pub

Fotografia: Urivaldo Lopes
Publicado a: 22/11/2022

A importância de fomentar a auto-preservação.

Kady: “Quis trazer uma visão mais consciente no Lumenara

Fotografia: Urivaldo Lopes
Publicado a: 22/11/2022

Aqueles que ousam levantar voo podem ir para onde quiserem. Desse grupo há quem surja vestida de borboleta por saber que nas suas asas vêm doses generosas de liberdade. Com foco no mundo todo que tem pela frente vai vertendo um pouco sobre nós. Neste caso, essa pessoa é Kady, que entra em jogo equipada com uma morabeza, característica de quem tem Cabo Verde no sangue, enquanto nos incendeia com a sua Lumenara (fogueira), o título do seu mais recente EP.

De uma fogueira espera-se que arda, que ilumine, que aqueça. Esta aquece a tradição enquanto a vai temperando com laivos de contemporaneidade e a ilumina, deixando no ar um cheiro a emancipação e mundu nôbu. Passa por nós, em chamas, e pousa em breve no Super Bock em Stock, em Lisboa. Só nos resta esperar para nos deixarmos queimar.



Não posso começar sem antes te dar os parabéns pela tua participação no COLORS. Como é que te sentes?

Isto já tinha sido gravado em Junho, mas já estava neste processo com eles há seis/sete meses. Finalmente poder partilhar isto faz-me sentir muito mais leve. Quando tens isso guardado só para ti a sensação é outra. Estou muito feliz.

A tua mãe, Terezinha Araújo, fundou o grupo cabo-verdiano de recuperação da tradição, os Simentera. A tua tia-avó, Lilly Tchiumba, artista angolana, participou na edição de 1969 do Festival da Canção. Também tu tens um longo percurso ligado à música. Como alguém que tem uma longa tradição musical na família, sempre soubeste que o teu caminho teria o mesmo destino?

Houve momentos. Normalmente dizem-te que descobres a tua missão logo em pequena, é aquilo que já fazes sem pensar. Houve momentos em que quis ser cantora, mas depois decidi tirar um curso de produção de eventos. O clique veio quando eu estava a trabalhar na área de produção de eventos e percebi que eu queria era estar no palco e não no backstage. E isso foi um ponto de viragem chave porque foi aí que decidi que iria fazer música.

Cresceste rodeada de mulheres fortes como a tua mãe e a tua avó. Quanto delas tens em ti?

A minha avó foi combatente na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. A minha mãe estudou na ex-União Soviética, actual Rússia, e lá já cantava muito. Chegou a conhecer a Miriam Makeba que quis levá-la e lançá-la musicalmente, mas a minha avó não deixou. O que me inspira mais nelas é a forma como me educaram porque eu nunca senti que existiam limites só por eu ser mulher. Nós vivemos numa sociedade muito machista e a educação que me deram sempre me permitiu acreditar que eu podia ser quem quisesse e fazer o que quisesse.

Alguma vez sentiste pressão para seguir os passos delas?

Senti na adolescência por parte da minha avó. Tendo em conta que ela foi para a guerra, é normal. Estamos a falar de alguém que largou a vida dela e foi para a luta. Alguém que passou pelo que ela passou e lutou pelo que ela lutou, compreendo que se sinta incomodada por uma adolescente que só queria estar com os amigos. Ela dizia-me muitas vezes, “só queres saber disso. Devias ir para as manifestações que aparecem na televisão”, porque ela sempre foi muito activista. Na altura, eu não tinha essa consciência, mas acabei por ganhá-la com o tempo e maturidade.

Como é que ocorreu o processo de ganhares mais consciência sobre ti e o papel da cultura cabo-verdiana na tua vida?

Eu sempre vivi em Cabo Verde. Saí de lá tarde. E nós ao crescer lá nem sempre valorizamos o que temos e só quando saímos é que sentimos falta. Começamos a ouvir a nossa música com mais intensidade, embora eu sempre a tenha ouvido, mas interessei-me muito mais quando saí de lá. No meu primeiro álbum, o Kaminho, fiz questão de cantar em crioulo. Eu penso em crioulo, aliás, neste momento estou a traduzir na minha cabeça. Fiz questão de cantar em crioulo por ser a minha língua, é a que sai de forma mais natural. O outro álbum, o Kaminho, era mais soul e neste, o Lumenara, as raízes ficaram vincadas na cultura, as palavras que eu uso são palavras que se usavam antigamente ou só se ouve no interior de Santiago, até os próprios ritmos, instrumentos e sonoridade. Eu quis mesmo trazer essa essência para a música contemporânea e pop, que também é uma fonte de inspiração para mim, é o que oiço. Quis misturar essa tradição com o mundo que temos hoje.

Como foi crescer em Cabo Verde e depois chegar a Lisboa?

Não foi fácil, principalmente porque eu não gosto do frio. Não sabia que fazia anos no Inverno aqui. Faço anos em Janeiro e enquanto em Santiago eu ia para a praia no meu aniversário, aqui não. A nível da sociedade em si, cheguei em 2008, altura da crise, havia um clima de muita negatividade – era normal, as pessoas estavam a passar por um clima de muitas dificuldades. Eu tinha vindo do Brasil, foi uma mudança muito drástica para mim. Fui-me adaptando e agora adoro e já não quero sair de Lisboa. Crescer em Cabo Verde é maravilhoso, no meu tempo não tínhamos telemóveis, nem tanto acesso à Internet. O essencial era mesmo estar com as pessoas, brincar na rua tanto com pessoas da minha idade como mais velhas. Havia muito convívio, muita música e muita liberdade.

Estamos a assistir a um ponto de viragem em que os artistas valorizam mais expressar-se em crioulo mas também estão a ganhar terreno iniciativas como a da Mensagem. Como é para ti saíres de Cabo Verde e testemunhares isto noutro país?

Deixa-me muito esperançosa e feliz por ver um país que abraça outras culturas e se está a transformar nessa Lisboa Crioula, como diz o Dino D’Santiago. Dá-me esperança principalmente porque eu tenho um filho. Falo crioulo com ele em casa e fico muito feliz que aqui [em Portugal] ele possa vir a praticar o crioulo, quiçá, com outras pessoas e pelo trabalho de casa que os pais das pessoas que agora são adultas fizeram ao falar crioulo em casa com elas. É uma forma muito bonita de mostrar que, formos onde formos, preservamos sempre a nossa cultura.

A maternidade influenciou a mudança na tua identidade musical?

Não sei se tem a ver com a maternidade em si, eu já estava em busca de uma nova identidade musical, foi por necessidade. Mas a maternidade traz uma força às mulheres que só sendo mãe se entende, não sei de onde vem, mas começas a pensar em questões como deixar o teu filho orgulhoso. Influenciou, de certeza, mas não sei transmitir isso.



Nota-se um amadurecimento nos temas do teu primeiro álbum, Kaminho, para este EP, Lumenara. O que significa este EP para ti?

É necessário. Por muito que já tenhamos evoluído, basta olharmos ao nosso redor para vermos o quanto falta fazer. Falta mais liberdade, mais emancipação e chega de sermos limitadas por sermos mulheres, já não faz sentido. Tenho essa preocupação de passar essa mensagem, de ensinar outras mulheres a valorizarem-se, não só aqui [em Portugal] como lá fora. Principalmente a mulher negra, que, por muito muito tempo — e ainda acontece –, a fizeram acreditar que não era bonita, não era suficiente, o cabelo era feio. Tivemos muitos anos de negação de sermos quem nós somos, está na hora de termos orgulho e gostarmos de nós.

O cabelo sempre foi central para as mulheres negras. Muita gente não entende isso. Na música “Nha Kabelu”, com a Nayela, já se nota a preocupação de passar uma mensagem.

Fiz essa música precisamente por causa de um acontecimento. Quando estava com suspeitas de ainda ter COVID, fui fazer um teste e uma menina mestiça para aí de 10 anos estava com a avó branca na fila. Eu tinha o cabelo solto, tinha acabado de lavá-lo e ela vira-se para a avó e diz, “gosto tanto do cabelo dela, quando crescer vou ter o cabelo assim”, e a avó responde-lhe, “o teu cabelo só se crescer pra cim”, e isso incomodou-me bastante. Como estava receosa de poder ter COVID, não consegui ir lá dizer algo na altura, então resolvi escrever este tema. Eu e a Nayela temos uma história parecida e falámos sobre isso, é engraçado. Eu ia para salões em Cabo Verde com a minha mãe e a cabeleireira dizia sempre para desfrisar o cabelo, já havia aquela negação de gostarmos de quem somos. A a minha mãe dizia que não porque o meu cabelo era bonito. Sei que era privilegiada por ter uma mãe que respeitava e defendia o meu cabelo. Com a Nayela acontecia o mesmo, a mãe também nunca deixou. Ainda assim, existem tantas crianças que ainda passam por isso e isso cria tantos traumas e situações perigosas, como olhares para o espelho e não gostares do que vês porque uma sociedade te fez acreditar que não eras bonita. 

Em Santiago, o texturismo e colorismo são realidades. Afectou-te a ti também?

Sei que sempre fui privilegiada. Há pessoas que sofreram muito mais que eu. Havia uma situação na escola: sempre que o presidente ou primeiro-ministro ia lá, havia sempre uma criança que levava flores e essa criança era sempre mais clara, cabelo mais cacheado e não crespo e as rainhas do Carnaval, se não tivessem cabelo liso, iam esticá-lo. Nunca usavam o seu cabelo natural. Nessas pequenas coisas tu vês que isso existe. Muita gente que vai da Guiné-Bissau ou Senegal sofre imenso preconceito em Cabo Verde. É um problema nosso, do qual já temos consciência, mas nada justifica que continue a existir. Somos africanos, somos os primeiros a não dever fazê-lo. Temos de seguir outro rumo.

Também nas sonoridades houve uma mudança, do batuku ao afropop. Tu já sabias que ias querer esta mudança ou a ideia foi-se instalando lentamente?

Foi bem lentamente. No Kaminho fiz o que gostava e sentia no momento, passados cerca de três anos, mais madura, já não me identificava muito com aquele som. Já não era eu. Aquele era um álbum de alguém muito sonhador, muito peace and love – que também é bom como mensagem a ser passada. Recebi muitas mensagens de pessoas que estavam a passar por momentos muito difíceis a agradecer porque a minha música lhes dava força. Surgiu de forma natural, criámos a música de raiz e o resultado foi este. Neste álbum quis trazer uma visão mais consciente. Como dizia Nina Simone: um artista deve reflectir o seu tempo.

Que mais activistas influenciaram na construção da tua identidade?

Eu leio muito. Para além da Nina Simone, a Maya Angelou, a Frida Kahlo. São pessoas que passaram por fases muito difíceis e mesmo assim decidiram ser aquilo que foram, lendárias. Há uma frase da Maya Angelou em que ela diz, “eu sou mulher há muito tempo, não faz sentido eu não ser feminista. É como ser contra a minha espécie”. São frases que me fazem muito sentido e com as quais me identifico, é algo que se sente.

Este EP conta com colaborações com artistas que têm marcado o panorama musical e cultural de Lisboa como o Dino D’Santiago. Para ti, em concreto, ele não é de todo um desconhecido.

O Dino é um pilar, tanto musical como pessoal. Somos muito amigos. É uma pessoa que me inspira tanto como a Nina Simone ou a Cesária Évora pelo percurso dele. Aprendo e tenho muito a aprender com ele. Sempre que falamos, descubro mais. Passou por muito na vida, coisas pelas quais tu não dirias que ele passou. É uma pessoa muito positiva. Admiro-o a nível artístico e o que ele representa aqui é incrível.

Com que artistas gostavas de colaborar?

Quando sonho, sonho alto. Stromae, Mayra Andrade que adoro como artista e pessoa. E, claro, Burna Boy.

Que metas tens para o futuro?

Levar a minha música a muitos palcos e países. Há uma entrevista da Mayra Andrade em que ela dizia que esperava que as pessoas conhecessem um pouco dela e muito do país dela. Também tenho um pouco essa missão que já teve também a Cesária Évora, de nos meter no mapa e divulgar a cultura de Cabo Verde. Depois do que ela fez, todos os artistas têm essa responsabilidade de honrar esse legado, continuando-o.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos