Imersa num burburinho ensurdecedor vindo de normas que associam fragilidade ao sentir e que tanto resistem a quem as tenta vergar, surge alguém que nasceu e cresceu “com uma dor no peito chamada amor” e decidiu fazer dela florescer. Dando frutos na sua carne e espírito, JÜRA entregou-se totalmente à missão que sempre lhe esteve destinada, a de se salvar a si e aos outros, com a arte que lhe vem de dentro e jorra pelo meio das mais honestas palavras e melodias. Usando o amor como escudo e após afirmações como “És o Amor” e “somozumnãodois”, Joana Silva encontra-se agora pronta para profetizar a sua Jüradamor, com a expectativa de chegar aos corações de quem a ouve: do mais partido ao mais cheio.
Numa conversa para o Rimas e Batidas, a artista falou-nos sobre luz interior, a salvação que há na música e o importante que é sentir sem pudor, levantando simultaneamente o véu para o seu EP de estreia.
És uma artista multifacetada, com um percurso que passa pela dança, representação, dobragens e acrobacia, mas foi em 2019 que te viraste em todo para a música. O que aconteceu para se dar essa viragem?
Então, é muito por causa do tema “És o Amor”. A música sempre fez parte da minha vida, mas nessa altura senti uma urgência gigante de publicar esse tema, porque foi para a minha avó. Nasceu dessa ansiedade de que ela não visse a minha paixão a acontecer e foi muito esse impulso que fez com que eu começasse.
Os primeiros, “És o Amor” e “somozumnãodois”, foram muito bem recebidos. Como foi para ti ver essa adesão tão efusiva? Já esperavas isto?
Eu não esperava nada, mas foi super bom. Eu gosto muito muito do que faço, é mesmo sobre mim, então às vezes estou a ouvir o que escrevo e é mesmo quase como se não fosse eu a escrever aquilo e penso: “Fogo, ya, é mesmo isto que eu sinto”. Nunca pensava bem em como é que ia chegar às pessoas, mas esse amor foi incrível até hoje. E a maneira como as músicas tocam nas pessoas toca-me a mim também. Saber que toca nos outros é incrível.
Brevemente vai sair o teu EP de estreia Jüradamor. O que te fez sentir preparada para finalmente lançares este projeto?
Estas canções já nasceram há muito tempo, todas em tempos diferentes e, lá está, eu não tinha o plano de começar a construir uma carreira, ou começar a lançar com algum objectivo. Elas nasceram porque é esta a maneira de eu me expressar, é esta a maneira de eu descarregar, então elas foram nascendo, até que comecei a ver: “já tenho algumas canções…isto existe, e é tudo sobre a mesma coisa”. Era tudo sobre a relação e depois fui explorando mais o meio, conhecendo mais pessoas do meio e percebendo mais que é mesmo isto que eu quero fazer.
Também faz crescer, não é? Essa vivência do colectivo.
Sim. E ires percebendo como é que as coisas funcionam, porque também não é nada do que estamos à espera.
Os beats deste álbum são do FreeSoulBeats, algo muito orgânico e caseiro dado que é o teu companheiro. Como surgiu posteriormente a junção a DØR [Miguel Ferrador] para a parte da produção?
Estes beats eram mesmo muito cruzinhos, muito caseirinhos, muito simples, porque também foi isso que me deu a liberdade para criar as minhas melodias. Eu tinha muita dificuldade em encaixar-me. Talvez “dificuldade” não seja a palavra certa, não tenho bem dificuldade, mas era um desafio poder aprofundar e viajar na melodia em alguns beats que já eram muito pesados. Então, comecei a pegar nos loops mais simples do FreeSoulBeats, que me davam liberdade para fazer as melodias que eu quisesse e explorar a fase melódica e não a letra só. Entretanto tive aí uns acidentes de percurso com uma editora, mas conheci o Ricardo [Reis] e conheci o Ferrador pelo Ricardo. Tivemos uma sessão, fizemos logo uma canção no primeiro dia, começámos a trabalhar e é muito fixe — ele captou bem o meu objectivo e também nos damos muito bem. Trabalhamos muito bem juntos.
O EP vai conter seis faixas: “Nua”, “aluzétudo”, “diz-me”, “avidavoa”, “dentro” e “porquê”? Reparei que qualquer que seja a ordem em que estiverem conseguem formar de certa forma um verso. Isto foi propositado?
Não… não foi [risos]. Não foi, mas também percebi isso no decorrer. Para mim é sempre muito difícil escolher os nomes. Eu começo a tratá-las por um nome, mas às tantas penso: “Não, isso não faz sentido nenhum”. Gosto de simplificar os nomes, quanto menos melhor, às vezes três palavras para mim são só uma, tipo “avidavoa”, mas é interessante como isso casa assim. Não foi propositado.
Ainda no campo das letras, quem te segue nas redes sociais nota que tens uma forma caricata de escrever. Queres explicar um pouco melhor esse cunho algo pessoal?
Isso apareceu no secundário, quando eu ainda não pensava em nada disto. Como eu sempre estive muito dentro da área artística, sempre gostei de explorar outras coisas e foi quando estava no Chapitô que comecei a pensar: “Mas porque é que eu não escrevo como falo?” Há palavras que tu juntas, há finais de palavras que tu comes para começar outra, então comecei mesmo a escrever assim. E escrevia assim mensagens para os meus amigos, para os meus familiares. Eu escrevo assim e faço tudo assim. Às vezes tenho que me esforçar a escrever direito e está tudo bem, porque é a norma, mas foi uma coisa que aconteceu e acho que é mesmo algo que agora as pessoas também podem associar a mim, o que é sempre bom.
Para quem não te conhece, como definirias a JÜRA? E quais corações achas que iria tocar?
Bem… eu sou verdade, sou o bom e o mau que há em mim, mas a verdade. Sou muito emotiva e quero chegar a todos os corações que sintam ou aos que não se deixam habitualmente sentir e passem a deixar. Isto tudo surge com o meu mergulho em mim própria, com o meu deixar sentir-me e perceber, falar comigo, ouvir o que estou a sentir. E espero que todos os corações consigam fazer isso cada vez mais, pouco a pouco.
Porque ainda há muito aquele pudor em sentir. Sentes que a música pode ser uma ferramenta para ajudar com esse tabu?
Sinto e também recebo esse feedback que é incrível, quando tu começas a ver que as tuas músicas têm mesmo um impacto na vida de outra pessoa. É que a música salva-me a mim, mas também salva os outros. E é incrível! É muito lindo! Mas, pronto, ainda há muito aquela coisa de não se falar do que se sente, de não explorar a dor. Não faz mal sofrer e ficar ali a dramatizar, amanhã é outro dia. É importante sentir.
Uma das tuas faixas tem o título “aluzétudo”. Onde é que vais buscar a tua luz?
Ui… Eu nasci mesmo e cresci com um lema, tenho esta frase no Instagram e quando eu a disse teve um grande impacto em mim que é: “Nasci e cresci com uma dor no peito chamada amor”. Para mim, a vida e a morte, o amor e a dor, a luz e o escuro, estão muito de mãos dadas. Mas eu encontro a luz em pessoas que amo, nesta vontade que eu tenho de falar e de expressar o que sinto. Porque já sei que vai, de uma forma ou de outra, ajudar outra pessoa e, sinceramente, é mesmo esta coisa de sentir que tenho um propósito. Eu vim para fazer isto, então ajuda-me a ultrapassar tudo o que é escuro.
É aquela frase de José Saramago: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.”
É exactamente isso.
Esta parece ser uma obra bastante introspectiva, baseada em vivências pessoais. Em “avidavoa” dizes: “A tentar curar a ferida, parti o meu coração”. Existem muitos artistas que usam as suas experiências, especialmente as dolorosas, como inspiração. Achas mais poético ou masoquista o acto de se reabrir a ferida em prol de criar arte?
Que lindo. Acho que é uma necessidade, uma consequência. Acho que não é nem bom nem mau, é sentir. E a dor faz-nos sempre remexer mais. Quando estamos só com amor, a vida passa mais facilmente, não te sentas contigo para entender. Quando há a dor, quando há essa ferida, mais vale abrir e explorar e sentir logo tudo e mandar cá para fora, como estávamos a dizer há bocado, porque guardar só faz pior.
Em “Nua” quando empregas esse termo, pareces não te referir só à ausência de roupa, mas também ao acto de ficar nua de roupagem emocional. Quando te sentes mais nua? Ou o que fazes para isso?
Pfff.. eia. Por exemplo, nas minhas canções, as minhas amigas às vezes perguntam-me tipo: “Isso é bué pessoal, como é que tu consegues?” É porque eu não sei ser de outra maneira, eu não sei, nem quero, escrever canções que não são o que eu sinto. Isto é a minha cura, a minha própria cura! E acho que o sítio onde me vou sentir mais nua vai ser a cantar as minhas músicas de perto, olhos nos olhos com as pessoas. Acho que sinto isso com os meus, com quem me rodeia, mas assim mais geral e para fora vou sentir-me bem nua quando estiver a contar as minhas canções ao vivo.
Que outros artistas que façam isso admiras?
Eu gosto muito das artes. Por exemplo, uma artista que agora me vem à cabeça, primeiro, é a Erykah Badu. Eu não a descobri há muitos anos, mas amo-a e, quando a descobri, pensei: “Ok, já tenho um ídolo”. Antes eu estava um bocado a nadar, gosto de muita gente, mas não tinha aquela pessoa. Descobri a Erykah Badu e foi essa pessoa para mim. E também a Marina Abramović, outra artista não de música, mas que também trabalha muito estes extremos. Consideraria estas duas.
Falando ainda em outros artistas, até agora não tiveste colaborações. Vês alguma no horizonte? Quais seriam as de sonho?
Então, já tenho uma na gaveta, que ainda não posso revelar. Mas gostava muito de colaborar com nomes novos: EU.CLIDES, Silly, Iolanda… amava fazer alguma coisa com o T-Rex, o Slow J, o Ivandro.
Adorava ouvir isso. Ivandro, JÜRA e Slow J, toda a gente in their feelings uma semana inteira.
Uau… olha os três! Era muito lindo.
Também nos vídeos já lançados para a “porquê?” e “aluzétudo” pareces estar a tentar entender-te a ti própria, enquanto exsudes um certo sentimento de estar à espera de algo. O que sentes que ainda te falta? Esperas por algo em específico?
Falta-me uma coisa que nunca me vai chegar que é: estabilidade. O que também é uma contradição, porque com estabilidade nem me vai apetecer criar tanto. Ou seja, eu preciso dela, mas não a quero, é sempre esta procura. Eu acho que também nunca encontramos bem a estabilidade, porque somos seres que sentem e pensam e procuram sempre algo. Mesmo que inconsciente ou conscientemente, nós precisamos de estilos diferentes. Mas eu acho que é isto, essa questão que fica e esse burborinho é a não certeza. A incerteza. Às vezes há uma grande frustração nisso, claro, quem me dera ser assim, mais estável. Estudas isto, trabalhas nisto, simples assim, enquanto eu sou mais random. Mas depois vale mesmo a pena não o ser, nascer assim mais inquieta.
Mostras interesse por vários estilos musicais, da pop, à soul, do r&b ao hip hop. Tens preferência por algum dos estilos?
Olha, o que consumo mais é hip hop ou cenas mais african vibes, que não têm muito a ver com o que eu faço, mas é o que consumo mais.
Existe a possibilidade de ver uma JÜRA focada só num estilo que se calhar não estamos tão à espera no futuro?
Existe. Adorava fazer um projecto de reggae, por exemplo. Adorava, acho que há pouco em Portugal e sempre foi um estilo que ouvi muito, agora já não ouço tanto, mas houve alturas da minha vida em que ouvia muito. E eu não me quero limitar. Nunca. Eu cheguei a este estilo sem querer, foi porque encontrei lá a morada, a minha casinha, encontrei lá conforto para criar. Mas tenho a certeza de que não me vou limitar. Pode ser ou pode não ser, mas pelo menos um projectozinho de reggae queria.
Agora consideras-te mais predominantemente em que estilo?
Hip hop, r&b, uma mistura. Também tem um bocadinho de pop, é verdade, não pensava nisso, mas associam e é verdade, está lá.
Tens algum carinho especial por alguma faixa?
Não sei, eu acho que tenho mesmo por todas. São momentos, são dias. De todas as canções que tenho, sei perfeitamente o dia em que as escrevi, porque as canções nascem mesmo sozinhas e na hora. Estas canções deste EP foram na hora, eu estava completamente cheia e tive que ir descarregar. Fechei-me no quarto ou na casa de banho ou na sala e fiz a canção. Então, eu sei perfeitamente o que estava a viver, qual o dia em que ocorreu, como é que me estava a sentir, por isso é que são todas tão especiais. Fazem-me reviver um bocadinho, mas também é quase como algo que me traz esperança. Já passou, já foi.
Numa entrevista que deste à Rimas e Batidas em 2021 disseste que um dos teus maiores objectivos com o lançamento do EP seria proporcionar às pessoas a experiência de ouvirem e morarem lá um bocadinho, por teres recebido um feedback tão caloroso pelo que tinhas lançado até outrora. Sentes que atingiste esse objetivo?
Sim, eu acho que sim. É o que temos dito, como é tudo tão verdade, eu espero que as pessoas também se permitam a sentir. Mesmo que não vás falar, opá, chora aqui, ri aqui, grita aqui. E, ao vivo, quero muito sentir essa partilha, vamos estar ali para dividir a dor, para multiplicar o amor. Está a doer agora, mas bora sair daqui e procurar a nossa felicidade.
Vais estar no Estúdio Time Out no dia 19 deste mês, em Lisboa. O que esperas da apresentação deste álbum ao vivo?
Eu estou muito ansiosa. Vai ser o meu primeiro concerto de sempre, é que nem gigs em bares nem nada.
Nunca fizeste?
Nunca. Já estive em palco nas outras áreas, no teatro, circo, dança, mas agora é completamente diferente, são as minhas canções. O que também me deixa mais confortável, porque é meu. Ninguém melhor do que eu para falar sobre mim e é sobre isso que as minhas músicas falam. Estou muito ansiosa por essa partilha. E este concerto vai ser a apresentação do EP e é com banda. Adoro a minha banda, damo-nos super bem e vai ser uma experiência diferente, porque as pessoas ouvem a versão streaming, mas em concerto é completamente diferente, tem outra energia, outra batida. Vai ter um impacto diferente e quero muito partilhar isso com as pessoas.
Quais são os próximos passos?
Então, concertos! Estou muito ansiosa por isso, quero muito que surjam mais datas. E fazer mais coisas, mais projectos, trabalhar com mais pessoas, conhecer mais produtores, também era óptimo surgirem colaborações e ver no que dá. Mas continuar.
Por fim e falando de “Diz-me”, um dos teus mais recentes singles, exploras o conceito de nunca sabermos ao certo o que está do outro lado, o que o outro sente. O que esperas que transpareça e fique da tua parte?
Olha, espero que consigam ver essa verdade, que se permitam a partilhar comigo… nunca sabemos mesmo o que está dentro do outro. E eu não posso ser hipócrita e dizer que vou estar sempre bem, não é? Mas que possamos também partilhar isso, partilhar os dias maus e os dias bons e que possamos ser o mais transparentes possível.