismo de Estado. Não diz que vamos ficar todos bem, mas também não está tão longe disso quanto possa parecer. A linha não se curva assim tanto.

Kae Tempest procurou ser inclusive neste seu pretendido manifesto de resistência e afirmação. Chamou novamente Dan Carey para a co-produção e a co-criação, desta parceria resultando o melhor que já fizeram juntes, e convidou uma série de figuras – Rick Rubin, Grian Chatten (Fontaines D.C.), Kevin Abstract, Lianne La Havas, ãssia, Confucius MC –  para sublinhar propriamente que o seu lugar de fala não é único, mas sobretudo para cumprir o propósito de uma reprodução de parâmetros. O disco funciona pela interseccionalidade da ideia de que a “minha luta é a tua luta” e isso nota-se até na abrangência musical, mutando-se esta entre a electrónica (com os sintetizadores de Carey a lembrarem, por vezes, a Yellow Magic Orchestra e os Pet Shop Boys, tanto quanto um ambientalismo pós-Brian Eno), o pop-rock (sim, com guitarras eléctricas e acústicas) e o hip hop (muito bom, por sinal).

Em que ficamos? Bom, num excelente álbum de spoken word ao jeito das poetry slams britânicas – ou, mais exactamente, do sempre proletário Sul de Londres – e numa obra que marca um factor essencial: que Kae, tal como nós, faz o que pode para se manter vive e para acreditar que algo ainda será possível, para si e es demais. É legítimo, é humano, é de esperar. O resto importa bem menos.


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